Nas entrelinhas
A jovem escritora pernambucana Débora Ferraz se destaca na literatura e conta: “Escrevi o livro todo à mão”
Logo depois de começar a escrever Enquanto Deus não está olhando, o pai de Débora faleceu de forma inesperada. Abalada, mas não menos determinada, deixou o projeto de lado. “Estava numa situação delicada, ainda mais para mexer em um livro desse teor. De forma alguma queria que ele virasse um consultório sentimental”, conta. A história gira justamente em torno da busca pelo pai. “Até pensei em abandonar o projeto pra sempre, mas depois de dois anos percebi que já poderia voltar”, diz. E, sempre à mão, preencheu mais de 20 cadernos.
Logo nas primeiras páginas, a frase “tragédias são coisas boas para a vida de um artista” dá a entender que o luto da autora está ali e, quem sabe, justifique a força literária da obra. O livro já arrematou dois prêmios, o Sesc de literatura de 2014 e o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autores estreantes com menos de 40 anos, no fim do ano passado.
Nas 368 páginas, Érica, a narradora de 24 anos, segue os passos do pai alcoólatra que desapareceu depois de fugir de uma clínica. A agonia da jovem, que está dividida entre a publicidade e as artes plásticas e lida com a entrada na vida adulta, é acompanhada pelo amigo Vinícius. Débora já entrou de cabeça num novo projeto. “É a história de uma mulher que tem como objetivo de vida tatuar o corpo todo”, revela. E o glamour da vida de escritora? “Que glamour? Se fizessem uma série sobre escritores com base em mim seria a coisa mais chata do mundo”, brinca.
Leia com exclusividade um trecho do livro:
O FIM DO MUNDO CHEGOU CEDO DESTA VEZ. Subo ladeira. A rua de paralelepípedos está deserta apesar de não passar das oito da noite, e à minha volta só as casas, pequenas e imóveis, é que, vez por outra, dão qualquer sinal de vida hu-mana. Casa sim, casa não, há uma janela aberta com uma luz acesa. Eu diminuo o passo. Procuro campainhas com a vista. Mas foi muito cedo desta vez. E eu já vinha suficientemente dilacerada para ainda me incomodar com o :fim do mundo ou com qualquer coisa.
- Érica!
Continuo subindo. As poças d'água se espalliam pelo pavimento. Elas molham a barra da minha calça jeans e meus coturnos chiam soltando pequenos jatos toda vez que piso. É impossível não pensar que o couro nunca mais voltará a ser o mesmo. Impossível não considerar a hipótese de desistir logo de uma vez dessa operação toda. Os músculos da coxa, fadigados do esforço, se retesam contra o percurso íngreme. Dilacerada demais... repito pramim. E já nem me refiro à dor de cabeça, aos cortes, nem aos calos em sangue. Paro de pé no meio da rua, no centro da ladeira. Falo de algo muito maior. Algo como um cansaço tão supremo que me impede de responder aos chamados dele ecoando pela rua.
- Érica!
Ele ainda não havia dobrado a esquina, mas já era possível ouvir seus passos ecoando pelo quarteirão. Teria respondido um "Está tudo bem", e visto se ele, finalmente, desistia. Já era a sexta rua, com aquela, que ele caminhava atrás de mim, sempre a exatos vinte passos de distância. Sei porque contei. Do portão da casa dos tios, descendo a avenida, virando a esquerda, cruzando a praça nova, subindo uma, depois duas grandes elevações, virando novamente até chegar ali.
- Responde
Mas gritar de volta seria um esforço muito além da minha capacidade. Desisto. Deixo o corpo relaxar apoiando o peso com as mãos nos joelhos. E quando volto a olhar pra cima, naquela posição, a linha do horizonte é o topo da rua. É tão íngreme que não dá para ver o que se esconde além. Do meu ponto de vista, só haveria o céu: um céu sem nenhuma estrela, pesado de nuvens. Emplastros de azul-ftalocianina com branco de titânio e ultramar-claro. Um paredão demarca: aqui termina tudo.
- Saia daí! - ele grita ao pé da ladeira. - Se vem um carro em alta ...
Um cansaço antigo. É isso. Que outra explicação haveria para o fato de, agachada ali, meu cérebro trabalhar sozinho tentando adivinhar que azul era aquele no céu e empenhar-se em misturas imaginárias de tons como se compusesse, de ca-beça, um tubo de tinta?
Ele também reduz o ritmo logo no décimo passo. Escuto sua respiração arfar quando, com dificuldade, ele insiste. "Não pode ficar aí", e tenta a caminhada rápida. Ainda se houvesse qualquer som de carro ou de gente... Então é com um cansaço ainda maior que apenas me arrasto para o canto e deixo o corpo cair sentado no meio-fio.
- Qual é o seu problema? - ele resmunga. Senta ao meu lado e escora as costas na parede formada pela calçada alta. Eu observo seu rosto branco reluzir de suor.-Aonde pensa que está indo?
É uma boa pergunta. Aonde eu pensava que estava indo?
Vinte e quatro anos sem chegar a nada, sem ser exatamente nada. Quase nenhum amigo e só uma resposta pronta: Estou caminhando em uma busca artística. Ou: Estou procurando meu estilo. Ou: Estou buscando expressão. Minha vida, mesmo, ainda está para começar. Ou, ainda: Procuro meu pai. Você conhece este homem?
- Eu precisava de um cigarro -respondo. E não tem nenhuma bodega aberta porque é domingo. Ele ergue uma so-brancelha, abaixa a outra. E desde quando eu fumo?
Aonde eu estava indo agora, era o que ele queria saber. Agora, oito da noite, protestando calada contra a situação no meio-fio: Que não pode ser - eu me digo. - Isso de cuidar dos pais não devia vir só depois de nos tornarmos adultos?
É nesse ponto que vou contra minha carteira de identidade. Ela é que diz: Vinte e quatro. Parece adulto o suficiente para você?
- Não pode sair assim-ele se limita a dizer. - Tua família fica me olhando de um jeito esquisito quando você não tá por perto.
Ficavam olhando desse jeito esquisito para qualquer um. Olham pra mim como se eu fosse uma atração de circo. Minha família é esquisita, essa é a verdade. Se fosse uma família normal eu, por acaso, precisaria estar assim?
- Ele não tá aqui.
- Seu pai?
Confirmei com a cabeça. O ressentimento é uma força que nos põe muito violentamente no nosso próprio lugar. Ele olha pro lado, como se duvidasse. Mas sei que não está aqui. Andei feito louca nesta cidade. Visitei todos os parentes. Fui bater em fazendas afastadas do Centro. Procurei em todo lugar. Ele havia desaparecido mesmo desta vez. Não deixou nem rastro
- Quer tomar uma bebida? - Ele estende o pequeno reei-piente de uísque. E qualquer um, menos eu, se perguntaria por que ele me oferece bebida em uma hora como essas? Eu observo os jeans de Vinicius, desgastados, azul da prússia com muito branco de titânio. Enquanto escuto uma moto se aproximar de onde estamos. -Posso mesmo? -É. Vai fundo. Sei lá. Vai que anestesia. Reorganiza as ideias.
O som do escapamento cresce, cada vez mais alto, beira o insuportável, mexe com algo dentro do peito.
Mas se digo que o ressentimento e o meu pai são os respon-sáveis pelo meu estado isso é só a minha versão sobre os fatos. E o coração vai reagindo ao som. Eles furam o cano da moto pra fazer esse barulho. Eu bebo o uísque. Vinicius explica mi-nhas cabeçadas de outro jeito, com as leis de Newton: Que um corpo tende a manter seu estado de repouso ou movimento a menos que alguma força incida contra isso. Muito natural eu estar assim, ele diz no ápice do zunido, quando a moto parece tão prestes a explodir nossos tímpanos e acabar com tudo ao redor, mas quando, em vez disso, o som gradativamente diminui, diminui... Até ficar inaudível. Eu lhe devolvo o frasco vazio e mostro minhas mãos tremendo.
- Você vai querer me dizer que isso é muito natural? Que pais abandonam filhos e esposa nesse estado? Veja só como estou.
- É natural, sim - ele diz, guardando o frasco -, mas não deixa de ser foda.
É aí que entra a bebida. E eu entendo o conceito de inércia porque há menos de quarenta e oito horas eu tinha um plano. Quero dizer, era uma boa clínica, aquela. Estava tudo sob controle. Eu tinha um ateliê em construção. Bairro nobre perto do mar. Internet, TV a cabo, sobremesa, pedido de demissão encaminhado, porta batida na cara do chefe...
Agora avance, pelo menos, quinhentos quilômetros numa estrada a oeste. Suponha um lugar absurdo onde supermercados, lanchonetes e farmácias não abrem no domingo, onde pessoas chegam sem avisar umas nas casas das outras, onde elas não apenas me conheciam sem que eu as conhecesse, mas também me chamavam pelo ilustre codinome de "a filha de Aluízio", e Aluízio, o meu pai, estava desaparecido. Volte ao início. Não há mais plano algum. O que fazer?
- Podemos procurar um boteco.
- Não tem nada aberto aqui no domingo, já disse.
- Independente da cidade. Sempre há botecos aos domingos.
Há dois dias Vinicius também não sabia grandes coisas sobre mim. Teria dito: "Érica ... conheci, sim, era minha amiga, mas faz tempo que não vejo." Eu olho para ele. Mochila nas costas, camiseta branca, de ontem, encardida. Sombra natural com pinceladas de branco. Ele também, talvez, não tenha dado conta de que o tempo passou. De que outro modo se explica que ele esteja aqui comigo, agora? Não é razoável.
- Você não conhece essa cidade - eu digo, já olhando em volta. - Essa cidade-continuo-é um buraco. E não digo um buraco metafórico, falo de um buraco real. - A náusea chega, uma lava ácida alcança o esôfago. - Ela foi acontecendo, sim-plesmente. Na cova que ficava entre o conjunto de serras. Uma cova! Todo mundo aqui está morto e ninguém avisou. -Penso comigo: 3 de março não é muito cedo para a chuva? Porque isso é o que eles dizem. -Todos mortos, estou lhe dizendo. Isso aqui é o fim do mundo.
- Se você diz ...
Eu teria dito que era isso: minha vida mudou. Que não adiantava pensar em tinta, em espátula. Não adiantava pensar em pintura. Eu tinha outra vida pra dar conta e, nisso, estava atrasada. A maturidade sem poder mais esperar. É amanhã. Amanhã essas aspirações românticas estarão tão desapareci-das quanto meu pai. Mas ele não entenderia. Eu sei disso. E se eu sei é porque minha própria cabeça ainda está a quinhentos quilômetros dali.
- Preciso ir pra casa.
- É melhor -ele diz guardando de volta o frasquinho. - Tá todo mundo meio alarmado com essas tuas saídas ...
- Não digo a casa dos meus tios. Digo minha casa, mesmo. Cansei dessa cidade. Ele não voltaria pra cá.
Mas, na visibilidade pouca e com aqueles cinco anos de nebli-na recobrindo nossa amizade, ele não lê mais meus pensamentos e eu também não quero que ele diga logo: "Seu pai... acho que ele não volta dessa vez. Eles nunca voltam." Uma moto desce a ladeira na banguela. Nenhum ruído. Tão rápido que salto de susto. Mas ele apenas assente, com um ar nostálgico, e ainda sentado, responde.
- Certo. - Apoia as mãos nos joelhos e faz força com elas, se põe de pé. - Na rodoviária deve ter uma bebida pra mim. E deve ter cigarros lá, também.
Vai lá: Enquanto Deus não está olhando, ed. Record, R$ 45