Hoje vim ficar com você
Te perguntei há quanto tempo não chorava e você disse que há uns 30 anos. Isso não tá bom, não
Quando eu nasci você tinha a minha idade atual, já era mãe de três filhos adolescentes e estava casada há 15 anos. Com 39 você também tinha um morto, que era o seu irmão Ivan, de quem você falava a toda hora, acho que pra não esquecer.
Você tinha uma cidade, Curitiba, e sempre contava do colégio de freiras e dos primos paranaenses. Eu achava chato viajar pra tão longe nas férias, mas você ficava tão feliz que eu acabava gostando. Além disso, você era bonita e tocava piano, fazia faculdade de letras e jogava tênis com aquelas saias Tenembaum.
E você era minha mãe.
Ser minha mãe quer dizer que eu era totalmente apaixonada por você. E queria ser igual. Quer dizer, igual não ia dar pra ser porque você era loura. E também porque você era calma. E tinha o sotaque. Mas eu queria ter aquele banheiro com a pia cheia de perfumes e aqueles rolos de cabelo que esquentavam numa maquininha. Eu queria o cabelo claro e a delicadeza.
A gente foi indo assim meio juntas até que o meu pai saiu de casa e as coisas deram uma desandada. É claro que isso eu só percebi muito tempo depois. Mas hoje vejo que a história de nós quatro se divide entre antes e depois daquele dia em que vocês foram conversar no quarto e não me deixaram entrar porque eu era criança. Como se eu já não soubesse o que vocês iam falar.
Foi muito triste não poder mais acordar meu pai com as torradas na bandeja e ver ele sair pra cidade. Ele falava assim: “Tô atrasado pra cidade”. Eu achava que ele ia pra Gotham City. E esperava ansiosa que voltasse pra jogar Atari comigo ou colar figurinhas.
Mas vocês decidiram mesmo se separar. E se eu fiquei chateada, você deve ter ficado muito mais. Você ficou magra, e não era uma magreza boa. Mas depois você arranjou um namorado e eu achei ele legal. A gente passou a ir pra Búzios e a vida ficou meio diferente. A essa altura, meus irmãos já eram adultos, cada um foi pra um país e nós ficamos juntas. Nós duas e a Bel.
Depois o seu namorado morreu e você ficou triste, mas aí a gente já estava mais forte. Você parou de comprar roupa e ficava lendo a tarde toda. Eu mudei de colégio e fiz uma turma de amigas da pesada, então sempre me defendi. E logo você casou com o padrasto mais incrível desse mundo, que sempre te tratou como rainha, e ainda por cima nos fazia jantar falando francês.
Um convite
Isso já tem 20 anos. Nesse tempo eu tratei de ficar adulta, fiz minha própria família e a gente ficou mais longe. Mas a verdade, mãe, é que eu sempre quis ficar mais perto. Desde pequena. Então isso é meio que um convite. E também uma intimação.
Porque agora você deu pra ficar triste sem parar. Ontem te perguntei há quanto tempo você não chorava e você disse que há uns 30 anos. Isso não tá bom, não. Tudo bem que eu não sou referência. Lembra quando a gente viu A hora da estrela? Eu chorei tanto com a Macabea que fiquei com raiva de você.
Mas lembro que você me levava ao cinema e ficava traduzindo os filmes baixinho, e a sua voz tinha um amor que eu nunca esqueci. Também guardo firme na memória o dia em que você me levou a um baile de Carnaval em outra cidade, e a gente pegou o maior trânsito, umas cinco horas no carro. Lembro ainda as nossas idas ao BarraShopping pra ir na única loja de que eu gostava. E de quando você foi comigo pra Friburgo me fazer companhia na estrada e dormimos juntas em um hotel do Sesc. Eu tinha teatro, não queria viajar sozinha, e você veio ficar comigo.
E agora sou eu que quero te acompanhar. Pode ser a uma viagem pra Friburgo, pra Nova York ou pro Shopping da Gávea.
Eu vim ficar com você, mãe.
Maria Ribeiro, 39 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com