No seu lugar, mocinha

Aos 27 anos, Sâmia Bomfim, a mais jovem vereadora de São Paulo na história, diz cumprir um mandato feminista e fala de temas importantes para a sociedade, mas luta para ser ouvida

por Gabriela Borges em

Uma hora antes do horário combinado, a assessora de Sâmia Bomfim avisa que o encontro com a Tpm terá de ser remarcado. A vereadora estava doente em casa, sem voz e com febre. Ela havia trabalhado até às 3h30 da manhã na noite anterior, em uma sessão extraordinária realizada para a votação do Projeto de Lei de concessão do Estádio do Pacaembu. O PL é parte do projeto de desestatização de bens públicos do prefeito de São Paulo, João Doria, e foi aprovado com 37 votos a favor, dez contra e uma abstenção. Os vereadores, 55 no total, não são obrigados a ficar até o final dessas sessões – eles podem assinar presença e ir embora, ou faltar e ter um desconto no salário. Para Sâmia, esse é um tema importante e ela queria declarar sua posição contrária. Era 29 de junho e, na mesma noite, ocorreu uma audiência pública para o Dia Internacional do Orgulho LGBT, a primeira na história da Câmara para discutir esse tema, organizada por ela junto à Comissão de Direitos Humanos. Foram 19 horas de trabalho e a vereadora acredita que a energia pesada do plenário contribuiu mais com a sua queda de resistência do que o cansaço físico.

Sâmia nasceu em Presidente Prudente, a 560 quilômetros da capital paulista, e é formada em letras pela USP, onde começou a militar nos movimentos estudantis e se descobriu feminista depois de ser ofendida e levar um soco na cara de um militante de esquerda. Hoje, ouve cantadas no elevador ou pelos corredores da Câmara. Porém, quando sobe no plenário e levanta a voz no microfone para falar de temas como melhorias no atendimento às mulheres vítimas de violência, veto ao aumento do salário dos vereadores, oportunidades de trabalho para pessoas trans, vê que os mesmos homens não têm interesse em escutar o que ela está propondo – e, muitas vezes, nem mesmo as outras dez vereadoras eleitas.

Em outubro do ano passado, apesar dos poucos 12.464 votos – numa cidade com 8,88 milhões de eleitores –, Sâmia se tornou, aos 27 anos, a mais jovem vereadora de São Paulo na história – e a primeira eleita pelo PSOL. Chegou à Câmara como parlamentar meses depois de ser expulsa de lá por protestar contra uma homenagem a dois dos responsáveis pela exclusão da palavra “gênero” do Plano Municipal de Educação.

O que leva uma jovem paulista moradora do bairro de Pinheiros a ir além da militância na rua para encarar o caos político do Brasil (em um momento em que uma grande quantidade de jovens diz não acreditar mais em política)?

Crédito: Divulgação

Tpm. A energia é muito pesada aqui na Câmara?
Sâmia Bomfim. Muito. A gente quer bater, mas tem que dar tapinha. É como conviver com o inimigo. Ser colega de trabalho de pessoas com quem você não tem a menor afinidade. Acho que ficar doente é uma consequência de tudo isso.

Você tem aliados aqui dentro? Depende do tema. Tento tirar leite de pedra. Sempre procuro as vereadoras das outras bancadas, mesmo que elas sejam membros da Assembleia de Deus, do PRP. Sei que não vão ter afinidade com direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, mas com a violência contra a mulher elas podem se sensibilizar, porque na igreja, muito provavelmente, atendem e recebem várias pessoas que passam por isso. A saída para o problema talvez seja diferente da minha, mas vamos encontrar uma interlocução.

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E abre espaço para outros assuntos, como o aborto? A violência que unifica as mulheres é a física e a sexual. E, mesmo a sexual, é só o estupro. O assédio, as cantadas, já é avançado demais. Mas nós conseguimos instaurar uma CPI aqui na Câmara para investigar a vulnerabilidade da mulher e eu trouxe o médico André Luiz Malavasi, do hospital Pérola Byington, para falar sobre o aborto legal. Essas coisas não são ditas nunca aqui. Se sou eu quem fala vira um "ah, é aquela feminista louca do PSOL". Se é o médico referência do Pérola Byington, tem outro impacto.

Você consegue unir forças com os outros vereadores? Tento a partir dessas pautas que são mais consensuais. Com aborto é mais difícil. Tenho um projeto de lei que é para regulamentar o serviço de atendimento ao aborto legal no município. Fazer com que os hospitais que oferecem o serviço sejam mais bem equipados, tenham profissionais. Mas eles foram barrados na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa), que é a primeira comissão. Eu só quero que o município de São Paulo se adeque a uma lei que já existe, mas não teve conversa. Nem foi adiante.

“Que tipo de poder é esse, se não querem ouvir o que tenho a dizer? É como se estivessem me falando o tempo todo 'coloque-se no seu lugar'”
Sâmia Bomfim

Como é o seu dia a dia? Muitas vezes, me sinto uma manifestante aqui na Câmara, só que com a vantagem de que o poder público é obrigado a me ouvir, porque faço parte dele agora. Antes eu era uma voz que gritava. Agora, sou uma voz aqui de dentro que está expondo as feridas. Mas, por outro lado, que tipo de poder é esse, já que sou absolutamente isolada, que não querem ouvir o que tenho a dizer? Sinto como se estivessem me falando o tempo todo "coloque-se no seu lugar, mocinha".

No 15M, 15 de março de 2017, dia da paralisação nacional contra as reformas e contra o Governo Temer - Crédito: Pedro Maia / Equipe Sâmia

Você sente mesmo muito machismo? Muito. O machismo é presente em todo e qualquer espaço da sociedade. O mais sutil vem da combinação entre ser mulher e ser jovem. Tem senhor da idade do meu pai, só que muito mais reacionário, que me dá até cantada. Isso porque não estou dentro do padrão de beleza, sou gordinha e tal. Quando estou maquiada escuto "vai ver alguém?". Como assim?! Vou ver minha cara no espelho! Em dias que não tem sessão e venho de vestido é a barbárie. E tem também o machismo mais sério, de ignorarem minhas pautas em conversas informais e até mesmo nos espaços regimentais, quando o presidente não me dá a fala, mas dá para um homem. É difícil.

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O que significa um mandato feminista? É dar voz à agenda feminista, mesmo sabendo que algumas batalhas são perdidas. É fazer uma fala na tribuna quando estoura o caso de alguém que foi vítima de estupro coletivo; se for para homenagear alguém, que seja uma mulher feminista. O aumento de mulheres na Câmara tem a ver com o fortalecimento do feminismo na sociedade e de um esforço consciente também de fortalecer legendas. É muito positivo. É mais fácil eu conversar com a Adriana Ramalho, do PSDB, do que conversar com o Amura, do mesmo partido. É muito importante ter mais mulheres, independentemente da bancada. Mas não são mandatos feministas, então, muitas vezes, elas vão defender quem eu contesto.

“Dentro da esquerda também tem muito machismo”
Sâmia Bomfim

Você sempre foi feminista? Não. Minha família não é politizada. Conheci o feminismo através do movimento estudantil, na luta por cotas nas universidades, por mais verbas para a educação. Só que dentro da esquerda também tem muito machismo. Uma vez eu estava na mesa de uma assembleia e o sujeito de uma outra organização falou, em tom de piadinha: "Da próxima vez coloca um homem na mesa que garante melhor". Fiz um escândalo.

Você tinha quantos anos? Dezoito ou 19. Achei o fim do mundo. Encontrei apoio em um coletivo feminista que estava se formando, do qual eu não participava, porque ainda não via importância. Depois, em outra assembleia, fui agredida com um soco no rosto pelo mesmo cara. Hoje isso não aconteceria, todas as assembleias precisam ter pelo menos uma mulher e um negro, sem contestação. Foi nesse momento que caiu minha ficha. Quando eu estava saindo do movimento estudantil, já mais velha, e decidi militar no feminismo, ajudei a organizar o ato contra o Eduardo Cunha, em 2015, e aí foi.

Em visita à Casa de Passagem Rosângela. Todas as vereadoras da CPI da Vulnerabilidade da Mulher estiveram presentes visitando o equipamento público da rede de enfrentamento à violência contra a mulher - Crédito: Pedro Maia / Equipe Sâmia

O que a sua família acha de você trabalhando aqui na Câmara? Eles odiavam que eu militava. Quando tinham notícias, eram em tempos terríveis, polícia, tropa de choque. Quando me candidatei, mudou, porque a imagem do parlamentar é mais próxima. Minha mãe deu entrevista pro jornal da minha cidade e acha o máximo. Às vezes se arrisca a falar que estou exagerando, que o parlamento não é a rua. Mas explico que se não for para ser como eu era na rua, vou estar enganando meus eleitores. Meu pai está começando a gostar só agora.

Nas redes sociais você tem um jeito muito relaxado, posta que está no bar, tomando cerveja. Passou a se preocupar mais com a exposição? Cara, reflito muito sobre isso. Sempre gostei de ir ao bar, beber, fazer todas essas coisas que as pessoas fazem. Agora não tenho tempo, mas, quando saio, me divirto mesmo. Nunca teve problema porque saí, mas tem quando vou a alguma manifestação. Inclusive aqui no plenário. Me denunciam, dizem que num dia de trabalho a vereadora está tomando bomba – e eu com a cara toda cheia de leite de magnésio para poder respirar o gás. 

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Você acha que a exposição pessoal te incomodaria mais do que essa exposição da sua militância? Me incomodaria mais. Eu falo com orgulho que estava militando. A exposição pessoal não tem por quê, né?

Mas você também não deixa de viver e fazer suas coisas. Não. A diferença é que agora tem gente que me reconhece na rua. Nunca ninguém me abordou para me xingar. Mas eu devo ter cruzado com alguém que me odeia, não é possível. 

Como você lida com os ataques na internet? Eu tenho ajuda na administração de boa parte das minhas redes sociais e recebo um relatório semanal. É todo tipo de xingamento, mas eu não me importo. Me afeta quando me chamam de vadia. Quando é sobre a minha forma física eu mando à merda. Às vezes, se é alguém que poderia gostar de mim e não gosta por um mal-entendido, faço questão de explicar. Já cheguei até a pedir o telefone da pessoa e ligar para explicar. 

Em junho, ao lado de Fernando Holiday, na Audiência Pública sobre a Cracolândia - Crédito: Pedro Maia / Equipe Sâmia

Seus votos estavam concentrados na "bolha da zona oeste" de São Paulo, mas suas propostas não ficam só nela. Por que isso aconteceu? Acho que tive mais votos ali porque são lugares de debates e reflexão da classe média universitária, como eu. E tem a ver com o perfil do PSOL e o espaço que sobra para a esquerda nesse momento de construção de uma alternativa. Hoje, quem chega às periferias são as igrejas evangélicas, quem têm pautas mais conservadoras. O PSOL precisa ir para esses lugares se quiser ser um partido grande. É mais fácil ir para a classe média, mas esse voto de opinião é muito incerto. Precisamos estar mais na periferia e fazer com que o povo se sinta representado.

“Precisamos de uma renovação política completa, que parta dos grupos de periferia, de coletivos de cultura. E precisa ser etária”
Sâmia Bomfim

Existe uma sensação generalizada de que, mesmo se saírem todos os corruptos, não temos em quem votar. Você acha que os jovens estão realmente se empenhando para entrar na política e fazer diferente? Muito pouco. A maioria dos que estão buscando renovar a política, até por uma demanda dos próprios partidos, ainda é esse jovem publicitário, de classe média, que tem acesso aos debates com mais facilidade. Precisava de uma renovação completa, que partisse dos grupos de periferia, de rap e hip-hop, de coletivos de cultura. E precisa ser etária. Sem negar alguns parlamentares mais velhos, como o Eduardo Suplicy, que tem 76 anos e ainda cumpre com um papel fundamental. Mas parte de seus 300 mil votos podem ser para outras pessoas, ele não precisa de tudo isso.

Por que esses votos não são distribuídos? Ainda ganha quem tem dinheiro. A minha campanha custou R$ 35 mil, teve gente que gastou R$ 2 milhões. Porra, meu comitê era meu apartamento!

Em campanha pela Greve Geral do dia 28 de Abril de 2017 - Crédito: Pedro Maia / Equipe Sâmia

Falando de raça, gênero, orientação sexual, só a representatividade importa hoje na política? Estar no poder é o suficiente se você não estiver lutando por causas que tenham a ver com aquilo que você representa? O Fernando Holiday, por exemplo, é um caso específico. Desconstrói e questiona vários dos símbolos progressistas. É um negro contra as contas, um jovem gay da periferia que acredita em mérito pessoal e não em políticas inclusivas.

É uma jogada política? Ele sabe o que faz, mas é também o jogo de todo o “projeto Holiday”, porque ele é um projeto. O MBL (Movimento Brasil Livre) não é formado por um bando de moleques inconsequentes, tem mentores que são homens mais velhos que sabem exatamente o que estão fazendo. Mas ele é um caso à parte, existe um meio-termo. Por exemplo, o fato de hoje serem 11 vereadoras em São Paulo, no mandato anterior eram seis. É um avanço, porque estamos quebrando uma das barreiras do machismo, que é o fato de a gente nem poder pisar aqui dentro, de os partidos não financiarem as campanhas, furando os 30% obrigatórios das chapas eleitorais. Mas é insuficiente. A representatividade importa, mas não garante.

“Precisamos falar da mulher que acorda às 5 da manhã, pega ônibus, não tem vaga na creche e deixa o filho com a vizinha, que apanha do marido”
Sâmia Bomfim

Sobre o que nós, mulheres, precisamos falar hoje? Para onde ninguém está olhando e nós precisamos olhar? O feminismo está em um setor da nossa sociedade que é escolarizado, progressista, dos centros. Precisamos falar da mulher que acorda às 5 da manhã, pega ônibus, não tem vaga na creche e precisa deixar o filho com a vizinha, que apanha do marido. É a grande maioria das mulheres, mas quem chega nelas é a novela. A gente precisa fazer a Angélica, por exemplo, falar de feminismo. É importante que o Zorra total tenha mudado, mas quero que no intervalo tenha um anúncio do Disque 180 e que as mulheres agredidas possam ir na delegacia e sejam bem atendidas.

A frase do momento é "The future is female". O que isso significa para você? É evidente que as mulheres estão incomodadas com o machismo e estão na luta, cada uma a seu modo. Isso vai avançar e não retrocede. 

Em entrevista durante a Greve Geral de 28 de Abril de 2017 - Crédito: Pedro Maia / Equipe Sâmia

Quando foi eleita, você disse que a instituição normalmente é sua inimiga e que ainda não dava para saber o que significa fazer parte dela. E agora, já dá para saber? Ainda não! Preciso entender essas contradições; ela segue sendo minha inimiga, mas estou aqui dentro. Tenho poder, mas não tenho. Ninguém respeita. O que eu defendo não condiz com o poder.

A sua eleição é reflexo das manifestações de junho de 2013? De certa forma, sim. Porque ali abriu uma ruptura na política que teve desdobramentos à esquerda e à direita, de contestar as velhas figuras políticas, a falta de referência e de representatividade. O crescimento das manifestações feministas também é um desdobramento. Assim como o Fernando Holiday. 

O gigante acordou, mas se espalhou, né? Tem braços de várias formas, mil cabeças. É um gigante meio confuso, que tem perna direita e perna esquerda. [Risos]

Você já chorou aqui dentro da Câmara? Já, de ódio. Muitas vezes. Ou eu estouro ou eu choro. Chorar às vezes é a melhor forma de colocar para fora a sua raiva. Não é fragilidade, é ódio!

Mas as pessoas já te viram chorar e acharam que era fragilidade? Eu não choro na frente deles, imagina. Estou sempre firme. Às vezes a voz treme, mas não choro. Só escondido. [Risos.]

Vai lá: Acompanhe o trabalho e os Projetos de Lei protocolados por todos os vereadores da Câmara Municial de São Paulo camara.sp.gov.br/vereadores

* Essa entrevista foi escrita como parte da bolsa internacional de jornalismo Cosecha Roja.

Créditos

Imagem principal: Pedro Maia / Equipe Sâmia

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