Coração selvagem
Há dois anos, Carol Tavares saiu do Rio de Janeiro para cuidar de bichos cabulosos na África do Sul
Ana Carolina Tavares e Silva é uma ipanemense atlética e vistosa. Os cabelos lisos caem sobre a tatuagem de dragão, que começa nos ombros, desce pelas costas e termina na coxa direita. É mole visualizá-la no parapente em São Conrado, em butiques da zona sul, correndo ao redor da lagoa Rodrigo de Freitas, varando a noite na boate da moda. Tudo isso ela já fez.
Hoje Carol, aos 30 anos, sente-se em casa na caçamba de uma picape, a 100 por hora na savana esburacada, pronta para capturar um rinoceronte, furar um buraco no chifre do bicho e implantar nele um chip de monitoração, ou aplicando uma coleira com GPS num leopardo, antes de passar o efeito do sedativo e o bicho trucidá-la.
Nos quase nove meses que passou na África do Sul, em 2007, como veterinária voluntária do programa de conservação animal African Conservation Experience, Carol escapou de ser perfurada pelas presas de elefantes, caiu em covas-esconderijo de javalis, ficou uma semana sem tomar banho – e por pouco não virou jantar de hiena. Nunca foi tão feliz.
Tudo começou com os cavalos. Durante 12 anos a carioca perseguiu seu principal interesse: montar profissionalmente.Até cair e fraturar o cóccix. Na terceira vez que isso aconteceu, o médico a proibiu de cavalgar.“Resolvi fazer veterinária”, lembra. Ela nunca mais montou.
Filha de pais separados, Carol foi criada numa família “bem resolvida, em que os dois casaram de novo e todo mundo se dá bem”. Palavras dela, referindo-se, inclusive, à amizade entre o pai e o marido da mãe, o deputado Fernando Gabeira. Nesse clima, ela morou no Rio de Janeiro até 1998, quando foi passar um mês nos Estados Unidos e acabou ficando três anos.
Após um curso universitário e um estágio em Lexington, a cidade americana que abriga o principal certame do turfe, o Kentucky Derby, um amigo veterinário propôs que ela tratasse dos cavalos de clientes dele, no Rio. Voltou para a cidade, já morando sozinha. E dois anos foram suficientes para que Carol se desencantasse com o hipismo.“ Sei que é possível o cavalo ser bem tratado”, argumenta.“Mas não é natural de um bicho, que anda e pasta durante horas, ficar preso numa baia, sair 60 minutos por dia pra treinar e depois voltar a ficar trancado na cocheira.”
O documentário americano Earthlings (Shaun Monson, 2003), sobre os bastidores do uso de animais pela indústria de alimentos, medicamentos e roupas, iniciaria uma guinada na vida da carioca. Um segundo filme fecharia a questão. Recheado com depoimentos de técnicos ambientais e médicos, A Carne É Fraca (Denise Gonçalves, 2005) disseca a indústria da carne, seu impacto na saúde das pessoas e no meio ambiente – e a crueldade no trato de animais.
“Mesmo já sabendo do suplício pelo qual os animais passam para servir aos humanos, esses filmes me fizeram refletir”, explica a garota. Ela se tornou vegetariana e decidiu trabalhar com a conservação de animais selvagens. Vasculhou a internet até encontrar o African Conservation Experience, que escala veterinários do mundo para o trabalho voluntário de captura, monitoração e cuidado médico de elefantes, rinocerontes, búfalos, antílopes, leões, guepardos e leopardos. Ofereceu-se para a estada de maior duração e tratou de estudar, estudar, estudar.
Quatro meses depois, em junho de 2007, desembarcava em Pretória, capital da África do Sul, onde ficou, entre idas e vindas, até março de 2008. Lá, Carol trabalhou supervisionada pelo veterinário Chap Masterson, do Zimbábue, um homem “forte, vigoroso e cuidadoso”.
O animal africano que tenta entrar em sua orelha é o suricato; por causa da superpopulação, leões mudam de reserva
Todo cuidado é pouco
Um dos primeiros avisos que a forasteira recebeu ao chegar na selva africana veio de Chap. Como a captura dos animais exige o uso da etorfina, um sedativo extremamente potente – aplicado por um dardo disparado com espingarda –, ele alertou para a possibilidade de uma única gota de sangue do animal entrar em contato com feridas na pele de um humano. Se acontecesse, seria preciso usar imediatamente o antídoto. Caso contrário, haveria o risco de parada cardiorrespiratória.
Os olhos de Carol brilham enquanto ela conta essa e outras experiências. Como no dia em que fez parte de um time incumbido de capturar um filhote de rinoceronte. Além dela, estavam Chap, o piloto do helicóptero, o encarregado da captura e a mão- -de-obra pesada, os zulus. “Uma vez localizada a mãe, Chap se aproximou, de helicóptero, e lá do alto atirou um dardo e avisou: ‘Dart in!’. Um minuto depois, iniciamos o cerco ao bicho. A mãe o protegeu, mas, com o carro, a espantamos – tudo precisa ser rápido para o animal ficar sob sedação o menor tempo possível. Os zulus pularam da picape para passar as cordas em volta dele. Parecia uma dança”, lembra a veterinária.
Carol em ronda de rotina na Zululand Reserve, na África do Sul; Carol (à dir) com duas estagiárias e uma veterinária inglesa
Na selva, de Havaianas
Quando Carol lia as instruções de como fazer arroz, tarefa nova para ela, foi interrompida pelos murros de Chap na porta: “Acharam a guepardo! Foi vista caçando um kudu perto do lago”. Ela largou tudo e correu para a picape – de Havaianas e short. Alguns hematomas mais tarde, chegou ao lago. “Lá estava a fêmea, chafurdada na carcaça de um antílope. Uau! Dava pra sentir o calor e o cheiro do sangue fresco do bicho”, conta.“Com o rifle quase apoiado sobre meu nariz, Chap apertou o gatilho. O tiro fez a felina grunhir do fundo das entranhas. Esperamos o efeito do sedativo e amarramos suas mandíbulas. Enquanto estava abaixada, trabalhando na bicha, virei e dei de cara com uma família de rinocerontes bebendo água. Show!”
Um outro episódio nunca sairá da lembrança de Carol – e aconteceu enquanto ela dormia. Depois de uma viagem de 12 horas rumo à reserva onde trabalhariam no dia seguinte, ela e Chap, sem alojamento na ala dos veterinários, dormiram na selva. “Paramos o carro numa área que pensamos ser protegida com cercas elétricas”, lembra. “Mas nos enganamos e estávamos fora do parque.” Chap aconselhou-a a ficar na cabine. Mas, com o calor, ela escolheu dormir ao relento. Exausta, pegou no sono rapidamente. Sonhou com girafas e com alguma coisa chupando o dedo do pé direito. “Acordei com uma hiena pintada, super-rara de ver, sentada a 2 metros de mim.”O berro assustado espantou o bicho, que saiu correndo. E Chap concluiu que a hiena havia ficado ali horas, avaliando a situação sem saber se Carol estava morta.“Ela me arrastou talvez 1 metro, pelo pé! Não acho que seria capaz de me matar, mas também não sei no que aquilo daria se não tivesse acordado.”
Três meses depois de ter voltado para o Brasil – e de não ter passado um dia sem saudades da África –, a carioca viajou para Fernando de Noronha, contratada por 30 dias como pesquisadora pelo projeto Golfinho Rotador, patrocinado pela Petrobras e executado pela ONG Centro Golfinho Rotador. Está lá até hoje. O mês planejado já virou oito.
Praia da Conceição, em Fernando de Noronha: Carol com o cachorro de um turista (Foto Lisandro de Almeida); e fazendo a observação diária na baía dos Golfinhos
Ilhada em Noronha
Hoje, sua rotina é monitorar os mamíferos na baía dos Golfinhos e em outras áreas do arquipélago – considerado o maior aquário natural do mundo para ver esses animais. De segunda a sábado, das cinco da manhã às três da tarde, ela se reveza com os outros pesquisadores em turnos de quatro horas, durante os quais anota a chegada, a saída e a permanência dos bichos, além de seu comportamento (se estavam em grupo, amamentando, copulando etc.). Carol também dá palestras para turistas e aproveita para pesquisar a reprodução dos bichos, para um futuro doutorado.
Apesar de a moradia em Noronha ser “complicada”, ela está feliz dividindo um quarto com mais quatro companheiras de trabalho na casa-alojamento do projeto. Ela ainda sente falta dos cavalos. E a África não para de chamá-la de volta: “Nem que seja daqui a dez anos, ainda volto lá”, garante, ciente de que o lugar dos sonhos está logo ali,para além do mar de Fora, que cerca a ilha que hoje é seu lar.