Gilda Midani

A carioca conta como é ser fotógrafa, produtora, estilista, casada com poderosos... e sogra de Sabrina Sato

por Micheline Alves em

Gilda Midani - Crédito: Thelma Villas Boas

Ela já experimentou de tudo um muito: profissões, lugares no mundo, drogas, amigos, homens. Aos 53 anos, provando do sucesso como designer de moda e feliz no casamento mais longevo que já teve na vida, Gilda Midani segue com a vocação inquieta e não para de se perguntar: what’s next?

Ser tocada por Rita Hayworth quando ainda estava na barriga, nascer em uma família decadente, ver a mãe com câncer aos 9 anos, perdê-la aos 12, mudar de cidade aos 16, virar fotógrafa profissional aos 17, se apaixonar por um gênio 20 anos mais velho, engravidar, ter parto normal, comer placenta, amamentar, virar comadre de Caetano Veloso, separar, sofrer, sair pelo mundo, deixar os homens loucos, usar todas as drogas, fazer capas de discos, ir ao Japão, parar com as drogas, buscar o sentido da vida, mergulhar no Pacífico, tatuar “kamikaze” no ombro, engravidar de novo, separar de novo, sofrer de novo, ter uma menina, enfrentar a morte do ex-amor, virar produtora, abrir uma empresa, conhecer todo mundo, mudar para Nova York com uma paixão avassaladora, ficar longe dos filhos, virar figurinista, quase enlouquecer, mudar para Los Angeles, inventar uma nova profissão aos 41, voltar ao Brasil, casar com um homem poderoso, mudar de nome, fazer sucesso criando roupa, ver o filho ficar famoso, ser sogra de celebridades, viver entre Rio, São Paulo, Paris e onde mais for possível, pensar em aumentar o negócio, pensar em desistir disso, importar roupas, fazer mais amigos, se divertir, experimentar, comer comida natural, fazer ioga, fazer reposição hormonal, tomar um Frontal de vez em quando, fazer (muita) análise, amar. Mudar.

À medida que enumera os acontecimentos da vida – os principais, publicáveis e que caibam na tarde cinza em que intercala entrevista, sessão de fotos, paparicos no marido e muitos cigarros –, a carioca Gilda Midani, 53, Gêmeos com ascendente em Áries, impressiona o ouvinte não só pela riqueza da vida que tem tido ou pelos detalhes que dispara nas longas respostas, mas pelo grau de autoconhecimento, de elaboração que tem da própria trajetória, sem jamais esquecer de pontuar os momentos em que foi a mais insegura das criaturas e também aqueles em que, ela sabe, foi rainha.

A entrevista a seguir é uma versão editada da sessão travada das 14 às 20 horas de uma segunda-feira cinza, na casa de madeira e vidro cercada de verde que nossa personagem divide no alto da Gávea, no Rio, com um dos homens mais importantes da história da MPB, o produtor André Midani, 81 anos, seu marido há uma década.

Nascida Gilda Barbosa da Silva em 1960, a atual senhora Midani, quando tem que preencher o campo “profissão” em formulário de hotel, escreve empresária – prefere esse termo ao “impreciso” (é ela quem diz) estilista, como a tem definido a imprensa de moda no país. Sim, Gilda produz roupa, mas se recusa a se enquadrar no esquema da indústria que vive de criar insatisfações e desejo ininterrupto de consumo. Faz críticas a esse modelo, quer se manter artesanal, sofisticada, para poucos (e não tem como ser diferente: uma camiseta tingida e assinada por ela não sai por menos de R$ 500). Ao mesmo tempo, encara o paradoxo que é querer crescer, chegar a mais gente, produzir em série, quem sabe vender em multimarcas coreanas e, claro, ganhar mais dinheiro ainda – afinal, ela mesma confessa, gosta de coisas caras.

De todas as minhas dúvidas, esta é a única que não tenho: esperta, eu sou”

Gilda tem dois filhos: João Vicente de Castro, 30, é fruto do romance com Tarso de Castro, um dos jornalistas mais importantes dos anos 60, 70 e 80, fundador e editor de O Pasquim, morto em 1991 de cirrose hepática; Ana de Souza Dantas, 22, nasceu do namoro com Tuca de Moraes, diretor de fotografia que é neto do poeta Vinicius de Moraes. Ana mora em São Paulo e trabalha com comunicação; João Vicente é um dos criadores (e ator) do Porta do Fundos, fenômeno de audiência da internet brasileira. E namorado da bombshell Sabrina Sato.

Gilda tem 1 milhão de amigos. E três terapeutas: há poucos meses, a veterana Susana Balan, que conheceu em Nova York nos anos 90 e lhe atende até hoje em sessões telefônicas, divide as angústias e perguntas da paciente com uma terapeuta cognitiva que fica em São Paulo e um coach que tem cuidado das questões mais práticas, profissionais, no Rio. Se para dar conta da mulher são necessários três analistas, só com muitas páginas mais um retrato realmente fiel seria possível. Com vocês, portanto, uma pequena amostra de Gilda.

Você é descrita como uma mutante, alguém que experimentou muita coisa na vida e conhece muita gente. É assim desde pequena?

Gilda Midani. Muito, desde pequenininha. Minha mãe era muito tiete, lembro de situações como uma em que ela me mandou pedir autógrafo pro Jair Rodrigues. Sempre tive um fascínio pelas pessoas que faziam diferença, que eram conhecidas. Uma coisa de admiração... não de tietagem exatamente. No colégio me achavam metida a mais velha, sempre cheia de argumentos. Não sei se é porque tinha irmãos muito mais velhos. Sempre fui muito desinibida. E mutante sou mesmo. Experimentar, mudar de opinião é das melhores coisas do mundo.

Como era a configuração de família? 

Éramos quatro filhos: uma irmã sete anos mais velha, outra 14 e outro 15 anos mais velho que eu. Meu pai era engenheiro, foi muito empreendedor quando jovem, elaborou a instalação elétrica de Brasília. Aliás, foi lá que meu nome foi decidido: antes de eu nascer, na festa de inauguração da cidade, a [atriz] Rita Hayworth colocou a mão na barriga da minha mãe. E eu, em vez de Isolda, virei Gilda [personagem ícone de Rita]. Depois meu pai virou presidente da [estatal] NovaCap, mas era muita pressão política e ele se conformou numa coisa mais corporativa, virou diretor da Pirelli. Já minha mãe nunca soube o que era trabalhar.

Ela era de família rica? 

Família aristocrata decadente. Somos descendentes do conde Modesto Leal, conde esse que eu nunca descobri o que fazia até ler o Chatô [livro de Fernando Morais], que o cita como agiota. Nunca houve a ideia de trabalho, de funcionalidade, na família da minha mãe. Todo mundo viveu às custas da herança desse conde. A árvore genealógica da minha mãe é assustadora: 80% se jogou pela janela, ou morreu de overdose, ou é alcoólatra... é uma coisa muito insalubre.

Sua mãe morreu cedo, não é? 

Sim, de câncer no útero. Eu tinha 9 anos quando ela descobriu a doença. E 12 quando ela morreu.

O que você lembra desse processo todo? 

Durante toda a doença, muito pouco me foi revelado ou explicado. Foram lidando como se aquilo fosse normal, e eu percebendo como uma coisa dramática. No dia em que ela morreu, eu estava na casa de uma amiga, e quem foi lá me contar foi a diretora do colégio. Não foi meu pai nem ninguém da minha família. Acordei e vi a diretora sentada na cama. Faz tanto tempo que não sei se isso já é elaboração minha, mas lembro de ter pensado: “pronto, me livrei dessa chateação”. Eu queria lidar com aquilo com normalidade. Se fosse entrar no real significado talvez não suportasse. Em terapia, que faço há anos, sempre digo que fui pouco amparada. Como me faz falta certo tipo de orientação mais convencional, a coisa de “meu pai me ensinou”! Não tenho esses registros. Quer dizer, tenho um só: meu pai dizia que eu era muito esperta. De todas as minhas dúvidas, esta é a única que eu não tenho: esperta, eu sou. Eu me viro em qualquer situação. Mas entendi que meus pais não tinham nenhuma habilidade para formar pessoas.

Você saiu de casa logo? 

Quando minha mãe morreu, quis sair fora. Com 12 convenci meu pai que eu tinha que estudar na Suíça. Depois, com 16, estudar fotografia foi a desculpa que inventei pra me mudar. Ele me fez provar que eu queria isso mesmo e me deu um equipamento. Então fui obrigada a começar. Logo me envolvi numa vida profissional, sem entender como tinha acontecido. Fui morar em São Paulo, trabalhei na DPZ, depois fui trabalhar na revista Status.

"Cuidei bem do João até 1 ano e meio, 2. Aí me separei do Tarso e veio a paúra"

Foi quando você conheceu o Tarso de Castro, pai do João Vicente, seu filho? 

Isso. Na verdade, quando eu tinha 7 anos e morava em Ipanema, o Tarso, que era 20 anos mais velho, se mudou para a minha rua com a Barbara, primeira mulher dele. Eu ficava em cima do muro olhando aquela casa onde iam Chico Buarque, Leila Diniz, era fascinada por aquilo. Daí passam-se os anos e eu estou em São Paulo fazendo a revista com o Ricardo van Steen, que era meu namorado, e a última página era o Tarso que escrevia. Ele ficava na redação do lado, chamada Careta. Eu ia buscar a coluna e ele tentava me beijar, eu fugia. Aí fui trabalhar com [o fotógrafo] David Drew Zing como assistente, e ele, muito amigo do Tarso, falava: “Ele é incrível”. Um dia resolvi aceitar o convite pra sair e me apaixonei. Fiquei grávida logo.

Como foi virar mãe? Você tem a tal capacidade que seus pais não tiveram?

Eu sou muito sábia na minha versão selvagem, minha versão primitiva. O João foi fruto de uma coisa muito pensada. Eu me apaixonei perdidamente pelo pai dele, que já estava muito doente. E intuía que aquele cara ia desaparecer em algum tempo. Era um gênio, uma maravilha de pessoa, eu queria continuar aquilo. E tinha esse espaço vazio, não tinha nada que me prendia neste mundo. Meu pai distante, muito querido, mas distante. Resolvi: vou ter um filho desse cara, vou perpetuar esta espécie.

E seu pai? 

Deixou de falar comigo, não aceitou. E ainda rolava a desconfiança de que o filho não fosse do Tarso. Diziam: “Ele tem 40 anos, transou com todas as mulheres do Rio e nunca teve filho... agora aparece essa menina grávida?”. Mas a criança nasceu com a cara dele, tinha até as bolsas embaixo dos olhos. E eu, que tinha muita insegurança se ia saber cuidar de uma criança, de repente sabia tudo. Fiz parto natural, comi placenta, amamentei. Cuidei dele muito bem até 1 ano e meio, 2. Aí me separei do Tarso, que logo foi morar com minha melhor amiga, e veio a paúra. “E agora? Minha vida acabou, estou presa nessa criança.”

O que você fez?

Tinha uma prima cuja turma andava de barco a vela, a liberdade em forma de vida. Eles estavam no Caribe, num veleiro, e me chamaram pra ir. Deixei o João com o Tarso e fui lá dar uma respirada. Quando voltei, o Tarso falou: “Ele vai ficar comigo”. Ameaçou brigar na Justiça. Falei: “Deixa que eu me adapto, eu me incluo na sua vida”. O Tarso escreveu Pai solteiro, capitalizou pra caramba... mas eu tive esse filho porque eu queria ele desse pai. E queria que ele tivesse esse contato, que não ia durar muito. O João ficou morando com o Tarso no apartamento que eu tinha arranjado, com a babá que eu tinha ensinado. E eu comecei a viajar muito. Fui pra Inglaterra fazer cursos, cheguei a fazer estágio com o [fotógrafo] Nick Knight. Aí namorei um cara que foi pro Paquistão e fui com ele, três meses. Mas aí o Tarso ficou muito doente e voltei. Quando ele morreu, o João tinha 7 pra 8 anos. E eu já estava tendo a minha filha, Ana.

Como foi essa segunda gravidez? 

Quando passei por Londres, fui chamada pelo [jornalista] Roberto Davila para fazer fotos do programa dele. Fotografando o Elton John, eu conheci o Tuca [de Moraes, neto de Vinicius de Moraes], que era câmera. Quando voltei pro Brasil a gente se reencontrou e eu fiquei grávida. A Ana nasceu sete dias depois da morte do Tarso. O João ainda teve mais essa dificuldade: perdeu o pai e teve que dividir a mãe... Quem me ajudou muito nessa fase foram Paula [Lavigne] e Caetano [Veloso] – o Caetano é padrinho dele.

"Viajei com a banda [do Caetano Veloso] e namorava ora o tecladista, ora o baixista. Uma confusão"

Onde você conheceu o Caetano? 

Toda essa gente da Tropicália era amiga do Tarso, eu ia pra Bahia com Caetano nas férias. Quando me separei do Tarso, ele me chamou para fazer as fotos de um disco, o Velô. Fiquei apavorada. Eu fingia segurança como fotógrafa, porque eu sabia que depois de quatro rolos de filme alguma coisa daria certo. Mas esse trabalho eu não queria fazer assim. Aí tive a ideia de fazer Polaroid. A foto sai ali na hora e todo mundo olha. Fotografei no estúdio em que eles ensaiavam, criei uns fundos coloridos. Deu tão certo que fiz uma exposição junto com o show, que inaugurou o Palace, em São Paulo. Depois, viajei com a banda – namorava ora o tecladista ora o baixista. Uma confusão.

Isso foi antes da morte do Tarso?

Sim, exatamente quando me separei. Mas isso tudo era pra dizer que até hoje tenho essa insegurança em ser observada enquanto faço as coisas. Fui criada com tanto julgamento, tanta regra do que era certo ou errado. Aí vejo o Caetano... Você viu o documentário Pedrinha de Aruanda? Ver dona Canô, a maneira como ela fala dos filhos, da peculiaridade, a maneira como incentivavam cada filho, sem julgar. Olha, se eu tivesse uma dona Canô, eu também era Caetano!

Você chegou a viver com o Tuca, pai da Ana? 

Pouquíssimo, um ano. Na verdade eu queria uma filha daquela família, aquelas mulheres, a Tati [primeira mulher de Vinicius], a Suzana [filha do poeta]. Não que eu não tenha me apaixonado pelo cara, me apaixonei e sofri pra caralho, mas na metade da gravidez o relacionamento já estava mal. Ele com um texto moderno, babaca, de morar separado, manter a individualidade. Depois eu fui ver que era uma conversa covarde de quem já tinha outra mulher.

Como é que de fotógrafa você virou produtora?

Com a Ana pequenininha fui trabalhar na revista Capricho, aqui no Rio. Depois a Elle estava recebendo uma equipe estrangeira e me pediram pra produzir. Não tinha muita gente que fizesse isso aqui, na moda. Fui fazendo e acabei abrindo uma empresa com uma amiga, a Guanabara Produções. Quando os fotógrafos gringos vinham pro Brasil, eu fazia. Deu muito certo porque eu era produtora, mas entendia de lente, luz, locação. Comecei a entender que através da produção eu interferia mais no resultado que na coisa autoral da fotografia. Fiz muita coisa interessante, produções complicadas. Aí rolou o Gerald [Thomas].

Como vocês se conheceram? 

Um dia me ligam da Playboy dizendo que ele queria dirigir um ensaio. Ele queria a Marinara [Costa, policial e performer que ficou famosa nos anos 90] no cais do porto, na estiva. Eu conhecia ele de nome, não simpatizava muito. Pensei: “isso é um abacaxi de 400 toneladas”. Pedi um dinheirão que eles não pudessem aceitar. Mas aceitaram. Trabalhamos três dias, um inferno. Primeiro que na época a Marinara estava parecendo o Incrível Hulk. O Gerald completamente raivoso. Nem vou repetir os textos dele dirigindo a Marinara, que isso é uma revista de família. A matéria nem saiu, era uma baixaria.

"O André sempre esteve na minha mira. Mas era muito areia pro meu caminhão"

Mas em que momento vocês se deram bem? 

No final de tudo ele disse: “Nunca vi ninguém trabalhar feito você. Quer produzir minha companhia, minha vida?”. Não dei bola, mas no dia seguinte chega um fax no meu escritório: era a coluna dele no Globo, meia página no jornal, falando de mim. Arsenal de sedução pesado! É irresistível uma pessoa que sabe o que quer. Eu tinha consciência de que toda aquela potência, no dia em que desviasse para um lado não tão bom, poderia me destruir... mas lá fui eu. Foram sete anos de levanta e cai.

Você foi morar com ele em Nova York?

Seis anos, entre idas e vindas. Fiz trabalhos incríveis, aprendi coisas incríveis, fui ao fundo do poço do meu ser existencial, na relação com meus filhos. Imagina se um ser assim sabe incorporar uma criança, essa coisa “desprezível” que não faz parte da arte?

As crianças ficaram no Brasil? 

O João, num primeiro momento, foi comigo. A Ana ficou com o pai e a mulher dele, uma casa ótima. Eu nunca ficava sem vir por muito tempo.

Você teve culpa por estar longe deles?

Claro, tenho uma culpa horrorosa até hoje. Mas era diferente... Quando eu tive os dois, não tinha amigas com filho; a única era a Olivia Byington. Hoje tenho muito mais amigas com filhos pequenos. E, quando vejo a dedicação delas, vejo que o movimento do mundo é este hoje: todo mundo fazendo pessoalmente, prestigiando mais. Não era assim. Hoje, pra todo jovem que está nessa crise de “o que será que eu estou perdendo enquanto cuido de uma criança”, digo: “Não está perdendo nada; não há nada melhor que isso”.

Mas aos 20 anos é difícil ter essa noção. 

É. Você sempre acha que o mundo todo é mais interessante que ficar ali.

Se tivesse a chance de refazer essa trajetória, faria diferente? 

Se eu tivesse tido um companheiro, talvez eu tivesse adorado uma história assim, de cuidar dos filhos. Mas eu precisava sobreviver a uma série de coisas. E era dura, tinha que trabalhar, voltar a ser uma pessoa. No momento em que rolou a paixão pelo Gerald, tava tudo arrumado, a Ana tinha a avó dela, dava certo. Acho que dei a coisa mais importante pros meus filhos: a sorte de engatinhar com as pessoas mais interessantes do planeta.

Você e o Gerald ficaram amigos depois da separação?

Você fica amiga dos seus ex? Fico sim. Meu maior amigo e padrinho da minha filha foi meu namorado. Tenho carinho por eles. Com o Gerald é um e-mail lá, outro cá. No terceiro, se você não responde na hora em que devia, ele já faz má-criação. É uma criança, mas é uma pessoa interessante.

O fim desse casamento foi o início da sua nova carreira, na moda. Como foi isso?

Esse negócio de roupa é curioso: desde a mais tenra infância tenho memória de que roupas eu estava usando em determinadas situações, o que era especial e o que eu escolhia... Minha irmã achou um cartão-postal de 1966, da primeira vez que fui à Disneylândia com a minha mãe. Eu dizia: “Sabe que aqui eu posso sair na rua vestida como eu quiser?”. Aos 6 anos. Lembro que na volta eu usava umas camisetas de adulto como se fossem vestidos, tie-dye dos anos 60 e peruca black power.

"[Com Gerald Thomas] Fiz trabalhos incríveis, aprendi e fui ao fundo do poço"

Mas como isso virou profissão?

Comecei fazendo figurino de ópera pro Gerald, o que foi uma entrada de luxo. Coisas com significado, tudo muito plástico, visual. E em teatro trabalha-se muito com látex e gaze, que dão um aspecto de velhice e você consegue incorporar coisas. Essa técnica me fascinou. Quando a gente se separou, eu estava querendo exercitar alguma autoralidade. Passei a vida produzindo pros outros, com o Gerald era ele o autor de tudo. Na separação, saí de Nova York e fui pra Los Angeles. Fiquei lá sabaticamente num jardinzinho em Santa Monica e resolvi que eu tinha que fazer alguma coisa com aquele látex.

O André Midani, seu marido até hoje, aparece nessa época?

Eu estava lá em Los Angeles me refazendo e experimentando a coisa da criação. Fiquei tão ótima e fortalecida por esse negócio que falei: vou voltar pro Brasil, morar no mato e fazer experiências com esse látex. Chegando aqui reencontrei o André, uma pessoa que nunca deixou de existir na minha vida. Talvez tenha sido minha relação mais permanente.

O André diz na biografia dele que, quando viu você pela primeira vez, grávida do Tarso, disse: “Um dia você vai ser minha mulher”. Foi assim?

Ah, ele estava louco! Era um camarote de Carnaval, tinha todas as drogas que você imaginar, champanhe… E eu de nove meses. Achei ele interessantíssimo, ele sempre esteve na minha mira. Foi conselheiro profissional, amigo, depois achei que desejava ele, mas era muita areia pro meu caminhão. Até que, quando voltei de Los Angeles, liguei pra ele e nos encontramos. Era 27 de dezembro. Ele estava na praia, me contou que tinha terminado com a namorada e me convidou pra ir à casa dele, que ia ter uma feijoada. Cheguei tarde, ele levantou da mesa e falou: “Acho que a gente tem que checar essa nossa história”. E eu: “Que história, nunca vai dar certo esse negócio. Não vou botar em risco a relação que a gente tem por causa de uma trepada”. Aí ele: “Juro que se não der certo eu deleto tudo e a gente volta”. Aí fomos lá resolver. Uma semana depois ele me pediu em casamento.

É a primeira vez que você adota sobrenome do marido? 

Ele foi meu único marido, na verdade. Tive dúvida se ia absorver isso. Mas Gilda Midani dá uma tranquilidade!

Você se envolveu com homens fortes. Mas no fim quem manda é você?

Eu sinto isso… Sei do poder que existe em ser mulher. Não tenho questão nenhuma em querer tomar o lugar do homem. Em tudo na vida, adoro servir. Tem uma frase do Chico Buarque genial: “Eu deixo você me levar pra onde eu quero ir”. Tenho facilidade pra isso.

Alguma vez se sentiu julgada por ter tido tantos namorados?

Não, nunca. Tenho orgulho de ter sido escolhida por tanta gente interessante, e fui importante na vida deles. Muita coisa me incomoda na vida, mas essa realmente não... Parece mesmo que eu tive tanto namorado assim? [Risos.]

Qual a idade do André?

Oitenta e um anos. Já me perguntaram: “Mas você gosta dele mesmo, ou gosta é de tudo isso que ele fez, que ele representa?”. Vem cá, não é a mesma coisa? Ele é o que ele é e o que ele fez... Eu compro o pacote todo. Agora estão fazendo um documentário sobre ele. O Andrucha [Waddington] tem filmado encontros dele com pessoas e isso é a coisa mais importante pra mim hoje. Imagina se tem comparação o legado desse homem e as minhas camisetinhas? Eu sou superculpada em relação a trabalho, com coisas que eu tenho que fazer, mas, quando é uma coisa dele, paro tudo. A melhor coisa que eu tenho a fazer é contribuir. O André nos faz entender que há muitos papéis possíveis na vida. Um criativo não precisa ser necessariamente autoral, ele pode ser o viabilizador para gente criativa. É uma cabeça pragmática, com uma visão criativa. É tudo o que eu busco hoje.

Seu filho João Vicente agora é do Porta dos Fundos, esse fenômeno da internet.

Isso é uma coisa incrível! Fui no lançamento do livro deles e a fila era inacreditável. Dali a pouco eles descem com seguranças e a fila grita como se fossem Michel Teló, Justin Bieber… Eu estava com a Mariana Ximenes atrás das cordas e ela avisou o segurança: “É a mãe do João, deixa ela entrar”. Aí uma senhora na fila ficou fascinada: “Você é mãe de qual?”. Quando é que eu pensei que ia estar respondendo “você é mãe de qual?”. Não há felicidade maior do que assistir à felicidade dos filhos. É a confirmação de que alguma coisa certa eu devo ter feito.

Ele virou uma celebridade, perseguida por paparazzi. Como você lida com esse mundo? Como é ser sogra da Sabrina Sato?

A mim não afeta, mas ele sentiu. Depois da Cléo [Pires, com quem João foi casado], foi violento. Mas ele seguiu uma carreira em que notoriedade é um asset. Falei: “João, o aprendizado é este: de alguma maneira tem que lidar”. Acho que a Sabrina é uma aula sobre como lidar com essas coisas. Acho extraordinário que ele hoje seja uma das maiores celebridades do alternativo e a Sabrina, uma das maiores do mainstream, do pop… É bom, um valida o outro. Do pouco que conheço dela e do muito que conheço dele, sei que no fundo disso tudo tem valores prosaicos. Tudo o que o João quer é casar, ter filhos, cachorro. Acho que ela também. Tenho muita simpatia, ela é encantadora. Conheci um pouco antes de eles namorarem e depois eu a vi uma ou duas vezes. Eles têm uma vida que não para, eu nunca os vejo.

Como é sua relação com o mundo da moda?

Quando comecei, eu nem sabia como funcionava. Como vende, representa, showroom, atacado, varejo. Mas conhecia todo mundo, dos tempos de produção. Cheguei bem, tinha gente a fim disso que eu faço.

Quais seus planos pra sua marca? Você quer crescer?

Hoje vivo este dilema: só com os recursos que tenho não vou crescer, preciso de parceiro. Mas não sei se combino com aumento, se eu quero buscar isso. Uma pessoa falou: “Pra mudar de patamar você precisa de uns sete anos; se hoje se envolve 80% no negócio, tem que se envolver 120”. Deus me livre! Não tenho nada a ver com o que vende. O André que diz: “Daqui a pouco as pessoas vão comprar kits só com as marquinhas, os logos, pra grudar na roupa. Você põe lá Prada onde quiser. Porque é só isso que estão buscando. Não é pra se vestir ou se sentir de algum jeito, é pra se exibir”. Minha trip é outra, sensorial.

Há críticas de que sua roupa é cara. 

Talvez seja cara pra uma camiseta. Só que não é só uma camiseta. Fora o custo que é manter tudo. Porque aquele negócio que você compra baratinho na Zara, você sabe que alguém está se fodendo em algum lugar. Mas talvez seja uma esquizofrenia minha, eu que deveria estar fazendo de outro jeito, emoldurando isso de uma outra maneira. Hoje em dia até tenho menos essa preocupação... antes ficava com raiva de ver a pessoa “errada” comprando uma peça minha. Hoje acho graça na pessoa mais cafona do mundo com cinto de pedra e saltão entrando na loja. Mas, claro, tenho que resolver isso, botar cada coisa num lugar. O que eu reconheço é que há uma tribo sofisticadíssima no mundo com valores cada vez mais simples. O contrário dessa onda de querer consumir mais e dar tanta importância a isso.

Você já viveu com pouca grana, hoje vive numa estrutura bacana. Como lida com dinheiro?

Tenho um carma bom com dinheiro. No meu mapa astral tem isto: na última hora o dinheiro sempre aparece. E na verdade eu só quero mais dinheiro porque gosto de coisa cara, é um inferno [risos]. Mas também me viro com nada: pra mim ou é cachaça ou é champanhe bom. Me vejo mais facilmente como mendigo do que como uma pessoa com um emprego das 9 às 17 horas. Prefiro ir pra praia vender coco. Conheço gente, sei que vão me ajudar, me dar o que comer... Já fiz uns contatos legais na vida [risos]. No sistemão eu não entro.

Crédito: Arquivo Pessoal
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