Guardiãs do Éden

Conheça as evangélicas duronas que enfrentam os criminosos mais temidos do Rio de Janeiro

por Karla Monteiro em

Feriadão de 21 de abril no Rio, estamos na 72ª DP do município de São Gonçalo, nos arredores de Niterói, uma delegacia que abriga carceragem fe­minina para cerca de 150 mulheres, amontoadas em 11 celas minúsculas. Do corredor, antes de passar pela revista dos guardas, já se ouve o eco de vozes: “Glória a Deus”, “Glória, Jeová”, “Bate palmas para Jesus”. À medida que se penetra no diminuto pátio, destinado ao banho de sol, a energia aumenta, junto com o calor e o cheiro de perfume barato. Profecias e desejos repetidos a plenos pulmões: “Jesus, rasga meu processo”, “Jesus, traz o meu alvará, para que eu possa louvar o teu nome”, “Deus tem um plano para a sua vida”. Catarse: lágrimas, mãos para o céu. Vontade de transcender a dura realidade.

“Não é bom, não. É ótimo. Traz calma e paz pra gente pelo menos por uns dias. Depois começa o inferno de novo. Ainda bem que elas vêm toda semana”, diz uma das presas, grávida de quatro meses e detida há exatamente o mesmo tempo. “Elas são famosas. Na igreja delas tem um centro de recuperação. Todo mundo que vai para lá larga o crime”, emenda outra, de cabelos longos e pretos e boca pintada de rosa, na cadeia há nove meses.

Corta a cena para São João do Meriti, baixada fluminense. Mais exatamente para um bairro de nome sugestivo: Éden. Elas, as evangélicas famosas que comandavam o culto na cadeia feminina, vivem aqui, na sede da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, congregação fundada pelo pastor Marcos Pereira da Silva, em 1991. A igreja dele, um emaranhado de cômodos sem ordem, alguns recém-reforma­dos e suntuosos, outros caindo aos pedaços, em constante obra, é um universo à parte. Outro planeta, melhor definindo. O rebanho compõe-se basicamente de ex-bandidos e familiares de criminosos. Quase todos têm um passado negro. Por abrigar nas suas fileiras gente da alta cúpula do crime organizado, como as duas irmãs de Marcinho VP (que não tem ligação com Márcio Amaro de Oliveira, traficante de mesmo apelido e morto em 2003), considerado o chefe do Comando Vermelho, preso na penitenciária de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná, o pastor Marcos marcha sob os olhos desconfiados da polícia. Até hoje, porém, nunca se provou nada contra ele. A fama vem da forma como o líder religioso coopta seguidores. Seu pelotão de choque, homens e mulheres, tem passe livre em penitenciárias, favelas e bocas de fumo – onde são bem-vindos, e o poder público não dá as caras.

Em meados do ano passado, o Fantástico mostrou vídeos em que o pastor Marcos negocia com traficantes a soltura de pessoas condenadas pelas leis do morro, onde vacilou, morre. Os resgates são feitos diretamente nos cativeiros, em meio às torturas. E sob o grito de guerra estrondoso do pastor: “Deeeeeeeus”.

Deus e o diabo
“Eu tiro gente do crime no atacado. O pastor Marcos tira no varejo”, diz José Júnior, coordenador do AfroReggae, uma das ONGs mais atuantes do Rio. “Em 2000, lembro que ele aparecia de madrugada na boca para evangelizar. Eu botava o meu fuzil nas costas e saía fora. Mas a aproximação dele era com respeito, nunca pedia nada. Quando deixei a cadeia e arquitetava a volta para o crime, o pastor me chamou para morar na casa dele. Lá conheci o Júnior e hoje estou no AfroReggae”, conta Washington Rimas, o Feijão, ex-chefe do tráfico de Acari, favela da zona oeste da cidade.

O dia a dia em Éden é uma loucura só. Gente entrando e saindo, vans partindo lotadas para o trabalho de campo – a evangelização, chamada de resgate nas favelas, cultos. Ninguém para. A turma feminina, cerca de 140 mulheres, sendo que 40 moram na igreja, comanda o espetáculo. Esteja onde estiver o pastor, lá estão elas, organizando a coisa, fazendo acontecer, pilotando os carros, dando ordens pelos celulares. A Assembleia de Deus dos Últimos Dias é uma igreja particular, quase surreal. São duas bases, a sede de Éden e um sítio em Nova Iguaçu, também na baixada, que abriga uma espécie de centro de recuperação. Lá, os recém-saídos do crime, cerca de 200 pessoas por vez, estudam o Evangelho e se recuperam dos vícios: drogas, álcool e poder. Os homens do pastor Marcos – ou varões, como são chamados – têm que andar “ataviados”. Não podem dispensar a camisa e a calça social, traje acompanhado de sapato de bico fino. As varoas vestem túnicas, não usam maquiagem, não se depilam, não cortam os cabelos, não usam cosméticos, não podem se dar ao luxo nem de um colarzinho ou uma pulseirinha. Os casamentos só são permitidos entre os pares. Os seguidores não namoram, oram juntos. Até Coca-Cola e televisão são proibidas. As mulheres têm direito a dois luxos: escolher os sapatos e usar relógios. E nesses quesitos as meninas pecam por luxúria: plataformas altíssimas, es­palhafatosas, brilhantes, com saltos de acrílico, bordados de lantejoulas envernizados e relógios bem enfeitados.

“Não fala que a gente não pode isso, não pode aquilo, não. Vão pensar que somos umas múmias. A gente não é não. Só escolheu um caminho de Deus”, pede Silvana dos Santos, irmã de Marcinho VP, espécie de secretária-geral da igreja, com seu jeitinho carinhoso, manhoso. “Eu troco de túnica várias vezes por dia. Muito quente, a gente sua. Somos vaidosas, queremos estar arrumadas. Não é porque escolhemos ser mulheres de Deus que vamos ficar desleixadas.”

Sempre em cima do salto, a miúda Silvana, de 38 anos, exibe mais de 50 túnicas no armário e uma história de vida que daria um livro, um filme, um épico. Ela nasceu em Vigário Geral, favela famosa pela chacina de 1993, quando 21 pessoas foram assassinadas por um grupo de extermínio formado por policiais. O pai de Silvana, Jorge Fernandes dos Santos, morreu quando ela ainda era muito pequena. A menina e os três irmãos, entre eles o futuro Marcinho VP, foram criados pela mãe, Maria Auxiliadora, viciada em drogas, que sustentava os filhos e o vício com assaltos. Aos 13 anos, Marcinho alistou-se nas fileiras do tráfico. E logo, antes de completar 18 anos, inaugurou a sua primeira boca de fumo, na Vila Norma. Em 1994, com a morte do célebre Orlando Jogador, chefe do Complexo do Alemão, um emaranhado de favelas na zona norte, o rapazote amealhou um “bonde” e invadiu o pedaço. Depois da guerra, tornou-se um bandido poderoso, respeitado no Comando Vermelho. Silvana e a irmã Silvia, hoje também na Assembleia de Deus dos Últimos Dias, viraram princesas do crime do organizado.

“A gente era envolvida também, sempre ao lado do Marcinho, ajudando, trabalhando na contabilidade, no empacotamento da cocaína. Nós éramos muito respeitadas nas favelas e muito arrogantes”, conta Silvia. “Se alguém olhasse para a minha cara, eu já ia logo perguntando: ‘O que foi?’. Um dia uma garota deu mole para o meu marido. Eu mandei raspar a cabeça dela e a fiz descer a favela correndo, sem roupa. Eu era assim. O demônio atuava em mim”, diz Silvana.

As irmãs VP viveram momentos de adrenalina nos anos de crime. Silvana lembra o dia em que viu a morte pelo buraco do telhado. Ela estava numa casa na favela, com dezenas de homens armados, quando a polícia invadiu. O helicóptero da PM parou bem em cima do barraco onde o grupo se encontrava reunido. Segundo Silvana, foram minutos tensos. Os rapazes diziam que não iam se entregar. A ideia era matar ou morrer. Felizmente o helicóptero se afastou sem disparar nenhum tiro. Silvana também já foi presa pelo exército, durante ocupação do Complexo em meados dos anos 90. Sua vida era uma aventura: correr de tiroteios, enfrentar a polícia, as gangues rivais e, claro, mandar e desmandar no morro. A guinada radical começou numa chuvosa noite de janeiro de 1996. Silvia saiu do Complexo num carro lotado: tia, sobrinhos, marido e o filho de 4 anos. Na avenida Brasil, um ônibus a atingiu em cheio. A criança morreu na hora.

De periguetes a varoas
“O pastor Marcos já frequentava a favela. Já tinha me orado, orado o Marcinho. Meu filho morreu em janeiro. Em fevereiro eu vesti o roupão”, lembra Silvia. “Quando ela botou o roupão, eu falei: vou procurar outra igreja porque essa não dá para mim não. Não queria abdicar dos shortinhos, dos tênis de marca. Só que fui vendo as transformações na vida dela, os milagres acontecendo. Oito meses depois, eu também estava aqui”, emenda Silvana.

 

Boa parte das meninas do pastor Marcos tem um passado as­sim: inglório, marcado pela violência. Elaine Martins, 25 anos, cantora da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, um megassucesso do mundo evangélico, nasceu no Complexo do Alemão e perdeu dois irmãos para o tráfico. Há nove anos, ela foi a um culto na igreja do pastor Marcos e está até hoje. “O pastor me orou e eu caí endemoniada, perdi o domínio dos meus movimentos, senti uma força estranha dentro de mim. Eu só ouvia a voz dele me comandando. Quando acabou, senti paz, a presença de Deus”, diz. “Vesti o roupão e não tirei mais. Quando a gente sai para ir passear no centro, no shopping, eu brinco: ‘Vamos lá, mulherada, assustar o povo’. É muito engraçado ver os olhares das pessoas”, brinca. Andreia Lezardo, 32 anos, veio de outro mundo. Filha de uma família de classe média alta de Volta Redonda, ela começou a usar drogas com 15 anos, influenciada por um namorado. Viciada, passou a viver nas periferias e a traficar para sustentar o vício. Em 2004, foi presa. “Era véspera de Natal. Estava na rodoviária de São José dos Campos, já com tudo em cima para levar para Volta Redonda. Um federal falou bem baixinho no meu ouvido: ‘A casa caiu’. Fui pega com 5 quilos de pó e muito crack”, diz. “Na prisão, conheci as meninas do pastor Marcos. Quando saí, no fim de 2006, vim direto para a igreja. Fiquei um ano só me recuperando do vício. Hoje faço a obra, tenho uma casinha, um marido. Toda semana, volto à cadeia para evangelizar.”

 

Fabíola Fernandes Bastos, 28 anos, dois filhos, nunca cheirou, nunca traficou, nunca matou, nunca roubou. Mas tinha em casa um marido drogado, o Waguinho, cantor do grupo de pagode Os Morenos, aquele de hits como “Marrom Bombom” e “Menina de Fé”. “Quando conheci o Waguinho ele tinha 30 e eu, 15. Com 18, eu engravidei, fomos morar juntos. Ele foi ficando cada vez mais famoso e cada vez mais drogado. A nossa vida era um inferno”, diz. Entre brigas e separações, Fabíola entrou para a igreja. “No dia 30 de outubro de 2000, ele me ligou de um hotel no Méier. Estava havia três dias drogado. Quando cheguei lá, o encontrei cercado de papelotes, à beira de uma overdose. Sentei e rezei com toda a fé”, conta. “De repente, o Waguinho começou a reagir, a me pedir perdão pelo sofrimento todo, jogou o prato de cocaína no chão e disse que ia largar tudo.” E largou. Waguinho segue pop star. Só que das baladas crentes. “Meu problema era botar o camisolão. Adorava calça justinha da Gang”, comenta. “Quando pus o roupão pela primeira vez, me senti muito estranha. Lembro que fomos andar no centro da cidade. Percebi que as pessoas me olhavam. Mas tinha um respeito. Nenhum homem falou: ‘Gostosa’.”

Nos corredores, na cozinha, nos alojamentos, na sala do pastor, em qualquer canto da igreja alguém tem uma história escabrosa para contar. A filha do pastor, a cantora Nivea Silva, 25 anos, casada, sucesso de vendas, já viu o diabo. Sempre impecável, com a túnica bem passada e sandálias glamorosas, ela conta que começou nessa vida aos 5 anos, quando o pai largou a cachaça para virar evangélico. “Ele chegou em casa um dia e começou a gritar, dizendo que estava vendo o demônio. Lembro da minha avó rezando, com o terço na mão. Meu pai me abraçou muito forte e, nesse momento, falou que o diabo estava se afastando. Eu senti tudo”, conta.

Pede pra entrar
Nivea também viu demônios encarnados. Aconteceu no dia 31 de maio de 2004. Naquele fim de tarde, o pastor Marcos saiu da baixada fluminense de helicóptero, por volta das 4 horas, convocado pelo então governador Anthony Garotinho para ajudar a controlar uma rebelião na Casa de Custódia de Benfica. Fazia três dias que os presos estavam amotinados e ha­viam executado 34 reféns. A situação se encaminhava para a invasão da tropa de elite, o Batalhão de Operações Especiais (Bope). Nivea e outros dez membros da igreja seguiram de carro. “Quando entramos, vi gente ensanguentada para todos os la­dos, gente amarrada em botijões de gás, mais de 30 corpos decapitados. Meu pai começou a orar, a gritar com eles, a mandar que parassem com aquela palhaçada. Era preso caindo endemoniado para todo lado. Todo mundo conhecia meu pai, das favelas e da penitenciária mesmo”, conta. “Enquanto isso, a gente ia recolhendo as armas, liberando os reféns, amontoando os corpos. Depois, conseguimos que eles se sentassem no chão, enfileirados. A rebelião acabou por volta de 22 horas.” Um pastor e seu re­banho conseguiram em cinco horas o que a polícia tentava há mais de 60 horas.

Entre o céu e o Éden, como se vê, os mistérios, palavrinha que a turma do pastor Marcos usa pa­ra explicar qualquer situação, pipocam, jorram. Inex­plicáveis. “Para mim não tem facção criminosa, não tem bandido perigoso. Todos me respeitam. Eu não defendo o Evangelho, defendo o ser humano. Quando falo com os traficantes, eles entendem que é o demônio agindo. Não são eles”, simplifica o pastor, um sujeito divertido, piadista, que engole todos os plurais e comanda suas varoas e varões com punhos de Capitão Nascimento.

Crédito: Marizilda Cruppe
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