Darth Vader é Flamengo

De como Francisco, guerreiro intergaláctico, pode nos resgatar da mesmice do cotidiano

por Milly Lacombe em

 

 

Francisco, com seu senso de justiça e o interesse que nutre pelas coisas boas da vida, pode nos resgatar da mesmice do cotidiano – o que, quase sempre, basta

Foi em um almoço de família recente que eu contei a Francisco a verdade sobre seu herói:

– Luke Skywalker é corintiano.

Estávamos em uma lanchonete da cidade, o menino de 6 anos comia batatinhas, tomava Coca-Cola e simulava exercícios de luta do exército de Jedi quando me ouviu dizer aquilo. Imediatamente, parou de fazer tudo que estava fazendo e começou a me interrogar. Inconformado com a notícia chocante tentava entender como e por que seu ídolo escolheu torcer para um time que ele detesta. O almoço terminou, mas, como descobri em outro encontro recente com meu sobrinho, o assunto não.

Dessa vez, almoçávamos em um shopping Francisco, seus dois irmãos (Estela, 9, e Marcelo, 4), Nonna e eu: turma formada pela necessidade que minha irmã e meu cunhado sentiram de aproveitar alguns momentos de solidão no Dia dos Namorados. Como eu já tinha sido privada da mulher que é objeto de meu desejo e de minha obsessão porque estava de plantão na redação, Nonna resolveu levar a tropa miúda para me visitar e comer alguma coisa.

– Luke Skywalker é mesmo corintiano? – perguntou ele depois de passar alguns segundos me encarando numa tentativa de encontrar a maneira ideal para voltar ao assunto.

– Mesmo – respondi.

– Por que ele não é são-paulino? – continuou, ainda com inconformismo na voz.

– Porque seria muito sem graça se todo mundo fosse são-paulino.

– Mas por que Corinthians?

– Acho que o pai dele era corintiano

– Darth Vader é corintiano? – disse, levemente ator-doado, enquanto, movido pelo susto, pulava dacadeira.

– Senta, Francisco – disse a matriarca.

Foi quando percebi onde estava começando a tirar a trava de uma granada.

– Ah, não. Acho que me enganei. Darth Vader é Flamengo – e com essa eu jogava o vilão para os porões da minha infância carioca e tricolor.

– E a Princesa Lea? – perguntou o menino.

– Essa é são-paulina.

– Obaaa! – disse, erguendo os bracinhos como quem comemora um gol de Borges aos 45 do segundo tempo.

– Senta, Francisco. E não grita – continuou a Nonna.

– E o Obi? – quis saber o irmão.

– Ah, esse é Botafogo.

– Botafogo?

– É. Botafogo.

– E o Han Solo? – entrou Estela.

– Santista.

– E o Yoda?

– Palmeiras.

– Chewbacca?

– Chewbacca? Corintiano sem dúvida.

– Ahhhhhh – lamentou o menino, sentando voluntariamente na cadeira, como um guerreiro que fareja a vitória mas se vê, repentinamente, derrotado.

– E o exército de Jedi? – perguntou o irmão tentando resumir tudo.

– Bom, lá tem todas as tribos: Fluminense, Vasco, Grêmio, Inter...

– Mas tem mais o quê?

– Corinthians.

– Mas a gente não gosta do Corinthians – disse o irmão.

– Vem cá, todos os seus amigos são são-paulinos? – perguntei.

– O Caio é Corinthians.

– E por que você não é Corinthians?

– Porque o Corinthians é feio.

– Nenhum time é feio. E esse motivo não é bom. Pensa em outro – disse eu, sabendo que ia ganhar umtempo para conseguir mastigar algumas das coisas que estavam em meu prato.
Simplesmente acredita
Desafiado, o guerreiro se colocou a pensar. Olhando fixamente para frente, tentava encontrar uma explicação que me satisfizesse. O almoço terminou, Nonna pagou a conta e saímos pelo shopping em busca de um picolé – ou de três para ser mais exata. Mas Francisco, imerso em seu universo distante, já não estava com a gente. No caminho, encontrei um amigo, que parou para ser apresentado à tropa miúda.

– Você é que time? – perguntou Francisco, voltando ao nosso mundo e antes mesmo de dar oi.

– São Paulo – disse meu amigo, saudado por gritos de urra e bracinhos para cima.
Continuamos nossa aventura com destino ao picolé. Finalmente, achamos um freezer com sorvetes.

– Me levanta para eu ver o que tem – sentenciou Marcelo.

– Eu vejo e digo para você o que tem – respondi, olhando para o garoto, que é parrudo e forte demais para aquela idade.

– Tem uva?

– Não.

– Não?

– Não.

– Quero ver – continuou Marcelo.

– Quer ver o quê? O que não tem?

– Quero ver.

– Marcelo, simplesmente acredita que é mais fácil para todo mundo – disse eu pregando justamente aantítese de meus princípios. Mas, descobri ali, uma boa dor nas costas é capaz de fazer você rever certos princípios.

O menino não se convenceu e continuou olhando para cima, em minha direção, com uma expressão muito séria, determinando silenciosamente que eu acatasse o que era, evidentemente, uma ordem.

– É. Simplesmente acredita que é mais fácil – disse Francisco ao irmão, levemente alheio à escolha do sabor e talvez falando sobre outro assunto que não exatamente o que envolvia um picolé de uva.

Um bom motivo
Nessa hora, dada a enorme desconfiança de Marcelo a respeito da não existência do picolé desejado, e como eu, por questões de idade, não mudara de ideia quanto a levantá-lo, tivemos que dar um passo para o lado para que um rapaz que acabara de chegar pegasse o dele.

– Você é que time? – interpelou Francisco sem pestanejar.

O rapaz, intrigado, parou e tirou do bolso o celular com o distintivo do Corinthians.

– Sou do mais amado do Brasil. E você?

– São Paulo.

– São Paulo? Por quê? – lamentou o intruso.

Nessa hora, finalmente, a resposta bateu no guerreiro tricolor.

– Porque não gosto de deixar meu pai chateado.

– Ah, esse é um bom motivo – disse o visitante, deixando Francisco para trás e se dirigindo ao caixa. Francisco, visivelmente aliviado com a explicação que acabara de encontrar, encostou na prateleira da loja e, olhando para um ponto fixo na parede, sorriu.

Meu herói não vai, ao contrário do que imagina, salvar o mundo. Mas Francisco, com seu senso de justiça e o crescente interesse que nutre pelas coisas boas da vida, pode, com a ajuda de seu fiel e teimoso escudeiro Marcelo e assessorado pela primogênita Princesa Lea, dar um jeito de nos resgatar da mesmice do cotidiano – o que, quase sempre, basta.

– Eu vou salvar você! – recitou o guerreiro, novamente entretido em uma luta imaginária que começou a travar sozinho pelos corredores do shopping.

– Você já me salvou – disse eu, no papel de Darth Vader, para meu Luke Skywalker que, embora não tenha entendido, sorriu.

*A carioca Milly Lacombe, 41 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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