Como romper com uma cidade
São Paulo e Nova York são cidades estranhas, inóspitas, violentas, barulhentas, sujas e absolutamente fascinantes. Muito provavelmente porque foram feitas por excluídos e imigrantes
Na primeira vez que saí de São Paulo, eu estava fugindo. Fugindo do personagem heterossexual que havia criado, e de quem precisava me livrar. Tinha 28 anos e estava apaixonada, mas ela não queria saber de mim enquanto eu não entendesse quem eu era, então Tati me disse adeus, foi passar um tempo em Los Angeles e me deixou em São Paulo. Foi quando eu entendi que a única saída era fugir, porque a outra alternativa seria dizer “eu sou gay” à minha mãe, e esta estava fora de cogitação. Minha mãe nasceu na Itália e é possível que tenha, dizem alguns, parentesco distante com Mussolini.
Em rota de fuga, pedi demissão de um ótimo emprego, vendi a moto (que minha mãe não fazia ideia que era minha, mesmo depois do dia em que o zelador interfonou dizendo: “A moto da sua filha precisa ser mudada de vaga na garagem”, e ela respondeu: “Minha filha não tem moto nenhuma, não me ligue mais para isso”), fiz uma mala e fui para Los Angeles. O ano era 1996, e eu passei quase dez anos morando na Califórnia com a Tati, que me aceitou assim que eu me aceitei, momento em que consegui finalmente contar à minha mãe a verdade a respeito da minha sexualidade (e da moto), a despeito do tal parentesco.
A segunda vez que eu saí de São Paulo foi há um ano e meio, e dessa vez eu não queria ir. A vida estava boa, o apartamento tinha sido recém-comprado e decorado, a cabana no meio do mato recém-construída, o trabalho ia bem para padrões de jornalista, a rotina, melhor ainda. Mas, agora casada com uma mulher ingovernável, incansável, inquieta e em processo ainda não concluído de domesticação, fui sendo convencida a passar um tempo em Nova York. “Por que não?”, ela perguntava quando estávamos na cama, me fazendo carinho e me beijando, enquanto refletia se aceitaria a proposta de trabalho que havia recebido. Nessa hora eu sentia vontade de listar uma infinidade de motivos, mas depois de tudo à mesa, e com ela coçando minhas costas, desistia.
E afinal a vida nos Estados Unidos conforme eu a conhecia era boa, eu gostava da comida, da sensação de liberdade, do afastamento, do isolamento e de pensar que por lá “tudo funcionava”. Além do que, falando francamente, São Paulo é uma zona, e suja, e barulhenta e cheia de trânsito e de serviços podres.
Fui.
Os xingamentos
Não demorei a entender que Nova York não é Los Angeles. Ao contrário de Los Angeles, em Nova York anda-se a pé, e as calçadas são sempre abarrotadas de gente e de sacos de lixo empilhados. Parar de andar abruptamente na calçada é proibido pelo código de ética do pedestre local. Você aprende isso sendo xingado. Se a intenção é ver uma vitrine, por exemplo, é preciso ir parando aos poucos até fazer meia-volta. Sair do lado de dentro da calçada para o meio-fio requer talento e cuidado, ou você será outra vez xingado. Demorar para passar o bilhete do metrô pela catraca é razão para mais xingamentos. Nem pensar em abrir a bolsa para procurar pelo bilhete quando estiver com a barriga na catraca; aí é caso de espancamento: é necessário descer as escadas já com o bilhete em riste, pronto para ser deslizado pela máquina, que pode recusá-lo por uma série de razões, falta de crédito entre elas, mas a mais comum é “você não sabe passar o bilhete direito” e a máquina avisa “passe outra vez”. É nessa hora que você toma um tranco por trás e é xingado. Nas primeiras semanas devo ter sido mais xingada do que já fui por fãs do Ceni durante toda a vida. Eu não estava feliz com o que via e escutava.
Mas aí aquela que sempre me salva veio a meu resgate: a rotina. A rotina oferece a ilusão de que tudo está sob controle, e não se pode viver sem um pouco de ilusão. Então, depois de algum tempo, achei um lugar para fazer ioga, um lugar para comprar meu jornal, um lugar para tomar o café da manhã e os chamei de meus. O trabalho encaixou, e um novo cotidiano nasceu: ler, escrever, estudar, cuidar da casa e das cachorras até o meu objeto de devoção chegar do trabalho.
Se relacionar e depois romper com uma cidade é como romper com um amor: no começo bate um alívio, mas em seguida você começa a pensar nas coisas boas que já não tem mais e a saudade vem te visitar. Do mesmo jeito, entrar em um relacionamento idealizado por anos pode decepcionar, e meu reencontro com os Estados Unidos deixou marcas.
Desde que me mandei as coisas mudaram muito. Há uma infinidade de sem-teto, lixo acumulado, infraestrutura abandonada, serviços capengas – e entendi isso depois de ficar algumas vezes presa dentro de um vagão de metrô abarrotado de gente e que teve o serviço interrompido por problemas técnicos, coisa cada dia mais comum, e de passar mais de duas horas na fila do correio para retirar um pacote. Neste dia pensei que se estivesse no correio da rua dos Pinheiros, em São Paulo, já teria tido um momento Relatos selvagens, mas na América do Norte, como dizia minha nonna. Diante da passividade da fila inteira, me calei e fiquei passando bovinamente o dedão
para cima e para baixo pela tela do iPhone, como faziam todos ali, até porque ter um ataque em inglês jamais alcançaria a eloquência de um ataque em português, e eu voltaria para casa enfurecida, pensando em tudo o que deveria ter dito e não consegui.
Pátria é como mãe: muito perto irrita, muito longe dá saudade, e você sabe que deu saudade quando escuta um samba, gênero que você nunca curtiu, e sai cantando e dançando pela sala. É possível se apaixonar por uma cidade, por seus cheiros e cores e sons, e até por suas esquisitices e defeitos porque elas são como as pessoas, e não existe outra forma de conhecer verdadeiramente alguém se não for através das imperfeições; a realidade se esconde atrás de todas as aparências e você só pode amar de fato depois de ver toda a verdade, porque até então não é amor, é encantamento. E numa tarde qualquer de outono eu me apaixonei por Nova York. “Veja o mais profundamente possível”, escreveu Proust, “e você verá musicalmente”. Eu estava, enfim, escutando a música da cidade.
Nós, os esquisitos
São Paulo e Nova York são cidades estranhas, inóspitas, violentas, barulhentas, sujas e absolutamente fascinantes. Muito provavelmente porque foram feitas por excluídos e imigrantes e por isso comportam as mais variadas tribos, são culturalmente imperiais e dão boas-vindas a todos nós, os esquisitos. Mas são também cidades que exigem que, cedo ou tarde, rompamos com elas porque a alternativa é acreditar que a única forma de existir plenamente é vencendo em uma cidade como essas, até porque vencer é, em cidades assim, na maioria das vezes, apenas sobreviver. Talvez por isso desde que existam as cidades grandes exista também o desejo de deixá-las.
Então, em nome de equilíbrio, quando voltar vou passar um tempo no meio do mato, onde há silêncio, verde, pôr do sol atrás da pedra, seriemas na janela e comida que sai direto da terra para a boca. Quando chegar a hora de ir embora, vou levar um pouco de Nova York comigo, dos cheiros e cores, dessa música que agora escuto e das coisas que vivi aqui, e vou ser invadida por uma das mais sublimes sensações que podemos sentir na vida: a de estar voltando para casa.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com