Engordar para emagrecer

Regimes doentios, cirurgia de redução do estômago: o que está acontecendo com a mulherada?

por Ariane Abdallah em

Você não leu errado. E deve conhecer alguém que resolveu engordar para fazer a cirurgia de redução do estômago. Nesta reportagem, você des­cobre como mulheres obesas têm sido tratadas pela sociedade – e descuidadas pelo sistema de saúde

Laila pesa 108 quilos. Apesar de usar uma blusa que exibe o colo, ela não está satisfeita com seu corpo. Decidiu então que, se for preciso, engorda mais 11. Para, assim, chegar aos 57 quilos. Provavelmente você já ouviu falar de alguém nessa si­tua­ção. Porque Laila, 25, assim como Luciana, 26, Natália, 23, e Ana Luiza, 25, é protagonista de um fenômeno cada vez mais comum no Brasil: meninas que engordam até se tornarem obesas mórbidas para poder fazer a cirurgia de redução do estômago. Aquela que faz a pessoa ingerir apenas 200 gramas por refeição e emagrecer até 50 quilos em seis meses.
Mas por que uma pessoa que pesa mais de 100 quilos e quer emagrecer come para engordar? Trata-se de uma conta indispensável para reduzir o estômago sem ter que pagar médico particular. Isso porque os convênios e o Sistema Único de Saúde (SUS) só cobrem o procedimento se o paciente tiver o Índice de Massa Corpórea (peso dividido pela altura ao quadrado) recomendado pe­la Federação Internacional para Cirurgia da Obesidade (IFSO) e adotado pelo Conselho Federal de Medicina.
Ou seja, a decisão de quem pode ou não ser operado fica res­trita a um mecanismo de triagem falho, que padroniza as pessoas como se todos os organismos fossem iguais. O cirurgião norte-americano Mathias Fobi, criador de uma das técnicas mais usa­das no mundo, concorda. “O IMC é um critério arbitrário. É claro que fiscalizações são necessárias para que não se faça disso um negócio, mas é preciso analisar cada paciente”, diz à Tpm. Se­guindo as regras estabelecidas, estão aptas à cirurgia pessoas com o IMC a partir de 40 (obesidade mórbida) ou pessoas com o IMC a partir de 35 (obesas grau II) desde que tenham doenças liga­das ao excesso de peso (como diabetes, hipertensão e apnéia do so­no). Thomas Szegö, cirurgião do Hospital Israelita Albert Eins­tein, de São Paulo, defende a análise caso a caso.“Se depender de mim, uma moça que pesa 110 ou 120 quilos vai para a mesa de ope­ração mesmo com 37 de IMC. Às vezes um distúrbio psicossocial é mais grave do que um colesterolzinho um pouco alto”, justifica. “Precisamos ser médicos antes de ser burocratas”, atenta Arthur Garrido, precursor da moderna cirurgia bariátrica no país, ex-presidente da IFSO e professor do Departamento de Gas­tro­en­terologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Você também já deve ter ouvido falar que essa cirurgia salvou a vida de alguém. De fato, isso acontece – são realizadas, no Bra­sil, 25 mil operações por ano (só ficamos atrás dos Estados Uni­dos, com mais de 200 mil por ano). Mas o procedimento é indicado apenas em casos-limite, quando o paciente corre mais risco de morrer andando do que na mesa de operação. E não estamos fa­lando de mais uma intervenção estética, mas sim de uma cirurgia que mata, em mé­dia, uma a ca­da 150 pessoas.
Mesmo sabendo de tudo isso, mulhe­res co­mo Laila, cansadas de ouvir que “não tem seu número” de roupa e que já tenta­ram os mais diversos remédios e dietas, vêem na cirurgia uma maneira de acordar com o corpo “perfeito”.

Qual é o preço?

O custo desse sonho é alto. E as parcelas não têm prazo para terminar. Quem tem o estômago reduzido nunca mais po­de co­mer distraidamente, tem que tomar me­di­ca­mentos todos os dias e fazer visitas a mé­­­­dicos, psicólogos e nutricionistas para o resto da vida. Além disso, como fica a ca­beça de alguém que engorda 10 quilos em um mês e emagrece até 50 em seis? “A paciente credita todos os seus problemas à gordura. Aí emagrece e continua com conflitos com o marido, com os filhos...”, alerta a psicóloga Rejane Sbrissa, que trabalha com obesidade há 16 anos.

A esteticista Luciana pagou R$ 25 mil para reduzir o estômago. Depois de ser cha­mada por um estranho de “chupeta de ba­leia” e de ser abandonada pe­lo marido, re­­sol­veu passar dos 105 para os 115 quilos, se­­­­gundo ela, por indicação do médico do convênio. Mas aca­bou substituindo o dou­tor por um parti­cular, quando soube que ficaria com uma cicatriz de 15 centímetros. A cirurgia “por corte” sairia mais barata pa­ra o plano de saú­de do que a feita com câ­meras (laparoscopia), através de seis furos na barriga – e que custa três vezes mais.

Há cinco me­ses e 40 quilos mais gorda do que hoje, ela decidiu engordar para po­der operar. Co­mia um pacote de macarrão no almoço, e a compra do mês numa sema­na. Co­mo di­as­ antes da cirurgia faltavam alguns quilos para os dez que pretendia ga­nhar, ela co­locou um saco de arroz por baixo da blu­sa, subiu na balança e conseguiu o laudo da nutricionista.

Natália já protagonizou esse filme. Em 2005, saiu da segunda médica que lhe negou a operação pesando 124 quilos e foi direto ao supermercado. Nas três semanas seguintes, parou no hospital com queimação no estômago de tanto sorvete. Em 2006, Ana Lui­za se entupiu de pizzas até passar dos 100 para os 113 quilos. “O melhor era saber que depois ia ficar magra. Não estava preocupada com a saúde, só com a estética”, assume.

Qualquer negócio
Luciana, Ana Luiza e Natália estão incluídas na estatística de que Laila almeja fazer parte: a de que existem duas mulheres para cada homem que reduz o estômago no Brasil. Quem diz é o doutor Arthur Garrido. Só o médico Nilton Kawahara, também do HC, garante que 78,2% dos mil pacientes particulares operados por ele, entre 1999 e 2006, foram mulheres. “Dessas, 10%, entre 18 e 25 anos, engordam para fazer a cirurgia”, garante. A psicóloga Maria Isabel Matos, responsável por dar uma das autorizações neces­sá­rias aos candidatos à operação no hospital da Escola Paulista de Me­dicina, conta que os mesmos 10% das pacientes que passam por seu consultório estão dispostas a ganhar peso. “Para uma pessoa com 100 quilos, engordar oito até que tudo bem”, pondera.

Esses números confirmam o que disseram todos os médicos e psicólogos brasileiros ouvidos pela Tpm. “É bem mais freqüente mulheres com obesidade, mas sem doenças associadas, procurarem a cirurgia do que homens, que geralmente vêm com pro­ble­mas de saúde”, fala Thomas Szegö, referência no assunto, e completa: “As meninas até aceitam um garoto com 32 de IMC. Já uma garota com esse peso é a gorducha que ninguém quer ficar”.

Se Luciana soubesse que pagaria pela cirurgia, não teria precisado de tanto macarrão. “Quando a pessoa tem o IMC abaixo do indicado, mas vai pagar particular, qualquer médico opera”, ga­ran­te um cirurgião formado há 30 anos pela Universidade de São Pau­lo, que atua nos principais hospitais privados da capital pau­lista. Por não concordar com o procedimento, ele preferiu não se identificar. E completou: “Tudo se resume a uma questão financeira. A mulher engorda porque esse é o único jeito de o convênio cobrir a cirurgia. E o médico opera porque vive disso”.

A Federação Nacional de Saúde Suple­mentar (FenaSaúde), que re­presenta os pla­nos de saúde, afirmou não conhecer médicos que su­­­gerem o ganho de pe­so. Nossa reportagem procurou a Brades­co Saú­­­de, a Amil, a Su­la­mérica e a Gol­den Cross. Todas afirmam desconhe­cer esses ca­­sos. Mas tais proce­di­mentos foram re­la­­tados como “comuns” pelas entrevista­das.

Laila já tentou operar pelo convênio, mas a endocrinologista que a avaliou adi­an­­­tou que ela não tinha o IMC exigido. “A médica ia diminuir minha altura, mas teria que colocar muitos centímetros a me­nos, e daria na cara”, conta. Então, ela ficou dois anos na fila do Hospital das Clínicas, estabelecimento que mais realiza reduções de estômago pelo SUS no Brasil. Nesse tempo, passou de 108 para 120 quilos. Mas, quando teve a consulta com o doutor Ar­thur Garrido, seu caso foi recusado. Laila voltou chorando para casa e, nos meses se­guintes, emagreceu 24 quilos “de nervoso”.

Rosto bonito e roupas de velha

Mesmo que você não tenha problemas com a balança, quantas vezes já não se la­men­tou do pneuzinho lateral ou da barriga com dobrinhas? Multiplique esses des­con­fortos por dez e terá uma idéia do que sente uma pessoa que precisa eliminar metade de seu peso. Laila, Luciana, Ana Luiza e Na­tá­lia conhecem regimes desde crianças. Sem­­pre usaram “roupas de velha” e não enca­ra­vam o espelho quando saíam do banho. Ti­­nham medo de entalar na roleta e vergonha de ocupar dois lugares no ônibus.

Uma pessoa nessas condições tem cer­teza de que já tentou de tudo para ter uma “vida normal” – vale lembrar que 97% dos obesos mórbidos que emagrecem com die­tas e remédios voltam a engordar. Agora imagine uma pessoa que devorava uma cai­xa de chocolate de uma vez co­mendo apenas cinco colheres de sopa de alimentos no almoço. “Cerca de 20% dos pacien­tes ope­rados apresentam algum transtorno depois, como com­pulsão por doces, compras, sexo, drogas ou álcool”, afirma a psicóloga Maria Isabel Ma­tos, da Unifesp. Sem o foco na comida e com mais possibilidades de atividades, as três entrevistadas operadas desta reportagem viraram consumistas de carteirinha. “Tudo o que eu gas­tava em comida gasto em roupas”, confessa Natália. Os médicos ques­tionam o que psicólogos definem como “troca de compulsão”. “A maioria dos obesos não co­me por desvios psicológicos. Além da alimentação inadequada e do sedentarismo da sociedade atual, há uma questão ge­nética: eles produzem mais hormônios que ge­ram fome do que um magro. Com a operação, a produção de alguns desses hormô­nios di­minui, o que reduz também o apetite e faz com que emagreçam sem criar outros vícios”, afirma o cirur­gião Arthur Garrido.

O estômago mudou, mas a cabeça...
Ana Luiza pensa por dez segundos quando a Tpm pergunta se é feliz e diz: “Sim. Bastan­te”. Faz um ano que operou. Com seus 63 quilos atuais, não recomenda a cirurgia a ninguém. No pós-ope­ra­­tório, ela pegou uma infecção. E tomou tantos antibióticos, que resolveu ignorar os outros medicamentos – aqueles que quem opera precisa to­mar para o resto da vida. As conseqüências para pessoas que, como ela, não seguem a ordem médica podem ir da anemia à parali­sia. E Ana Luiza conta, ainda, que não deixou de comer nada de que tem vontade: “Se quero alguma coisa, forço até sentir o estômago doer”.
Mas não é só ela que briga com os limites que se impôs. Lu­ciana vomitava três vezes ao dia, nos primeiros meses pós-cirurgia. Natália desenvolveu anorexia e buli­mia depois de um ano e meio da operação. Fora isso, ao engordar, todas correram o ris­co de desenvolver doenças como diabetes e hipertensão e problemas ortopédicos e articulares. “Vo­cê opera o estômago, não o cérebro”, diz a psi­cóloga Maria Isabel Matos. “E mudanças de hábito não acontecem do dia pa­ra a noite, como a cirurgia exige.” Por­tan­to, o acom­pa­nha­mento psicológico é obriga­tó­rio antes da ci­rurgia e, mesmo que a maio­ria dos pacientes fuja dos consul­­tó­rios, é recomendado depois. “Os olhos con­ti­nuam vendo comida, o nariz sente o cheiro de cafezinho e chocolate. Por isso é importante saber o que tem por trás da vontade de comer”, completa Maria Isabel.

Com riscos, sem garantias
Natália sonhava com maionese e salsicha internada no hospital. Hoje pesa 77 quilos, mas ainda se diz ansiosa. Ana Luiza deu sumiço em todas as fotos do pas­sado e agora aguarda a cirurgia plástica corretiva (inclusa no pacote dos convênios) para tirar o excesso de pele. “Meu corpo me incomoda mais do que antes”, solta.

É impossível falar de insatisfação com a auto-imagem sem levar em conta a so­cie­­dade em que vivemos. Quando o que im­­pera é o padrão Gisele Bündchen de be­le­za, se sentir feliz com o corpo é raro até em me­ninas esquálidas, como aquelas das pas­sa­relas dos desfiles de moda. “Que gordo quer ir à academia, onde só tem gente bo­nita e magra?”, questiona Laila. “Se eu não operar, sei que vou acabar engordando de novo.”

Tanta expectativa, porém, pode aca­bar em frustração. Alguns meses depois da ci­rurgia, é comum as pacientes aprenderem a burlar o estômago, ingerindo ali­mentos que­ passam fácil pelo pequeno es­paço, co­mo leite condensado. Princi­pal­­men­te por esse motivo, entre 5% e 10% dos opera­dos voltam a ser obesos mór­bi­dos, em cinco a dez anos.“O obeso terá sem­pre algo parecido a uma memória ce­lu­lar. Seu or­ga­nismo vai fazer tudo para ganhar peso ou­tra vez”, explica o psiquiatra Adriano Se­gal.
Digamos, então, que a menina que engorda 10 quilos em um mês e emagrece até 50 em seis esteja saudável e se sinta bo­nita ao fim de tantas transformações. Isso não quer dizer que será feliz para sempre. “Elas esperam emagrecer para se gostar. Mas quem não se gosta não emagrece”, aler­­ta a psicóloga Rejane Sbrissa.

Laila sabe de tudo isso. E, mesmo assim, está ansiosa para a consulta médica pelo no­­vo convênio, que vai definir seu próximo passo. Seguindo os fatos e a lógica, ela não se deu outra saída: vão ser precisos mais 11 quilos para, finalmente, emagrecer.

Por dentro do estômago

Antes da operação, o alimento leva algumas horas sen­do dige­rido no estômago. Então, passa pelo duodeno e intestino delgado, onde ocorre a maior parte da absor­ção de nutrientes e ca­lorias, e então segue para o intes­tino grosso. O Gastric Bypass, método da cirurgia bariá­trica mais utilizado no mundo, consiste em reduzir o volume do estômago, de 1,5 litro para não mais do que 30 mili­litros, e conectá-lo ao intestino. Com apenas três garfadas, o novo estômago fica cheio, por isso a pessoa precisa esperar alguns minutos até o alimento passar ao intestino delgado, para, então, comer mais um pou­co. A porção maior do estômago, por onde a comida não passa mais, é ligada ao intestino delgado para que os su­cos gás­tricos possam chegar ao alimento, ajudando na diges­tão. Além de conseguir ingerir menos comida, o pou­co que se come não passa mais pelo duodeno – onde ocor­re grande absorção de nutrientes. A soma des­sas mu­dan­ças leva ao emagrecimento.

Antes
1. Estômago;
2. Duodeno;
3. Intestino delgado;
4. Intestino grosso

Depois
1. Novo estômago (comida);
2. Estômago (suco gástrico);
3. Duodeno;
4. Intestino delgado;
5. Intestino grosso

O que vai acontecer com o corpo e a cabeça depois da operação

A cabeça: A depressão: melhora em 55% e a produ­ção de hormô­nios do apetite diminui: menos fome e mais sensação de saciedade. Não fuja do psicólogo, seu compa­nheiro para o resto da vida

Os olhos: é normal demorar um pouco até enxergar a no­va imagem no espelho

Olfato: o aroma que sai de panelas e restaurantes continuará fa­zendo sua cabeça... mas não o estômago

Organismo: é melhor tomar vitaminas e ferro diariamente, seguindo as ordens médicas, do que ter anemia – ou até paralisia

Coração: disfunções cardíacas são reduzidas em 95%; hipertensão diminui entre 52 e 92% dos casos

Pulmão: deficiências respiratórias melhoram em 99%

Estômago: onde antes cabiam até 1,5 litro de refrige­rante, agora só entram três garfadas de comida (30 ml) por vez

Intestino: alimentos pastosos e líquidos passam fácil pelo novo estômago. Leite condensado, sorvetes e açúca­res concentrados, se chegam em grande quantidade ao intestino, causam fraqueza, vômitos e dores

TPM: irregularidades menstruais e infertilidade melhoram em 99%

Ossos: melhora de 85% de problemas articulares, como artrose e artrite

Memória: se você engordou alguma vez na vida, terá sempre uma espécie de memória celular e seu organismo fará de tudo para chegar de novo ao mesmo peso

Pele: cicatriz de 15 centímetros ou seis de 2 centí­me­tros na barriga; tirar excesso de pele das co­xas, dos bra­ços e da barriga também deixa marcas, mas ajuda na higiene, nas relações sexua­is e na hora de vestir uma roupa

Fontes: Alan Landecker, membro da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS); Jerome Dargent, membro fundador da Sociedade Francesa de Cirurgia Bariátrica; John Melissas, ex-presidente da IFSO (International Federation for the Surgery of Obesity); Nicola Scopinaro, presidente de honra da IFSO e criador do método de cirurgia da obesidade que leva seu nome; Miguel Modolin, cirurgião plástico do Hospital das Clínicas (SP); Rafael Alvarez-Cordero, presidente da IFSO; Sanjay Borude, vice-presidente da Associação de Cirurgia da Obesidade da Índia; Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica; Organização Mundial de Saúde; New York Times; American Society for Metabolic and Bariatric Surgery; International Federation for the Surgery of Obesity

FIZ E DEU CERTO

“A cirurgia foi um presente pra mim mesma. Na época, 2001, estava pesando 136 quilos – em 1,68 metro. Sempre tive sobrepeso, mas só cheguei à obesidade mórbida depois da gravidez. Para piorar, tive depressão pós-parto e engordei mais durante a amamentação. Em um ano e meio, tentei spas, remédios, dietas. Então uma amiga me falou da cirurgia. Acha­va que não precisava de acompanhamento psicológico, mas fiz. E se ver no espelho depois é muito difícil. O corpo emagrece, mas a cabeça, se não for trabalhada, não. Hoje, peso 72 quilos e atendo em clínicas de obesidade. Pergunto para minhas pacientes: ‘Por que você quer ser operada?’. Se disserem: ‘Porque meu ma­ri­do me acha gorda’, não vai dar certo. Tem que querer por vo­cê.”
Cibele Regina Fornari Zalli, 43, nutricionista

FIZ E NÃO DEU CERTO

“A ficha caiu quando acordei numa sala gelada, pelada, com dor e sozinha. Em 2007, começava minha nova vida: sopas em copinhos, água de golinho. Mas ninguém me explicou que minha cabeça doida continuaria a mesma. Dois meses depois, eu já conseguia furar a dieta. As pessoas pararam de perguntar da cirurgia, o que era, ao mesmo tempo, um alívio e a prova de que tinha falhado. Mais uma vez. Há quatro meses, fui a um novo médico, que sugeriu outra cirurgia. Saí de lá pensando: ‘O que eu tô fazendo da minha vida?’. E, do pânico, veio a mudança. Ou eu resolvia isso ou virava meu pior pesadelo: a manicure Jô, que foi tirada de ca­sa por um guindaste, de tão gorda. Resolvi olhar para aquele corpo esquecido há 15 anos. E, já com 20 quilos a menos, parece que estamos indo bem, viu?”
Cristina Naumovs, 30, diretora de arte

EMAGRECI SEM CIRURGIA

“Quando tinha 15 anos e pesava 90 qui­los, queria ser rodeada de amigos, mas ninguém quer uma amiga gorda. Nessa idade decidi engordar para fazer a cirurgia do estômago. Pensava: ‘Vou ficar magra e cair no estereótipo’. Meu ca­fé-da-manhã era pizza e Co­ca-Cola e che­guei aos 120 quilos. Mas mudei de idéia quando vi que estava ficando flácida e que, depois da cirurgia, ficaria mais ainda. Então, decidi fa­zer regime. Co­mecei tomando remédios, só que quando parava en­gordava de novo. Larguei os medicamentos e fiz uma reeducação: me afundava em frango grelhado com salada e entrei na academia. Demorei cinco anos para chegar aos 80 quilos. Hoje tenho 72 quilos e 1,63 metro de altura. Ainda sou gorda, mas an­tes usava calça 50, e hoje uso 42. Agora, quero chegar aos 60 quilos. E, se posso emagrecer fechando a boca, não vou fazer nenhuma cirurgia.”
Karla Lima Trindade, 24, estudante

Por que estamos engordando?

Ao mesmo tempo que os padrões de beleza ficam cada vez mais cruéis, a humanidade engorda sem parar

Por Ariane Abdallah e Paula Rothman

O mundo está engordando. Na mesma proporção, os padrões de beleza pegam cada vez mais pesado com as mulheres. A todo instante novos re­médios, cirurgias, tratamentos estéticos e truques ficam à disposição dos 96 milhões de brasileiras – das quais 18,3%* está obesa desde 2005 (ao lado de 8,7% de homens). E essa estatística deve chegar a 30% nos próximos sete anos. Porque a mesma sociedade que exige corpos perfeitos também facilita o sedentarismo e a má alimentação. “Há excesso de comida, muitas vezes de má qualidade nutricional, e escassez crescente de atividade fí­sica”, enfatiza o psiquiatra Adriano Segal, do Hospital das Clíni­cas de São Paulo. Os números gordos da Orga­ni­zação Mundial de Saúde também apontam 400 milhões de obe­sos no mundo até 2015 – enquanto quem pode paga caro na tentativa de ficar bem aos olhos dos outros. “A elite está cada vez mais esquálida, com o desejo de se diferenciar da maioria da população, cada vez mais pesada”, garante o psiquiatra.

Numa sociedade em que “ser bonita” vem antes de “ser sau­dá­vel”, a estética virou uma obsessão. Ter as curvas como a “daquela” atriz justifica qual­quer quantia em dinheiro, qualquer cicatriz na pele e qualquer risco de doença – e até de morte. Com tantas ferramentas, pelo menos as mulheres com maior poder aquisitivo deveriam desfilar por aí sorridentes. Porém, na vida real, é mais comum ver moças aflitas, insatisfeitas, tentando esconder a tristeza debaixo de pó, blush e base – mesmo que sua beleza (com celulite) supere a das celebridades da semana.

Diga-me quanto pesa...
Mas quem decidiu que ser bonita é pesar menos que 50 quilos? Para o psicólogo Marco Antonio De Tommaso, credenciado pela Associação Brasileira para Estudos sobre a Obesidade, mais do que um pa­drão, vivemos numa ditadura. “Um padrão seria um atributo que pelo menos 50% das pessoas tivessem. Mas o que se vende é uma característica de modelo”, alerta ele. Marco é consultor da campanha Dove pela Real Beleza e cita uma pesquisa feita em 2004 com 3.200 mu­lhe­res, de 18 a 64 anos, do mundo todo, que cons­tatou que apenas 2% se consideram bonitas. No Brasil, apenas 1%. Mas o dado que mais cha­ma a atenção é de que 12% das entrevistadas trocariam 25% de inteligência por beleza. “Esse bombardeio todo pro­vo­ca uma distorção da imagem corporal. Se a mulher se vê cada vez mais inadequada, pro­­­cura cor­­­rigir isso porque pensa: ‘Se eu fosse bo­nita, seria feliz’”, conclui ele.

A própria vontade de se enquadrar num modelo de magreza pode ser um dos responsáveis pelo ganho de peso da huma­nidade, à medida que gera ansiedade. “E os obesos costumam ser mais ansiosos que o resto das pessoas”, afirma a psicóloga Ma­ria Isabel Matos, da Unifesp. Ou seja, quan­to mais as mulheres se afligem na tentativa de fazer parte de um ideal de beleza, mais se afastam daquilo que desejam ser e se aproximam do pesadelo da obesidade. Hoje, magreza demais ou excesso de gordura já não são exceções. Com a busca por ideais de beleza cada vez mais irreais, os extremos estão virando regra. E testam os limites da nossa saúde.

* Esse número considera apenas mulheres a partir dos 15 anos

CORPO

eterno rascunho

O paradoxo entre nossa humanidade e o fim dela e de suas marcas, formas, gorduras e desvios

por Denise Gallo*

Comecei a escrever este texto sabendo exatamente o que que­ria dizer. Tinha em mente as críticas, os argumentos, os nú­meros. Já tinha separado as capas das revistas e seus projetos “derreta a barriga para o próximo verão”. Queria comentar a notícia da atriz que, em dois meses, esculpiu o corpo para o dia do seu casamento. Queria falar sobre o interesse que despertam as mães famosas que recuperam a forma física, magra, alguns meses após o parto. Sobre o novo rosto triangular “tem-que-ter” da Ma­donna. Sobre o projeto de corpo belo, jovem e saudável que berra na mídia. O corpo dos vencedores. Dos disciplinados. Mas, aí, uma revista “transformou” o meu humor.

No meio da minha coleção, espalhada pelo chão, passei os olhos pela chamada de uma capa recente: “Ame o seu corpo”, dizia. E o complemento: “Técnicas e truques para endurecer a barriga, firmar o bumbum, modelar as pernas e ter seios lindos”. Era só mais um programa de transformação mágica, na capa de mais uma revista voltada a mais um lote de mulheres modernas. Mas havia algum cinismo avançado naquela construção, um paradoxo que está de tal forma naturalizado, que já se tornou transparente aos olhos e às mentes. Senti um mal-estar.

Ame-se. Desde que...
“Ame o seu corpo”, repetia a perversa chamada. “Todas pode­mos ser lindas… para isso, reunimos os mais eficientes tratamentos e produtos que vão ajudá-la a garantir seios sem estrias, barriga chapada, bumbum firme, pernas torneadas e costas de arrasar.” Quer dizer, não ame o seu corpo é o que estava sendo dito. Ame o corpo que seu corpo deveria ser, se ele não fosse esse rascu­nho imperfeito, excessivamente humano, que insiste em ter marcas, formas, gorduras e desvios. Ame uma possibilidade, um vir-a-ser que nunca vai chegar. Porque, mesmo que você emagreça, to­ni­fique e defina, ainda há o passar do tempo (ele vai passar) e, com ele, novas “sujeiras” para lim­par. Ame o abis­mo dessa expectativa vencida. E lembre-se de odiar sua própria incompe­tên­cia por não conseguir ter e manter o corpo-ima­gem que te reservaria um lugar pri­vi­le­giado no mundo dos bem-sucedidos. Seu corpo combina com quem você é?
Enquanto esse (des)amor continua, e só porque continua, os programas para o aprimoramento do corpo evoluem. A cada instante, pesquisas comprovam, especia­lis­tas garantem, avanços científicos permi­tem e, daí em diante, é tudo uma ques­tão de escolha individual. A saúde entra no ba­laio, o bem-estar também. Tudo vira um gran­de tratamento, fronteiras dilatadas, individualidades confiscadas. Depois de ouvir cinco, 5 mil, 5 milhões de vezes que há um corpo mais bonito ao alcance de uma câ­nula indolor, de um comprimido ino­va­dor, de uma substância revo­lucio­ná­ria, que transformação esperar? Mi­­li­litros e mi­­li­gramas depois, o que de fato precisa­mos transformar?

* Denise Gallo, 38, é sócia da Uma a Uma, empresa de inteligência de mercado especializada em comportamento feminino: blog.umaauma.com. br. Seu e-mail: denise@umaauma.com.br

Tpm +

O preço real da cirurgia

Operar o estômago deve ser a última opçõa para a obesidade. Mas, se for o seu caso, saiba como entrar na faca sem perder a cabeça

Operar o estômago não é o fim dos seus problemas, mas o começo de uma vida completamente nova. É a largada para transformações que vão de cardápio e guarda-roupa a hábitos e comportamentos. Por isso, é preciso colocar na balança necessidades, riscos, dificuldades e benefícios da cirurgia. E, uma vez decidida a operar, siga à risca as orientações médicas.

Listamos as principais informações que você precisa saber para não levar sustos no pós-operatório:

Escolha seu médico. Não há mal nenhum em consultar mais de um profissional antes de encontrar o seu. É fundamental que você se sinta à vontade e confie plenamente em quem vai passar horas cortando e costurando seu corpo e com quem você conviverá pelo resto da vida. Por isso, o ideal é que ele seja credenciado a algum centro de referência. No Brasil, um dos principais centros é o Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Não tenha pressa. Quanto mais tempo você dedicar a pesquisar o assunto, saber o que vai acontecer com seu corpo, com sua cabeça e quais os cuidados que precisará ter depois da cirurgia, menor será a dificuldade de adaptação. Então leia livros (por exemplo: Tudo que você precisa saber antes de reduzir seu estômago, de Adriano Segal e Marcio Mancini), tire todas as dúvidas com seu médico e leve sempre um familiar às consultas, para que quem está próximo também compreenda as mudanças, as dificuldades e os riscos decorrentes da cirurgia.

Mudança de hábitos. A cirurgia de redução de estômago não vem com garantia de magreza eterna. Os primeiros meses, até um ano depois da operação, é o período que os médicos chamam de “lua-de-mel”. Isso porque, passado o perrengue de tomar só líquidos por 20 dias e de comer só pastosos por mais dez, a pessoa emagrece rapidamente, chegando a eliminar até 50 quilos em seis meses. Mas, para continuar perdendo peso, é fundamental evitar doces e optar por alimentos saudáveis, para não correr o risco de ficar desnutrida. E, claro, incluir atividade física no novo cardápio.

Acompanhamento médico e psicológico. Deixar de ser obeso implica mudanças na maneira de agir e de se relacionar com as pessoas. Por isso, a avaliação psicológica é obrigatória antes da cirurgia, e o acompanhamento é recomendado depois. Mesmo assim, a maioria dos pacientes não leva isso a sério e abandona os consultórios quando começa a ouvir elogios dos amigos, quando as roupas vão ficando largas e a disposição e a auto-estima aumentam. Mas é justamente nesse momento que o terapeuta é fundamental para ajudar a lidar com a nova imagem sem euforia. O cirurgião, o nutricionista, o fisioterapeuta e o endocrinologista também devem ser consultados sempre, já que ajudarão a manter o peso baixo com responsabilidade. Afinal, como imagem não é tudo, de que vale ser magra se não tiver saúde?

O peso do sexo (para amulheres, P, M ou G)

Se você nunca travou na hora de mostrar o corpo entre quatro paredes, tire a primeira peça

Por Ariane Abdallah e Paula Rothman

O clima esquenta, ele fecha a porta. Não resta nada a fazer, a não ser... tirar a roupa. E aí você apaga a luz? “Não me troco na frente do meu namorado, meu corpo me incomoda mais agora do que quando eu era gorda”, assume Ana Luiza, 25 anos e 66 quilos. Em 2006, ela ultrapassou os 100 de propósito e fez a cirurgia de redução do estômago. Gabriela Aguiar*, 21, pesa os mesmos 66, mas nunca passou disso. Não se encaixa no ideal de magreza vendido pela mídia porque tem estrutura grande: quadril largo, pernas grossas, seios fartos. E diz que é impossível relaxar na praia, na piscina, no vestiário, no sexo. Independente de quanto pese, você também já deve ter sentido um frio na espinha na hora de revelar ao parceiro – ou seria a si mesma? – se a depilação está em dia, se as curvas não são assim tão exatas e se celulites e cicatrizes fazem parte do pacote.

Já os namorados de Ana Luiza e de Gabriela, como a maioria dos homens, não estão preocupados em analisar imperfeições. Ao contrário. “Homem gosta de ter onde pegar. Quem gosta de pele e osso é mulher”, garante o psiquiatra Alexandre Saadeh, do Projeto Sexualidade (ProSex) do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Mas, apesar de elas se incomodarem com olhar alheio, ele não tem poder de aliviar a insegurança. “Não adianta namorado, mãe ou amiga dizerem que você está ótima. Você sabe que não está”, confessa Gabriela. Para o psiquiatra, esse comportamento está diretamente ligado às relações “vazias”, que muitos casais estabelecem. “O outro é só uma distração. Não importa o que ele diga, se ela não está bem consigo mesma, vai continuar se sentindo mal”, observa ele.

Mas, com um padrão utópico de beleza assombrando o imaginário feminino pela mídia, pelas vitrines, pelas clínicas estéticas, as mulheres não sossegam. “Elas acreditam que sua imagem não condiz com uma expectativa, então acham que não são atraentes, e o principal motivo é estar fora do peso”, confirma a psicóloga e terapeuta sexual Christine Gribel. Em sua clínica particular, no Rio de Janeiro, 40% das pacientes em terapia sexual apresentam algum tipo de distúrbio relacionado a auto-imagem.

Quilo não é documento
A insatisfação de Ana Luiza, que se incomoda com o corpo mais agora do que quando era obesa, tem explicação. “Há um nível de sobrepeso que faz com que algumas gordinhas fiquem à vontade na hora do sexo. Geralmente, como já estão excluídas do padrão de beleza, não precisam provar nada para a sociedade. E muitas delas são um arraso na cama”, afirma Saadeh. Já quando emagrecem a situação muda, porque toda a cobrança social relacionada ao tal ideal de beleza passa a afetá-las.“Com a mudança, aspectos mais corriqueiros, como a pele, que fica flácida, passam a ser percebidos e valorizados”, diz o psiquiatra Adriano Segal, do Hospital das Clínicas.

Porém, na maioria dos casos, quem era gorda e deixa de ser experimenta uma satisfação em relação à própria imagem maior do que muita magra de nascença. O fato de atrair olhares masculinos e caber em roupas da moda já deixa a mulher segura para colocar um vestido justo e, se for o caso, tirá-lo sem drama. Mas a pressão para se adequar a determinado padrão acaba, na maioria das vezes, derrubando a auto-estima. “A mulher pensa: 'Se eu me despir ou tiver um contato mais íntimo, vou me sentir avaliada, julgada'. Então pode desenvolver o transtorno de inibição do desejo. Isso é muito comum”, alerta a psicóloga Christine.

Isso explica o fato de mesmo mulheres com tudo em cima acreditarem que só vão ficar bem depois do silicone, da lipo ou dos 2 centímetros a menos no culote. Elas evitam também muitas vezes momentos de intimidade que exponham suas curvas sem máscaras. “Desde a liberação feminina, a mulher comprou a idéia de que tem que ser perfumada, grande executiva, mãe, romântica e estar com o cabelo impecável para ser feliz. Mas isso é uma fantasia só delas”, conclui Saadeh. Ele ressalta ainda que o apetite sexual pode ser prejudicado pelo excesso de magreza. “Muita mulher magra tem falta de nutrientes, o que diminui a libido e causa problemas menstruais. O que adianta ser linda se na cama não consegue relaxar?”, questiona o psiquiatra. Mas, numa sociedade que cobra perfeição baseada em padrões utópicos, fica mesmo difícil relaxar. “O padrão vai sempre existir”, aposta Christine. Mas você pode escolher ver seu corpo com seus próprios olhos.

*Gabriela Aguiar é um nome fictício

 

 

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