Ele é o (meu) cara
A primeira vez que o vi foi no Rio, há quase 25 anos. Está até hoje na minha vida
Não lembro bem nem como nem quando passamos a nos cumprimentar com um selinho. A ideia foi provavelmente minha porque sabia que ia pegar bem ser vista beijando aquele homem tão lindo na boca em público. E ele, cúmplice de minhas maluquices, topou. Então, há mais de dez anos é assim sempre que nos encontramos; seja no meio da rua, em uma festa ou em minha casa.
A primeira vez que o vi foi no Rio, à beira de uma piscina, há quase 25 anos, época em que começou a ter um caso com minha irmã. Quando chegou, estávamos tomando sol, mais de seis mulheres reunidas, e o escândalo foi imediato porque nunca tínhamos visto um homem bonito daquele jeito, nem na TV nem no cinema, muitíssimo menos em músculo e osso. Até eu, que já sabia perfeitamente preferir mulheres, fiquei abalada e ligeiramente trêmula. Se soubéssemos que ele estava entrando para nunca mais sair, talvez não tivéssemos tietado, bajulado e encarado tanto.
Desde então, teve casamento, teve quatro filhos, teve muitas casas e muito amor. Fui testemunha de como trabalhou duro para, do nada, ter muito. Durante anos, não houve Natal nem réveillon em que não estivesse na labuta para que sua empresa, que fornece comida para festas, crescesse. Do começo de vida tendo que morar na casa da mãe, num quartinho com minha irmã e o primogênito, conseguiu alugar um apartamento, comprar um imóvel, depois outro e ainda mais um fora de São Paulo, onde ergueu uma casa linda para passar fins de semana rodeado dos que ama.
Relação sincera
Depois que uma certa fartura chegou, sempre que me via indo viajar para além-mar, e sabedor de meu orçamento jornalístico, tratava de colocar um dinheiro na mala, dizendo que era para eu comer e beber bem e me presentear com uns mimos. E deixou claro logo de cara que quando saíssemos para almoçar ou jantar fora a conta era dele porque eu era família, assim como minha irmã e os filhos.
Mas claro que nem tudo sempre foi dengo. Teve a vez em que me pediu para trazer dos Estados Unidos um esqui, e eu concordei e ri com a certeza de que era uma piada – e ri por educação porque, francamente, era uma péssima piada. Foi por isso que bateu uma certa taquicardia quando um esqui de proporções colossais foi entregue em meu hotel e eu tive que trazê-lo nas costas. Em contrapartida, passou um dia inteiro com pa-
ciência budista tentando me fazer aprender a slalar na represa perto da qual construiu seu refúgio.
Quando contei que era gay, sorriu e me beijou, feliz por saber que eu passaria a vida por perto e rodeada de mulheres. Começou a ir comigo ao cinema apenas para conhecer essa cativante comunidade
de mulheres que amam mulheres; momento em que entendi que, por melhor que fosse o filme, ele sempre dormia antes da primeira metade. E também quando notei que, mesmo dormindo, não perdia o estranho tique de balançar os pés para um lado e para o outro, em ritmo acelerado e constante, fato que parece nunca ter incomodado minha irmã, que ao lado dele se tornou mulher, mãe, companheira e doceira. A certeza de que ele a fazia muito feliz era um dos fundamentais tijolinhos que compunham as paredes da casa que eu chamava de felicidade.
Cúmplice
Com os anos, foi ficando cada vez mais bonito, e maduro, e companheiro e paizão. Pelos filhos é capaz de mandar buscar a Via Láctea; um tipo de dedicação e paixão que encontra recompensa nas coisas mais miúdas e cotidianas: em uma piada de Mel, que o leva a fechar os olhinhos e perder o ar de tanto rir; em um abraço de Bruna, que o faz chorar de emoção; em um beijo de Antonio, que o deixa bobo por horas; ou em um cafuné de Paulo, de quem pode se dar ao luxo de dizer que ama há mais tempo.
Era ele que estava a meu lado quando rompi com Tati, quando me apaixonei por Roberta e, depois, quando me casei com a gata – as três sempre tratadas com requintes e carinhos e status de cunhada. E era para a casa dele que eu me mandava quando precisava de uma cama e de colo.
Depois que Roberta, no fim de uma sexta-feira ensolarada, foi embora daqui, ele passou a ir todas as tardes para minha casa, apenas para sentar a meu lado e dizer que ia ficar tudo bem.
Nos últimos meses, deitou muito em meu colo, me deixando secar suas lágrimas, mexer em seu cabelo e me ouvindo dizer que aquela dor ia passar: depois de 25 anos, minha irmã e ele decidiram seguir caminhos diferentes, e, ao se permitir sofrer tão intensa e visceralmente, estava me presenteando com a certeza de que os fortes e nobres jamais escondem medos e fraquezas e incertezas.
Semana passada, fomos jantar em um restaurante japonês que ele adora: a gata, o gato e eu. Juntos, bebemos, rimos, choramos e, de madrugada, embalados pela vontade de não sair mais dali, fingimos não ver as cadeiras serem colocadas sobre as mesas. Depois de muitas horas, voltei para casa com as pernas trançantes e com a certeza de que a vida, embora repleta de dor e de separações, tem uma forma de compensar tudo, colocando no caminho um cara como Felipe, com quem se pode compartilhar de um passado tão doce e fundamental e, de quebra, ter a reconfortante consciência de que o futuro traz uma, e só uma, certeza: a de que, aconteça o que acontecer, estaremos juntos.
A carioca Milly Lacombe, 44 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com