Fala, Marieta

Exílio, Chico Buarque, drogas, rotina, casamento, separação, ditadura, maternidade, culpa, Carlinhos Brown. Invadimos a privacidade (com consentimento) de Marieta Severo

por Milly Lacombe em

A entrevista poderia ter sido uma catástrofe, a pior entrevista da história das entrevistas: que tipo de repórter idiota perguntaria a Marieta Severo se é verdade que ela ainda tem conta conjunta com o ex-marido Chico Buarque?

Eu.

Eu, que fui gentilmente convidada pela própria Marieta a entrar em sua sala, puxada pela anfitriã pelo braço para ver a espetacular vista da varanda de sua casa na Gávea – com direito a Rocinha, Lagoa e muito mais. Eu, que fui por ela servida de café e salgadinhos e sentei em seu sofá, de frente para vários porta-retratos onde se eternizam momentos-família dos Severo-Buarque de Holanda: Marieta, Chico, as três filhas (Silvia, 35, Helena, 33, e Luísa, 29) e os três netos (Francisco, 8, e Clara, 6 – de Helena –, e Lia, 2, de Luísa). Eu, que sei tão bem quanto você que Marieta não é dada a entrevistas, que gosta de preservar sua vida pessoal, que não aceita falar de intimidades e, sobretudo, que odeia falar publicamente de Chico – isso, mesmo quando eram casados.

Acontece que um dos pré-requisitos do bom jornalismo é perguntar tudo o que for relevante para que o leitor possa entender melhor quem está sendo retratado. É preciso fazer o entrevistado se sentir à vontade e só aí entrar em áreas desconfortáveis e dar o bote que diferencia grandes entrevistas das café-com-leite. Quando o papo está uma delícia, como era o caso, fazer isso é ainda mais difícil.  

Marieta Severo da Costa, 58 anos, é uma de nossas melhores e mais prolíficas atrizes. São mais de 30 filmes, seis novelas e 50 peças, sem contar sua participação como dona Nenê no seriado global A Grande Família. Nasceu em família de classe média e tradicional, em 2 de novembro de 1946. Como qualquer garota de sua época, vivia na praia, estatelada ao sol. Como poucas garotas de sua época, tinha Antônio Pitanga como companheiro de frescobol. E se acabava de dançar ao lado de Nelson Motta, Edu Lobo, Dori Caymmi, Leila Diniz – todos adolescentes ainda virgens de fama. A vida seguia em ritmo de sol, mar, banquinho e violão até que Marieta, que aos 18 anos cursava magistério para virar professora primária, entrou por acaso no Tablado (escola de teatro) durante o ensaio de uma peça e ficou encantada com a arte de representar. Convenceu o pai, um desembargador mineiro muito sério, de que ser atriz era uma profissão como outra qualquer e foi à luta.

Não tivesse ela entrado no teatro naquele dia, certamente não teria conhecido o homem de sua vida: Chico Buarque, que, em 1966, aos 22 anos, foi levado pelo amigo Hugo Carvana para assistir a uma peça de Marieta e ficou maravilhado com a morena que viu no palco. Esperou uns dias e voltou, dessa vez trazendo um vaso de flores nas mãos. 

Recém-saída de um primeiro e brevíssimo casamento, Marieta foi morar com Chico pouco tempo depois, e a união durou 30 anos. Construíram uma tradicional vida familiar, com direito a almoço de domingo, buscar criança no colégio e passar a noite em claro porque uma das meninas estava com febre. Eram uma bolha de caretice em meio à efervescência da época. Não que eles não apoiassem todos os movimentos experimentais, mas, como lembra Marieta, ela tinha que acordar cedo no dia seguinte. Agora está sozinha, pela primeira vez na vida. A separação, embora doída, foi muito bem resolvida por ambos, que são hoje grandes amigos.

A entrevista a seguir toca em assuntos da vida de Marieta sobre os quais ela se sente pouco confortável falando. Mesmo assim, em nenhum momento fez cara feia. Nem mesmo quando indaguei sobre a tal conta conjunta. Nessa hora, rindo com aquele eterno jeito de moleca, Marieta simplesmente disse: “Ah, não faz isso, vai. A gente tava indo tão bem”. Como o compromisso com o bom jornalismo vem acima da vontade de agradar quem se admira, vai aqui a resposta: sim, Marieta e Chico dividem talões até hoje. 

Da esq. para a dir., aos 5 anos; adolescente, estatelada ao sol na praia de Ipanema; em 1965, com os pais e uma amiga no pátio do Instituto de Educação e com o pai em sua festa de formatura - Crédito: Acervo pessoal

Tpm. Que tipo de adolescente você foi?
Marieta Severo. Fui uma criança rebelde, inquieta, que lidava muito mal com limites. Na adolescência fiquei mais quieta. Namorava, dançava rock’n’roll, mas era isso. Fazia o normal, ia ser professora primária. 

Ser atriz, nem pensar...
Não, não tinha nada a ver. Meu pai era advogado, terminou a vida como desembargador, minha mãe era professora de inglês e de prendas domésticas. Eu habitava o mundo da classe média carioca. Ia à praia, jogava muito frescobol, passava horas tomando sol, estava sempre queimadona. Ipanema, década de 60, imagina. Era uma época em que não se passava protetor solar, até porque isso não existia. Passávamos Rayito de Sol, que era um acelerador solar [risos]. 

Mas e essa veia artística, como se manifestou?
Ela já estava ali, quietinha. Com mais ou menos 16 anos, tinha um conjunto com uns amigos da praia e do colégio chamado Seis em Ponto. Sabe quem fazia parte? Dori Caymmi, Nelson Motta, Edu Lobo... olha só! Era farra de adolescente. Eles tocavam, eu cantava e dançava. Lembro que saía do Bennett [escola onde fazia o normal], na Senador Vergueiro, e passava na casa dos pais do Nelsinho, que moravam ali do lado, onde essa turma se encontrava. Nossa, acho que nunca falei sobre isso antes, você está me fazendo abrir o baú. Um dia, lá por 1962, quando me preparava para ser professora, passei na porta do Teatro Tablado e resolvi entrar. Me apaixonei na hora e comecei a me aventurar pelos palcos do Rio. 

Não tinha Chico nessa época?
Não, isso era bem antes. Época de praia, frescobol. Sabe quem era meu parceiro no frescobol? O Antônio Pitanga [risos]. O Rio era um gueto, né? Tudo isso era Ipanema. Ipanema da década de 60. 

“Sabe quem era meu parceiro no frescobol? O Antônio Pitanga. O Rio era um gueto, né? Ipanema, década de 60”
Marieta Severo

Você se casou cedo, não foi?
Aos 18 anos, com o Carlos Vergara, que é artista plástico. Mas foi um fracasso, o casamento durou um ano... Não, brincadeira, não foi um fracasso. É que eu era menina, não era para ter casado, né?

E o Chico entrou no filme quando?
Em 66, quando estava fazendo minha terceira peça. Ele tinha ido ao Rio para apresentar o primeiro show dele na cidade. Daí o Hugo Carvana, que era o diretor desse show, levou o Chico para ver a minha peça. Eu já tinha ouvido falar desse novo músico de São Paulo, sabia que ele já tinha até feito um disquinho e tal. O Hugo nos apresentou e cada um foi para o seu lado. Dias depois, o Chico voltou com flores. Daí a gente começou a sair e, pouco tempo depois, estávamos morando juntos. 

Você era politicamente engajada?
O jovem na década de 60 fazia parte de uma geração completamente comprometida com mudanças sociais. Não só no Brasil, mas na França, na Itália. Tudo caminhava para transformações. O pensamento era de que tudo tinha de ser experimental: a escola, o casamento. Havia uma grande necessidade de ruptura. Veja o feminismo: até a geração da minha mãe, o bastão ia passando de mulher para mulher, absolutamente igual. A maneira de educar o filho, de se comportar dentro do casamento. Mas minha geração falou: “Queremos tudo diferente, queremos outro formato para o casamento, para a educação, queremos uma outra vida social”. Semana passada estava ouvindo Mercedes Sosa, e tinha uma música de ninar no CD que me fez dar muita risada. Era assim: “Dorme negrito que tu mamá está en el campo/que tu mamá está en el campo”. E, nessa hora, a cantiga sai e entra uma voz forte: “Trabajando, trabajando!!”[risos]. A mensagem social era encaixada onde desse, entendeu? 

E vocês achavam que estavam mudando o mundo?
Claro! Era muito estimulante. A gente fazia teatro e acreditava que aquela peça ia transformar o mundo. A gente fazia com fé, com empenho, com paixão. É muito bom quando o ser humano se permite viver com essa intensidade. 

1969: Marieta e Chico na maternidade em Roma durante o exílio posam com Silvia, a primeira filha - Crédito: Reprodução

Mas o mundo não só não mudou como ficou mais careta...
Bom, depois que você saca que não pode mudar o mundo todo, acaba restringindo um pouco [risos]. Mas não importa, o que é maravilhoso é que esse ímpeto seja estimulado no jovem porque é nessa época que você tem que acreditar que pode mudar o mundo. Fazer parte de uma geração como a que veio com a ditadura, que não tinha a oportunidade de canalizar esse ímpeto que é inerente ao jovem, é muito triste. Aí começam as drogas sem a intenção de experimentação, aí começa essa força que vai sendo mal canalizada... 

Mas era só engajamento? Porque viver só disso deve ser um porre.
[Risos.] Claro que não era só isso. A gente cantava, jogava frescobol, ria muito. Antes da ditadura, era efervescência pura. Em 68, a cortina caiu e me lembro de pensar: “Caramba, minha juventude está indo embora numa ditadura. E isso ninguém vai me dar de volta”. 

Nessa época, as mulheres queimavam mesmo sutiã ou isso era uma metáfora?
Sei que hoje parece ridículo, mas a gente tinha que chamar a atenção. As pessoas perdem a noção da repressão. Essas mulheres que radicalizaram foram úteis. Às vezes precisa radicalizar. Sabe, tem que ter uma maluca, uma louca para começar o movimento de mudança. 

“Nunca fui ver o sol se pôr em Ipanema. A essa hora provavelmente estava amamentando, trocando fralda, fazendo uma peça”
Marieta Severo

Tem que exagerar.
Tem que exagerar para depois equilibrar. Vai pra rua, queima sutiã. Isso tudo teve muito sentido e, na época, eu era a favor, embora nunca tenha pessoalmente queimado nenhum [risos]. Nunca fui uma militante da causa feminista, no dia seguinte tinha que amamentar. 

Você era um núcleo meio careta dentro disso, né?
Era bastante. Porque tive filho muito cedo. Engravidei da Silvinha com 21. Sempre tive muita vontade de ser mãe. Então, com 24 eu já tinha duas filhas. Com 27, três. Não era uma jovem solta que ficava lá no píer vendo o sol se pôr. Nunca fui ver o sol se pôr em Ipanema. Porque a essa hora provavelmente estava amamentando, trocando fralda, fazendo uma peça [risos]. 

Mas você também se permitiu experimentar, não?
Não vou dizer que nunca fumei maconha ou tomei ácido. Era impossível ir a um lugar e não ter um fumo passando. E o ácido tinha um sentido de pesquisa, de se conhecer melhor. Só que nada disso tinha a conotação que tem hoje. Hoje isso está ligado à violência, ao abuso, ao dinheiro sujo. Antes, fazia parte de uma certa poesia que tinha esse movimento de ruptura. Mas para mim o principal era criar minhas filhas. Então, não havia tempo para pirar. Eu pensava: “Piro ou não piro?”. E a resposta era sempre: “E se não der conta? Não posso, tem criança em casa me esperando para comer”. 

E o exílio no meio disso tudo?
Foi no ano de 69. Nós saímos do Brasil em janeiro de 69 e voltamos no meio de 70. 

Vocês tiveram que sair da noite para o dia?
Não. Estava grávida de sete meses da Silvinha, e o Chico tinha que ir a uma feira de música em Paris. Fomos para ficar só o mês de janeiro porque eu precisava voltar para ter filho. Só que aí prenderam o Caetano e o Gil, a ditadura começou, o AI-5 disse a que veio. 

Aí vocês não voltaram?
Começamos a receber recados de que, se o Chico voltasse, ele ia do aeroporto para o quartel. O recado era esse. E nós, aqueles dois jovens perdidos na Europa. 

Você era filiada a algum partido?
Não. O Chico incomodava por causa das letras, das posições que ele assumia em suas composições. No teatro a gente tinha que se apresentar para ser avaliado pelo censor. Aqueles famosos ensaios gerais. Mas vivíamos inventando maneiras de driblar o censor. 

O que no fundo era um grande exercício de criatividade...
Olha, eu acho isso uma coisa muito duvidosa, sabe? O que estimula criatividade é liberdade. Claro que se criam mecanismos. Foi a época das metáforas, mas isso não é o melhor, o melhor é a liberdade. Fica definitivamente combinado que o melhor é sempre a liberdade. 

E como foi não poder voltar para casa e ter que parir na Europa?
Acho que é a pior sensação. Em mim, o efeito foi imediato. Perdi 6 kg no oitavo mês de gravidez. A gente era muito jovem, não sabia direito como fazer, o que fazer. Passamos momentos duros lá fora. 

E por que vocês escolheram ficar na Itália?
Porque era onde o Chico já tinha um pequeno campo de trabalho. Os exilados todos iam para Paris, né? Mas o Chico tinha morado na Itália na infância, então tinha uma coisa afetiva. Eu tinha saudade de feijão, tinha desejo de feijão, precisava comer feijão, queria feijão, só pensava em feijão preto. 

Da esq., para a dir., como a dona Nenê em a Grande Família; com a melhor amiga, Andréa Beltrão, na peça a Dona da História, em 97 e com os pais, o irmão Luíz e a irmã Lúcia, em 1996 - Crédito: Arquivo pessoal

Sua vida ficou de pernas para o ar?
Voltamos quando a Silvia tinha um ano e meio. Dentro do que aconteceu, nossa repressão foi leve. Não quero ficar como mártir porque aconteceram tragédias com outras pessoas. 

E como foi a volta?
Trouxe da Itália a idéia de adaptar com amigos a Ópera dos Três Vinténs. A gente se reunia na minha casa, e o Chico ficava rondando. Ele começou a participar um pouco, foi se empolgando e falou assim: “Vocês não querem que eu escreva isso?”. E a gente: “Claro!” [risos]. Daí nasceu a Ópera do Malandro. O texto é dele. E as músicas são deslumbrantes, né?

Como é existir socialmente sozinha depois de 30 anos sendo uma dupla?
Não contava com essa dificuldade quando me separei. Era muito difícil para as pessoas me verem sozinha. A gente foi um casal público durante 30 anos. Era sempre Chico e Marieta. As pessoas não sabiam como lidar comigo sozinha. Talvez também não soubesse chegar, era complicado. Ficava horas conversando com as mulheres com medo de que elas achassem que estava querendo alguma coisa com os maridos delas. Uma paranóia. 

“O Chico é meu melhor amigo, a primeira pessoa com quem vou falar numa situação difícil”
Marieta Severo

O fato de você e Chico terem continuado amigos ajudou?
A gente soube viver isso de uma maneira que me deixa muito feliz e a ele também, e às nossas filhas. Vejo casais que se separam e não se falam mais e fico chocada porque aquela é a pessoa que você escolheu para dividir tua vida. O Chico é meu melhor amigo, a primeira pessoa com quem vou falar numa situação difícil.

Passada a turbulência, que tal estar em vôo solo?
Não é melhor nem pior, é outra história. Acredito muito nos roteiros da vida. Então, de repente, você se redescobrir sozinha, sem nenhuma dessas referências, sem nenhum desses espelhos, e mudar, aprender a ser de um outro jeito, é muito bacana. 

Quais os grandes baratos dessa nova fase?
Em geral, para a mulher, os desejos de todo mundo vêm antes do próprio. Simplesmente porque satisfazer os desejos de quem se ama te dá prazer. Então, se todo mundo quer ir numa pizzaria, você não vai dizer: “Ah, eu não quero comer pizza hoje”. Você vai ficar tão feliz de a família toda estar feliz comendo pizza junto que vai comer a pizza que nem estava a fim de comer. 

E agora, que tal comer outra coisa?
Eu adoro pizza. Nem sei porque usei pizza como exemplo [risos]. Descobrir as tuas vontades é um barato. De repente, me via com vontade de ir para Salvador ver meus netos, entrava num avião e ia. Ou falava: “Esse fim de semana vou pra São Paulo. Vou ver exposições, vou ver sei lá o quê”. E pronto, não tenho que me arrumar com ninguém, não tem essa coisa de meu marido, de encaixar horários. A gente tinha uma coisa muito grudada e muito ligada, de fazer as coisas junto, que é muito legal também, mas, enfim, redescobri coisas. Não, eu descobri coisas. Porque sempre fui casada. Saí de casa para casar e para casar de novo [risos]. 

E essa bolha dentro da qual você conseguiu manter suas vida privada? Foi planejado?
Sempre achei que é melhor separar vida privada da pública. As pessoas se alimentam de aparência, de uma foto, de uma capa, de um convite para uma festa badalada. Todos os momentos da vida parecem ser compartilhados com o público. Não tenho necessidade disso. Mas não tenho nada contra quem gosta. 

Em sentido horário: com a filha caçula Luísa, 1980; com Helena no colo, em 1974; com a primogênita Silvia, em 1977 - Crédito: Arquivo pessoal

Sua vida sempre foi comum?
Comunérrima. Não tem glamour nenhum. É dor de dente, briga com as crianças que deixaram tudo fora do lugar, com quem não fez a lição, é muito normal. Eu saía de casa para ir trabalhar, deixava as crianças com a babá e tinha culpa sim. Como qualquer outra mulher. Ah, o glamour! A gente na banheira, com rosas em volta... Que banheira?! Não dá tempo nem de tomar banho direito [risos]. 

As meninas reclamavam quando você saía para o teatro?
Várias vezes saí de casa com uma filha pendurada: “Manhêêê, a que horas você volta?”. E eu morrendo de culpa, pensando: “Ai meu Deus, será que não é melhor ficar em casa?”. As dúvidas estavam por todos os lados. Isso é igual pra todo mundo. Uma vez cheguei em casa, e uma das meninas falou: “Mãe, não tem milho pra pipoca?”. Eu quase morri. Aquilo era uma culpa, um desleixo, eu era a última das mães. Como fui deixar acabar o milho para a pipoca? [Risos.] 

Você é dessas mulheres super-responsáveis em tudo?
Demais até. Em casa, sempre me ocupei das coisas todas: o contábil, o escritório, as relações com amigos. O Chico é mais desligado, sempre foi. Então, o pé na realidade sempre foi mais meu que dele. 

Como era a rotina da família?
Almoço no domingo sempre foi sagrado. Lembro que saía depois do almoço para fazer a matinê e, quando me mexia muito no palco, dizia: “Ai, acho que vou vomitar, o cozido tá subindo”. Era ou cozido, ou feijoada, ou galinha ao molho pardo [risos]. Aí chegava no intervalo e eu: “Pelo amor de Deus, Coca-Cola, Coca-Cola!”. Todas as noites dava o jantar para as meninas e ficava com elas antes de ir para o teatro. Mas nunca acordei cedo para levar à escola. 

E quem levava?
Eu tinha babá e chofer. Tinha uma vida que me facilitava em algumas coisas porque chegava do teatro meia-noite, ainda ia jantar, então não dava para acordar às seis e meia da manhã com filho. Mas eu acordava às dez e ia buscar na escola. Meu dia começava assim. 

Você era o tipo de mãe que conversava com as filhas sobre drogas e sexo?
Ah, se falava de tudo lá em casa. Mas a criança vive do que ela capta no ambiente dela. Não adianta fazer discurso se isso não corresponde à realidade. Como o jantar em família dependia de minhas peças, fazia questão de que almoçássemos sempre juntos. E era nessa hora que se falava abertamente. O segredo era responder às perguntas delas com sinceridade e simplicidade, e a gente percebeu isso rápido. 

A Bebel Gilberto [filha de Miúcha, irmã de Chico] contou que você foi como uma segunda mãe para ela. 
Que gracinha! Eu me lembro dela garota, recém-chegada do México, entrando lá em casa e falando: “Io quero banána”. Elas são primas-irmãs, as minha filhas e Bebel e Janaína [filha de Leila Diniz e do cineasta Ruy Guerra]. É uma irmandade muito bacana. 

Em sentido horário: com as filhas Sílvia e Luísa em um evento social; com a amiga Leila Diniz na novela Anastácia, a Mulher Proibida, em 1967; e no espetáculo Roda Viva, em 1968 - Crédito: Arquivo pessoal

Leila Diniz [atriz e primeira mulher a usar biquíni em plena gravidez, morta em 72, aos 27 anos, em um acidente de avião] era sua melhor amiga?
Era. Leila exerceu a liberdade dela de ser mulher de maneira exemplar, tanto é que virou esse ícone, né? Ela tinha um comportamento livre e alardeava isso. Na minha família, não havia hipótese de que você falasse palavrão, e a Leila falava muito palavrão. A primeira vez que ela foi à casa do meu pai, sentou à mesa e foi mais Leila que nunca. E meu pai adorou. Ele ria daquela menina com 20 anos a quem chamou de boca suja. Era o jeito de ela se expressar e era tão sincero, que todo mundo era encantado com a Leila. 

A morte dela foi das mais prematuras, não é?
Ah, foi horrível, um dos maiores baques da minha vida. E a Leila era eterna, né? A Leila era tão símbolo de vida que ela morrer era uma contradição. Em todos os sentidos. E essa morte de uma pessoa que explode no ar! Não conseguia conceber isso.

Como é ser sogra do Carlinhos Brown?
Eu nem conhecia o Carlinhos quando a Lelê [Helena] começou a namorar ele. Ela foi passar um Carnaval na Bahia e começou a namorar. Depois fui sabendo quem ele era e fui me apaixonando também, porque o Carlinhos é uma pessoa especialíssima. Então ele foi se aproximando, e aí a gente aprendeu a falar aquela linguagem dele. Olha, ele é delirante, mas tem uma lógica no pensamento que é só dele. No fundo ele deve achar que a gente é que é delirante [risos]. Ele tem uma cabeça que está em evolução, o pensamento dele, quando você começa a penetrar, tem uma lógica absurda. E tem uma coerência e uma justeza, sabe, de atitude, do que ele pensa com o que ele faz. É maravilhoso. Ele tem uma mistura de sofisticação que você não sabe de onde vem porque ele é uma pessoa que teve poucos recursos para estudar, então não vem de estudo, mas vem de uma antena absolutamente requintada, fina, que se mistura com uma coisa popular. Você vê ele passando pelas ruas da Bahia, e ele é rei. Rei sem querer exercer reinado nenhum, entendeu? Isso é que é bonito. 

E você vê alguma coisa dele nos seus netos?
A menorzinha [Clara, 6 anos] é animada igual a ele. Assim de falar com todo mundo, extrovertidaça. 

Qual sua maior emoção como mãe?
Acho que a maior emoção é ver sua filha parindo. É uma coisa inenarrável. Eu vi três vezes. Nossa, não tem emoção maior.  

Maior do que dar à luz?
Mais. Essa coisa da vida continuando, né? De ir passando o bastão e ver a tua filha passando o bastão. É lindo.Você fala: “Ah, então tá certo: eu vim aqui para isso e, no meio tempo, fui ser atriz” [risos].

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