Explicando as estrelas

A luz que meu pai emitiu vai brilhar em mim enquanto eu eternizá-lo nas minhas histórias

por Milly Lacombe em

Quando eu era pequena, meu pai gostava de me falar sobre as estrelas. Apontava para o céu e explicava como distinguir uma estrela de um planeta – “os planetas são maiores e mais brilhantes”, dizia. Mostrava o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e contava que algumas das estrelas que estávamos vendo já não existiam, mas ainda assim éramos capazes de vê-las. “A distância entre nós é tão grande que quando a luz que elas emitem chega aqui elas podem não mais existir”, dizia ele. “Porque estrelas nascem e morrem como todos nós.”

Juntos, assistíamos a Cosmos, uma série de TV escrita e protagonizada pelo físico Carl Sagan que traduzia em linguagem de fácil digestão conceitos avançados da ciência e da astronomia. Quando o programa acabava, eu ainda tinha 1 milhão de perguntas e meu pai parecia ter sempre 1 milhão de respostas. Muito antes do Google, era meu pai que matava minhas dúvidas e curiosidades. Mesmo depois que cresci e mudei de casa, bastava um telefonema para esclarecer qualquer questão – de política a gramática, passando por futebol, economia e literatura.

Eu tinha 8 anos e aquilo tudo era extremamente fascinante. Primeiro porque meu pai, com fatos, estava tirando as cortinas de um universo que eu pouco conhecia. Depois porque, quando conversava comigo como se eu fosse uma amiga capaz de dialogar e questionar, ele me mostrava como devia ser um relacionamento baseado na confiança e na liberdade de expressão. Aos 8 anos, sonhando com o dia em que finalmente seria uma mulher adulta e frequentaria a mesa de jantar em dia de festa, meu pai me fornecia uma espécie de iniciação.

Ontem andamos juntas pela praia deserta. A Lua, quase cheia e soberana, ia mostrando o caminho em tons de azul. Para frente e para trás, a perder de vista, absolutamente ninguém. De um lado, o mar; do outro, uma esteira de coqueiros. Sobre nossas cabeças, um oceano de estrelas. “Tá vendo aquela estrela mais avermelhada?”, perguntei, enquanto apontava para cima. Você balançou a cabeça, como quem não apenas está vendo como sabe o que eu vou dizer em seguida. “É um planeta. Sabe como eu sei?”, perguntei. Você sabe perfeitamente como eu sei que aquela estrela não é estrela mas um planeta, afinal eu já expliquei isso uma dúzia de vezes. Mas, elegantemente, você balança a cabeça indicando que não sabe. E então, diante de seu pedido silencioso, desfilo todo o meu conhecimento celestial. Você espera que eu acabe de falar e então para de andar. Você me abraça, me beija e diz que me ama – o que, isoladamente, já comprova a validade dos ensinamentos de meu pai. Voltamos a andar e eu me sinto um gigante.


Distâncias
Estamos sozinhas em uma praia deserta. Você me dá a mão e pede para que eu continue a falar de meu pai, um cara que você não conheceu. Como domino poucos assuntos na vida, sendo meu pai um desses poucos assuntos, pego a deixa e falo do homem que me fez. Você já sabe de quase tudo, mas parece não se cansar de ouvir repetidamente as mesmas histórias a respeito dele.

É estranho que meu pai tenha saído da minha vida pouco antes de você entrar. Estranho que eu tenha com você um relacionamento que em tantas coisas se parece com aquele que tive com ele. Estranho que vocês não tenham podido se encontrar em uma mesa, taças de vinho na mão, como ele teria sugerido, para falar de mim. Ele adorava falar com meus amigos sobre a criança que fui, uma pessoa que eu conheci menos do que ele. Tinha sempre um caso curioso pronto para ser servido em palavras. Você teria 1 milhão de perguntas a meu respeito, e ele teria 1 milhão de respostas. E ele contaria histórias com o único propósito de fazer você rir. E você ia rir daquele jeito que você joga a cabeça para trás e bate uma palma seca – às vezes duas – demonstrando a você mesma como gostou do episódio.

Esse encontro, evidentemente, jamais acontecerá. Mas me conforta saber que, através de mim, você hoje pode ter um relacionamento com o homem que me moldou. “A distância entre nós é tão grande que quando a luz que elas emitem chega aqui elas podem não mais existir”, disse um dia meu pai sobre as estrelas. Pode ser que a explicação valha também para aqueles que amamos e já não existem – a luz que meu pai emitiu continuará a brilhar em mim enquanto eu puder eternizá-lo nas histórias que conto. E assim, como em um relacionamento perfeito, você o conhecerá cada dia um pouco mais.

A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

 

Arquivado em: Tpm / Comportamento