Fugaz
Mara Gabrilli: "O ser humano, quando peita a si mesmo, desconstrói as próprias ideias"
Viagem... Jamais achei, principalmente depois que quebrei o pescoço, que eu viajaria tanto. Além de ir toda terça-feira para Brasília participar da vida no Congresso com discussões e votações, tenho viajado para municípios de São Paulo e de outros estados também, para fazer palestras. Geralmente voo direto de Brasília. Isso tem me deixado uma “tetra” cada vez mais descolada, desapegada (principalmente do meu colchão). Já estou muito prática para escolher roupas e cosméticos e fazer meus exercícios cada vez num lugar diferente. Esses deslocamentos têm me ensinado muito. Parece que o ser humano tem tendência a ficar, permanecer no mesmo lugar... Mas, quando peita a si mesmo e vai, desconstrói as próprias ideias enlatadas.
Tento reescrever toda semana a saudade que sinto do meu namorado, para que ela não perca a qualidade de saudade. Mas tem algo que sempre fica na cidade de origem, ligado ao comportamento sistemático. Um algo que fica disponível no retorno, e que podemos ou não resgatar. Uma das viagens que fiz foi para Campos do Jordão (SP). Há muito que não ia pra lá passar a noite. Fiz a palestra na câmara municipal e depois fomos jantar no hotel e dormir.
Comemos um fondue bem ruim. O quarto era sensacional, com banheira nova e lareira na sala. Saber que não tenho compromisso no dia seguinte é uma sensação de férias com a qual hoje convivo muito. Já que não tenho férias longas, consigo ter essa impressão por algumas horas.
Saímos Perri, Simon e eu para passear na cidade. Perguntei o preço de dois produtos, que custavam cinco vezes o valor original. Um frio de congelar ossinhos. Resolvemos almoçar e entramos em uma cantina despretensiosa. Eu estava sentada na janela, quando, de repente, vi bem embaixo da garoa fria uma senhora de muita idade, com o rosto todo marcado do tempo, os lábios murchos voltados para dentro da boca, um lenço à moda antiga na cabeça, com uma mão esticada pedindo dinheiro.
Tínhamos acabado de pedir um capelete in brodo e um vinho quando aquela cena dilacerou nossos corações. Eu e a Perri nos emocionamos, pois nos imaginamos velhinhas e desamparadas. Eu, então, nem a mão poderia esticar para pedir dinheiro. Sabemos que em nosso país os idosos não são valorizados, os gestores públicos ainda não se conscientizaram de que, se tudo der certo, um dia serão um deles.
Sonho de vida
Fomos buscar aquela senhora, dona Regina, para almoçar conosco. Sorridente e muito simpática, como se a vida sempre tivesse sido generosa com ela, disse poder comer muito pouco por causa da azia. Contou várias histórias: do filho que morreu de doença de Chagas e da nora que morreu no parto. Ela cria cinco netos. Uma neta teve que amputar a perna e está na cama. Até por isso, ela pede dinheiro: para comprar a prótese da menina. Disse que os médicos se impressionam com sua saúde exuberante e que não tem cheiro de velha. Outro dia, caiu do cavalo, que desembestou ao levar uma picada de abelha. E ela, com mais de 90 anos, não quebrou nenhum osso.
Depois de muita conversa e fotos, dona Regina se foi para Pindamonhangaba, na roça, interior de São Paulo, onde mora. Pedi para a vereadora que me levou para palestrar em Campos do Jordão encontrar a dona Regina para auxiliá-la. Ontem tive notícias dela: a dona Regina não tem netos, mas as histórias que contou parecem bem mais leves do que a vida real. Sua casa é uma sujeira, uma filha estava completamente bêbada e a outra tinha alguma doença mental sem controle.
A imagem que eu tenho da minha viagem a Campos é a da dona Regina pedindo esmola próximo à loja que explora os preços – e que conta uma história de mentira para ter uma vida melhor.
Mara Gabrilli, 43 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br