Poderosa Bianca Comparato
A atriz deixou a Globo para fazer projetos mais independentes. A coragem de escolher um caminho fora do mainstream a levou ao papel de protagonista da primeira série brasileira da Netflix, 3%
Num futuro distópico, 97% da população brasileira vive na miséria, com escassez de água, comida e recursos naturais. Os 3% restantes moram numa ilha de abundância. Todo ano abre-se um processo de seleção de jovens de 20 anos para ingressar na elite. “Infelizmente não é algo tão distante da nossa realidade, em que 1% da população global detém 99% da riqueza mundial”, comenta Bianca Comparato, protagonista de 3%, primeira série original brasileira da Netflix, com estreia em novembro.
Bianca é Michelle, a heroína da história. “A princípio ela aparenta ser uma jovem inocente, que sonha em passar no processo seletivo. Mas ela esconde outras intenções, tem ambições políticas e é contra a divisão dos dois mundos”, explica a atriz carioca de 30 anos, que passou quatro meses em São Paulo por conta das filmagens.
Um farol
Nascida na zona sul do Rio, filha do escritor e roteirista Doc Comparato e da fonoaudióloga Leila Mendes, Bianca cresceu em meio aos privilegiados. “Minha família morava num apartamento na Lagoa e estudei na British School, uma bolha da elite carioca. Tinha filas de motoristas buscando as crianças na escola. Mas em casa tive uma educação pé no chão, aprendi cedo a correr atrás das coisas.” O inglês impecável lhe rendeu o convite para participar de Beyond the map, projeto do Google lançado às vésperas da Olimpíada em que a atriz apresenta ao público estrangeiro a vida dos moradores de favelas como Vidigal e Complexo do Alemão.
Com tipo mignon – 1,54 metro de altura e 44 quilos –, Bianca exibe um respeitável currículo de nove longas, dez séries e seis novelas, incluindo a célebre Avenida Brasil (2012). A moça coleciona elogios por onde passa. “Bianca é um farol. Dessas atrizes que engrandecem a profissão. Tem coragem nas escolhas, é cheia de som e fúria”, escreveu Selton Mello, que a dirigiu em Sessão de terapia (2013). César Charlone, diretor de 3%, concorda: “Trabalhar com Bianca é um presente. Ela mergulha com tanta intensidade no projeto que você pode ficar tranquilo, pois terá alguém pensando em todas as possibilidades para a personagem. Bianca não precisa de texto para dar intenção, ela o faz com maestria através de mínimos gestos e expressões de rosto”.
Em dois encontros em São Paulo – num café no bairro da Vila Madalena e num intervalo das filmagens de Todas as razões para esquecer, longa de Pedro Coutinho em que Bianca contracena com Johnny Massaro – a atriz falou à Tpm.
Tpm. Como foi a chegada dos 30 anos para você?
Bianca Comparato. Cara, queimei minha língua. No meu aniversário, em novembro, falei: “Opa, escapei ilesa. Crise, que crise?”. Dali a quatro meses minha vida virou de cabeça para baixo. Terminei um relacionamento, vim para São Paulo fazer o 3% e agora estou atrás de uma casa nova no Rio. Ainda estou no meio do turbilhão.
Você tinha a ideia de que a essa altura da vida já teria casa própria, casamento, filhos e cachorro? Deixei esse pacote para os 40 [risos]! Na verdade, tinha mais ambições profissionais, sempre fui muito workaholic.
Tem o sonho de casar e ter filhos? Tenho. Quero muito ser mãe, ter uma família grande, uns três filhos. Não posso ver criança que já quero pegar no colo. Deve ter hormônio envolvido nisso, claro, acho que bateu a tal crise dos 30 [risos]. Quero engravidar e também adotar.
Você não gosta de falar sobre a vida pessoal. Por quê? Acho doente essa indústria da fofoca, já vi tantos amigos sofrendo com a intimidade estampada numa revista. Quando você lê, parece uma coisa menor, mas, cara, é a vida de alguém. Uma vez que você abre a sua vida, não dá pra fechar, então tem que colocar limites. O artista que é discreto, a imprensa tem um respeito maior. Você não vê a cara dos filhos do Wagner Moura por aí.
Muita gente acredita que no futuro todos vão ser bissexuais, que não vai existir essa divisão entre gostar de homens ou mulheres. Qual sua opinião sobre isso? Hoje em dia acho que nem esses rótulos de bissexual ou homossexual servem mais. É humano com humano, pessoa com pessoa. Não é porque uma mulher se veste como homem que ela gosta de sair com mulheres. Tem uma amiga que chama isso de híbrido. É a geração x, aquela coisa de meninxs. Acho lindo que esta geração esteja vindo sem rótulos.
Esta edição da Tpm fala sobre liberdade. Você se considera uma mulher livre ou se preocupa muito em corresponder às expectativas dos outros? Sigo muito o meu coração e isso é libertador. Mas vivi boa parte da minha vida fazendo as coisas para os outros. Me formei em comunicação social na PUC para cumprir o papel de filha porque era o desejo dos meus pais que eu tivesse um diploma. Faço análise há nove anos e aprendi a me escutar mais. Ouço o que os outros têm a dizer, mas a decisão final é minha.
“Saí da zona de conforto da Globo para fazer projetos de baixo orçamento”
Bianca Comparato
Largar a Globo para se dedicar a projetos mais experimentais tem a ver com isso? Sim. Minha carreira é total reflexo disso. Depois de sete anos, saí daquela zona de conforto da Globo para ir atrás de projetos muitas vezes de baixo orçamento. Foi quando surgiu A menina sem qualidades (2013), com o Felipe Hirsch, e depois Sessão de terapia, com o Selton Mello, dois trabalhos dos quais tenho muito orgulho.
Conseguiu ficar rica como atriz? [Risos] Acho que a maior riqueza de um ator é poder escolher em quais projetos vai trabalhar e isso eu tenho. Tenho um imóvel, mas é de família. Se tivesse ficado na Globo, a essa altura poderia comprar um, mas não foi o caso.
Sente saudades da Globo? Sinto, porque tenho uma relação muito próxima, cresci ali acompanhando meu pai nos sets. Ele escreveu minisséries como Lampião e Maria Bonita e Malu Mulher. Minha irmã mais nova, a Lorena, é atriz da Globo. Ela fez a Abigail em Pé na cova e está no elenco da próxima novela das 7.
Apesar de não ser nenhuma garota, você tem cara de adolescente. Gosta de ser mignon? No passado isso já me incomodou, pensava: “Caralho, sou muito pequena!”. Mas aí decidi virar o jogo e usar a meu favor. Hoje amo ser mignon, é o meu ponto forte como atriz. Meu primeiro papel de destaque numa novela da Globo, a Maria João, de Belíssima, consegui por causa do tipo físico. Ana, a adolescente de A menina sem qualidades, também, assim como a Irmã Dulce (2014). Acho que amplia minhas possibilidades de atuação, posso fazer diferentes faixas etárias.
O César Charlone elogiou sua atuação em 3%. Como é seu processo de criar um personagem? Em 2009 fui curadora de uma mostra sobre o Marlon Brando, que fala sobre ser ator e autor. Antes o ator recebia a fala, decorava e fazia. Hoje o bom ator é coautor do personagem, e o Marlon Brando foi pioneiro nesse sentido. Sindicato de ladrões (1954) tem uma cena famosa dele no táxi falando: “Eu poderia ter sido alguém, um boxeador. E olha o que eu sou, eu sou um merda”. A cena tinha sido escrita com o irmão apontando uma arma. O Brando chegou no set e falou: “Olha, não dá pra fazer desse jeito. Tô abrindo meu coração, não dá pra ter uma arma na minha direção”. E convenceu o diretor a mudar a cena. Gosto dessa interferência do ator. E para isso você precisa de tempo, fazer um trabalho de cada vez, fazer boas escolhas.
Você passou parte da infância em Portugal. Como foi essa época? Morei em Sintra dos 4 aos 11 anos porque meu pai foi trabalhar na SIC, equivalente à Globo lá. Foram sete anos mágicos. Olhando para trás, acho que Portugal me alimentou criativamente. Eu me sentia uma princesa porque a gente vivia numa quinta com lago, jardim e bosque. Uma vez a Stella Marinho, ex-mulher do Roberto Marinho, ficou hospedada em casa. Ela descia para jantar toda linda. Eu subia pra vê-la se maquiar. Ela me dava o casaco de pele pra experimentar, fiquei obcecada por ela!
Quando você decidiu se tornar atriz? Uma vez tirei nota máxima num curso de teatro na escola britânica e me convidaram para fazer um summer school em Londres, na Royal Academy of Dramatic Art. Eu tinha 16 anos. Fui fazer um monólogo de Shakespeare. A professora foi me puxando, me puxando no palco. Ali a coisa me pegou.
Como você lida com a fama e o fato de as pessoas reconhecerem você na rua? É o lado que eu menos curto da profissão. Por exemplo, eu amo o BB Lanches, no Leblon. Mas penso: “Vou no BB? Será que vai ter paparazzi lá?”. E nem tenho o nível de assédio de um Cauã Reymond, mas mesmo assim às vezes prefiro ficar em casa.
Já sofreu algum episódio de depressão? Nunca tive isso de não querer acordar nunca mais. Mas tenho uma coisa que dizem que é do meu signo, escorpião. O escorpião se esconde na toca para trocar de pele e voltar renovado. Se estou num momento mais sensível, me entoco em casa, para voltar mais forte depois.
“Ser mignon já me incomodou no passado, hoje uso a meu favor”
Bianca Comparato
O que gosta de fazer nas horas vagas? Valorizo muito o ócio. Gosto das coisas mais simples: ir ao cinema, ler, sair com os amigos e viajar. Pratico sempre algum esporte. Treino muay thai duas vezes por semana e musculação uma vez por semana. Também faço levantamento de peso. Dá uma empoderada, nunca tive tanta força como agora.
Tem vontade de seguir carreira nos EUA? Já recebeu convites de Hollywood? Fui convidada para coisas pequenas, mas não é algo com que eu sonhe. No Brasil, só trabalho com gente que admiro, lá teria que começar do zero. Mas quem sabe mais para frente? Penso um dia depois do outro.
Que personagem sonha em fazer? A Nina, de A gaivota, do Tchekhov. É uma aspirante a atriz que vai a Moscou e dá tudo errado. A peça mostra essa loucura da vida, de que não vai ser tudo bonitinho e organizadinho como a gente gostaria. Eu me identifico com isso. O Gilberto Gil fala uma coisa linda sobre a simultaneidade da vida. A gente quer que ela seja organizada, mas ela é simultânea, uma coisa embola na outra, a gente não tem muito controle sobre ela. Essa é a beleza da vida.
Créditos
Mariana Maltoni