Estamos todos bem
A gente gargalhou. Aliás, a gente tem gargalhado. E muitas vezes por sua causa
Ontem fui almoçar na casa de seus pais. Estavam todos lá, como acontece aos domingos: sobrinhos, irmãs, cunhado. Mesa cheia, e você faltando a meu lado. Você sentava ali, lembra? Do meu lado esquerdo, bem em frente à travessa da salada, que você comia quase inteira sozinha. Você também gostava quando sua mãe fazia cuscuz. Dessa vez não tinha cuscuz. Aliás, sua mãe quase não tem feito cuscuz. Mas ontem ela fez aquela sobremesa que você dizia que foi inventada por ela, ou por sua avó, agora não lembro. Uma espécie de pavê de chocolate com gelatina em cima. O problema é que ela usou uma manteiga belga que parece que não endurece nunca e a estrutura meio que desabou quando ela tirou da forma. Estávamos todos na cozinha para o desabamento. Você teria rido; a gente riu. Aliás, a gente tem rido. Antes de mais nada, por causa das histórias da sua irmã. Ela continua toda atrapalhada, trabalhando 30 horas por dia, levando e buscando as crianças, e debochando da correria sem fim. Todo dia vem com uma aventura nova para contar. Ontem você teria gargalhado. A gente gargalhou. Aliás, a gente tem gargalhado. E muitas vezes por sua causa. Seu pai gosta de contar histórias do passado, como você bem sabe. E ele tem falado muito de você. Outro dia contou que teve uma época que você, muito pequena, começou a comer de tudo, e aos montes. E as pessoas
traziam sua gula à tona, o que a deixava irritada. Um dia, num restaurante de beira de estrada, você lotou o prato e suas irmãs começaram a debochar. Aí, você, aos prantos, levou o prato bem perto da boca e, mesmo chorando, foi empurrando com o garfo a comida para dentro. A gente riu muito imaginando a cena. É curioso, mas, de um jeito estranho, estamos todos bem.
O almoço acabou e ficamos na mesa, jogando conversa fora até muito depois do café. Sua mãe não faz mais o café de coador. Agora é Nespresso. Tem sempre muitas cápsulas, de todas as cores. Você gostava preto e sem açúcar, lembra? Sem açúcar. Eu sempre fazia uma cara feia quando você me dizia que era apenas uma questão de hábito se livrar do açúcar. Mas você gostava de Fibrax, então como confiar no seu paladar? Era a única coisa nada confiável em você.
Lembranças corintianas
Com o fim do inventário, seus pais vão alugar o apartamento. Essa semana tiraram as últimas coisas. Quando estive lá logo depois do acidente – aliás, uma das atitudes mais difíceis que já tomei na vida, com o elevador demorando 300 horas para subir todos os andares, e eu tendo que me encostar à parede para não cair, e, aos prantos, deixando meu corpo chegar ao chão – peguei tudo do Corinthians, até o pano de prato e aqueles recortes que você separava e que vou mandar enquadrar. E peguei os DVDs de Friends, muitas fotos nossas que, quando conseguir olhar sem me dilacerar, vou colocar pela casa, e alguns livros, inclusive os do Calvin, que você adorava, e eu nem tanto.
Seus pais fizeram bodas de ouro semana passada. Teve um jantar, mas a ideia era viajar com todos os filhos e genros e sobrinhos. Ideia que foi embora junto com você. Talvez no ano que vem, quem sabe. Tenho ficado por lá depois dos almoços para ver a rodada com seu pai. Ontem não fiquei porque rolou uma feijoada na Eva, e eu saí mais cedo. É engraçado pensar que se você estivesse aqui eu provavelmente não teria sido convidada para a feijoada. Você foi embora mas acabou unindo algumas pessoas de forma irreversível. Acho que a gente se ampara na ideia de que estamos juntas por sua causa, e em sua homenagem.
Estava lotada a feijoada. Mulheres de todos os tipos e por todos os lados. Você teria ficado comigo no sofá vendo a final do Paulistão. Santos e Guarani. Não é o Timão, OK, mas é jogo de bola. E você saberia quem é o goleiro reserva do Guarani, de onde veio, onde já jogou, e me contaria sobre ele, depois explicaria o jogo e os tropeços do juiz. Só que a mulherada não teria deixado você em paz ali. Iam te chamar para contar histórias, para fazer você tocar violão, para descer e ir ver alguns shows da Virada Cultural. E você teria ido porque é festeira. Obviamente, não posso escrever “era festeira”: se eu acreditar que você simplesmente acabou, então fica fácil simplesmente acabar também. Que sentido teria? E você mesma me disse tantas vezes antes do acidente que o acaso não existe porque o acaso é o nada e o nada, por princípio, não existe. Então tenho me apegado a essa ideia, a de que um dia nos veremos outra vez, e você continuará a me explicar as coisas da vida, e da morte.
Amigas inseparáveis
Tenho me apegado à ideia de que você continuou até porque um universo que não permite continuar você não merece ser habitado. Tenho me segurado nas nossas amigas, no colo do meu amor, no Maurício, que de certa forma vai te substituir política e futebolísticamente falando, embora não exista essa possibilidade, essa de te substituir totalmente. Mas acho que acima de tudo tenho me segurado nos almoços de domingo na casa de seus pais. Porque eu sei que, embora agora você possa ir para qualquer lugar, é ali que você escolhe estar uma vez por semana. Bem ali, cutucando o prato de salada com a mão e falando bobagens, do meu lado esquerdo na mesa.
A carioca Milly Lacombe, 44 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com