Fome de viver
Sobre a mulher que me fez perceber que velhice é apenas um ponto de vista
Lembro das noites quentes do verão carioca, de minha cama pequena, da Nonna deitada ao meu lado e do começo da oração: “Buonna cera Madonna mia …” Por essa época, a vida parecia simples como uma música do Chico: lá fora, rosas nasciam, todos sambavam, e, de manhã, minha avó fazia a gemada. Eu pedia que ela batesse mais de cem vezes, para que a mistura ficasse como um creme.
Sabia que estava boa quando o amarelo se tornava pálido e denso, ao contrário do nada sofisticado amarelo forte e poroso alcançado por aqueles que não têm paciência para bater. Ela batia e batia, sem reclamar, até que eu dissesse que estava bom. E abundante assim ia a vida. Na falta de meus pais, era a Nonna que fazia as vezes – e o macarrão.
Nonna chegou ao Brasil pouco depois da Guerra. Na Itália, viu o marido ser assassinado pelos fascistas e, aos 34 anos, tinha ficado viúva e com três crianças pequenas para criar. Decidiu empacotar o que restou e se mandar para a América do Sul em busca de um futuro menos traumático e mais quente. Escolheu aportar no Rio, cidade que, hoje, ama acima de tudo. Na década de 70, nos mudamos para São Paulo, e Nonna passou a viver na ponte aérea. Quando estava em São Paulo, íamos a pé ao supermercado da rua Pamplona, onde ela me colocava sentada no carrinho e me empurrava pelas fileiras. Era nosso programa favorito.
No sábado passado fui com Nonna ao supermercado outra vez. Agora, era eu que a empurrava pelas fileiras. Aos 99 anos, Nonna faz careta, mas aceita a cadeira de rodas que o estabelecimento oferece. Por ela, percorreria o espaço com suas passadas pequeninas, apoiada em uma estranha bengala, que ela não larga. Mas, a fim de agilizar o processo, senta na cadeira e se deixa empurrar: a inevitável troca de papéis que a vida impõe. A certa altura, como fazia algum tempo que estávamos ali, resolvi perguntar se ela estava com fome.
- Filha, sabe de uma coisa, não tenho mais fome. Acho que estou ficando velha.
Eu ri da piada, mas intuí que alguma coisa estava errada. Porque minha avó sempre comeu como se o mundo fosse terminar dali a alguns minutos. Não havia registro, nos autos da família, de ela já ter recusado qualquer tipo de comida. Mesmo as com prazo de validade vencido.
Me lembrei que foi justamente a comida que fez com que ela voltasse a falar comigo depois de vários meses sem me dirigir a palavra. O tratamento do silêncio me foi concedido quando, aos 30 anos, contei a ela que era gay. Meses depois, Nonna se viu sozinha ao meu lado em um buffet e teve que, por causa do joelho machucado durante uma aula de hidroginástica, contar com minha boa vontade para servi-la.
A partir desse dia, voltamos a nos falar, embora nunca mais tivéssemos tocado no assunto de minha homossexualidade. Às vezes, acho que ela esqueceu. Mas me convenço do contrário quando lembro que ela parou de me perguntar, de meia em meia hora, se eu já tenho namorado.
Nossa relação, sicilianamente, sempre girou em torno da comida farta, exagerada e fora de hora. E o fato de ela ter recusado a comida que ofereci no supermercado me vez perceber que talvez Nonna estivesse, de fato, velha.
Depois do passeio fui com ela para a casa de minha mãe e perguntei mais uma vez se ela estava com fome. Ela repetiu que não tinha mais fome. Só que dessa vez minha mãe ouviu e estalou a língua nos dentes, como quem diz: “Esse papo agora!” Em seguida, colocou pão, Coca-Cola e presunto na mesa. Nonna Sem Fome comeu como se o mundo fosse terminar dali a alguns minutos. Depois, como nos velhos tempos, piscou para mim, abriu o botão da calça e foi deitar. E eu sorri aliviada porque percebi que minha avó centenária, afinal, ainda não está velha.