Deriva
Uma idéia, um exercício, uma maneira de fazer teatro. A atriz Ziza explica o conceito de Deriva
Fernando Pessoa – Livro do Desassossego
Por Ziza Brisola
Todas as nossas ações cotidianas têm uma finalidade – estamos o tempo todo agindo em função de algo que não está propriamente no presente daquela ação, mas no seu objetivo. A automação domina nosso dia-a-dia e nos faz muitas vezes passar a maior parte do tempo sem nem percebermos cada momento, tão envolvidos com o momento seguinte que, supostamente, é nosso objetivo. Nos deslocamos por esta cidade-mundo quase sem vê-la, sempre preocupados com algum propósito, sempre para chegar a algum lugar –e não raro, com pressa. São as pequenas regras que seguimos, constantemente, sem nem perceber.
E que tal combinar que a regra passa a ser agir, simplesmente, sem propósito definido. Gerar situações, relações, fazer coisas, empreender tentativas, enfim, como se fossem nossas ações cotidianas, nada demais, mas sem nenhum propósito definido. Escolher uma regra simples, arbitrariamente, e segui-la, só que sem concessões, só para ver no que vai dar – sem expectativa. Sem um fim a atingir. Não é resolver saltar de pára-quedas para quebrar o cotidiano – mas aprofundarmo-nos neste cotidiano para suspender a automação que predomina.
Na última criação teatral da qual participei, esse mote foi mais ou menos o que nos norteou durante três meses de pesquisa pelas ruas da cidade, em laboratórios teatrais que propõem exatamente isso, e que devem ser em espaços públicos, estabelecimentos, parques, exposições ou shoppings etc. Mesmo que a finalidade da pesquisa fosse um espetáculo, esse objetivo, que estava lá na frente, era absolutamente secundário diante do foco, presente, em cada dia de exercício, naquele momento, cada relação, cada som, cada pensamento que nos ocorresse. Cada sensação de vazio, de inexistência de propósito.
É um exercício que chamamos de deriva e que me inspirou a sugerir isso para o cotidiano das pessoas. Experimente “derivar” por seu dia-a-dia, por sua cidade, pelo seu universo aparentemente mais familiar e descobrir tudo o que está sempre lá, mas você nem tinha notado. Mas não se esqueça que é muito importante estipular um tempo e ter uma regra, nem que ela seja simples como: “virar à direita toda vez que vir um carro vermelho”. E tomar um tempo no final, que seja um momento, para refletir ou ecoar o percurso interior que aquilo gerou em você.
Você pode tomar um táxi para realizar um mesmo trajeto familiar da sua vida, até mesmo o caminho para o trabalho, e reparar naquele caminho, no que é que te faz parar para olhar agora que pode desviar o olhar do trânsito. Pode experimentar provocar a interação com pessoas desconhecidas na rua, só pra ver no que vai dar –provavelmente, embarcará em papos absolutamente improváveis e inúteis (será?). Tomar um metrô e olhar nos olhos de cada pessoa que cruze seu caminho no trajeto todo, não vale desistir no meio. E como essas pessoas reagem a isso? E o que acontece com você?
Esses são só alguns exemplos. Invente uma regra, qualquer uma: o foco é o que você encontra quando a única coisa que você pode e deve fazer é seguir aquela regra. Mais ou menos como a vida, né? É uma condição – uma regra. Derive por ela.
Vai lá:
A “DERIVA” é um exercício teatral criado pelo diretor Maurício Paroni de Castro em parceria com o ator inglês Graham Eatough, diretor da companhia escocesa Suspect Culture. Foi usada como procedimento criativo da peça Aqui Ninguém é Inocente, criada pelas companhias Atelier de Manufactura Suspeita e Linhas Aéreas, de São Paulo, e dirigida por Paroni, que estreou em junho de 2007. A partir de 25 de agosto a peça estará em cartaz no Teatro da Vila (r. Jericó, 256/Vila Madalena), aos sábados, 22h e domingos 21h. Ingressos R$ 20 (R$ 10 meia). Informações (11) 9114-9634