Clara Charf
Comunista, viveu duas ditaduras e ficou clandestina por quase 20 anos ao lado de Marighella
Clara Charf viveu duas ditaduras e ficou clandestina por quase 20 anos, ao lado do guerrilheiro Carlos Marighella, morto em 1969. Ela foi presa, ficou viúva, morou em Cuba. Aos 87 anos, em meio às homenagens ao marido, não larga o sorriso do rosto nem a vontade de continuar lutando para transformar o país
Clara Charf ainda estava no colégio, em Recife, quando um amigo da família foi preso. “Ele é ladrão?”, perguntou ao pai, comerciante. “Não”, respondeu ele. E não deu mais explicações. Um dia, ela encontrou o tal moço (Jacob, pai do fotógrafo Bob Wolfenson), já em liberdade, e lançou: “Por que você foi preso?”. Ele disse: “É que sou comunista”. “E o que é ser comunista?”, retrucou Clara. “No comunismo não tem dinheiro, você troca uma coisa por outra que precisa”, explicou. “Achei aquilo lindo e disse: ‘Então também sou comunista’.”
Clara gargalha ao contar essa história. Mas a verdade é que, desde então, ela nunca deixou de ser comunista. A senhora elegante que recebe a reportagem da Tpm com café, bolinho e gentilezas é a eterna companheira de Carlos Marighella, comandante da ALN (Ação Libertadora Nacional), guerrilheiro e o homem mais procurado do país durante a ditadura militar. Foi assassinado em 1969.
Mas essa senhora de 87 anos também é militante feminista até hoje e amiga de políticos como Luiza Erundina (para quem trabalhou durante seu mandato na prefeitura paulistana), Lula (que exigiu que ela fosse atendida no hospital das Forças Armadas quando se acidentou em Brasília em 2010) e a atual presidenta do Brasil, Dilma Rousseff.
Uma mulher leal
Clara tem a biografia Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, lançada em novembro passado, na mesa do apartamento alugado no Bom Retiro, centro de São Paulo. E comemora, com seu característico sorriso, este momento em que Marighella é homenageado. “Esperava por isso havia muito tempo. A história precisava ser recuperada. Você viu o filme, que maravilhoso?” Ela fala de Marighella, documentário dirigido pela sobrinha dele, Isa Grinspum, que estreou em 2012 nos cinemas.
O filme tem trilha sonora dos Racionais MCs, que compuseram a música “Mil faces de um homem leal”. No clipe, eles encenam o episódio da invasão da rádio Nacional (quando Marighella e seu grupo leram uma mensagem para o povo brasileiro). O filme inspirou Caetano Veloso, que lança no seu próximo disco a faixa “O comunista”, uma ode de oito minutos ao guerrilheiro, em que cita Clara e suas irmãs Sara e Iara. “Ainda não ouvi”, diz, com ansiedade de menina.
Mas o que mais emociona Clara (em vários momentos ela cai em lágrimas) é o fato de Marighella ter recebido “anistia pós-morte”, decretada em novembro no Diário Oficial. “Por muito tempo achamos que isso nunca iria acontecer.”
“Passei anos sem sorrir”
Militante do Partido Comunista desde os 20 anos, Clara conheceu Marighella na década de 40, quando era aeromoça e, ao mesmo tempo, fazia trabalhos para o “Partidão”. “Nos encontramos na porta do Partido Comunista no Rio de Janeiro. Ele me olhou e eu também. Depois me disseram que ele era o Carlos Marighella, então deputado do PC.”
Meses depois, começaram a namorar. Clara largou a carreira de aeromoça e passou a trabalhar na Câmara dos Deputados, numa espécie de gabinete do partido. “Vivemos poucos momentos como pessoas comuns. Logo o partido foi considerado ilegal e passamos a viver na ilegalidade”, conta.
O que significava ter nome e profissão falsos, mudar toda hora de casa, não ver os amigos. Mesmo assim, Clara tem saudade da rotina do casal. “Dividíamos as tarefas de casa, mas uma vez o Marighella chegou e eu estava passando roupa. Ele não se conformou: ‘Você fica passando roupa sozinha no silêncio, não pode. Vou ler para você enquanto isso’.” Clara chora muito ao contar essa história.
Depois da morte do marido, Clara foi para Cuba, onde viveu por mais de uma década – e guarda ótimas lembranças. Dos amigos e do trabalho como tradutora simultânea. Mas não podia contar sua história nem soltar sua farta risada em fotos – tinha medo de que a descobrissem. Além disso, acreditava que a revolução era possível e que poderia voltar ao Brasil para lutar. “Logo que fomos perseguidos, Marighella disse: ‘Seu sorriso é muito característico, Clara, vão te reconhecer nas ruas’”, lembra. “Passei anos sem sorrir. Imagina o que foi voltar ao Brasil e tirar fotos sorrindo”, diz, com a voz embargada.
Hoje, Clara é militante do PT, preside a Associação Mulheres pela Paz, acompanha todas as atividades que homenageiam o marido e não pensa em parar de lutar. “Sem justiça não há paz”, dizem os Racionais na música que homenageia Carlos Marighella. Clara segue a mesma máxima.
“As pessoas agora estão percebendo a importância do Marighella”
Tpm. A vida do Marighella virou filme, livro e música dos Racionais MCs e do Caetano Veloso. Como está sendo para você esse reconhecimento?
Clara Charf. Eu nem esperava mais [risos]. Quantos anos se passaram, meu Deus! E agora o Ministério da Justiça deu a anistia a ele, que maravilha. Quando me ligaram de Brasília e falaram que isso iria acontecer, quase caí para trás. Desde o governo Lula as coisas começaram a melhorar muito. As pessoas agora estão percebendo a importância do Marighella. Você viu o filme, que maravilhoso? Adorei. A música do Caetano ainda não ouvi. Me disseram que vai ter. Estou esperando [sorrindo].
Como você virou comunista? Eu morava em Recife. Éramos uma família de judeus russos pobres. O pai do [fotógrafo] Bob Wolfenson, o Jacob, era filho de um amigo do meu pai. Lembro que uma noite o meu pai chegou em casa e falou: “O filho do seu Davi está preso”. Fiquei escandalizada. Perguntei: “Ele é ladrão?”. E meu pai: “De jeito nenhum”. E não explicou mais nada. Logo que foi solto chamaram a gente para um chá na casa deles, para comemorar. Perguntei para o Jacob: “Por que você foi preso?”. Ele me chamou em um canto e disse: “Porque sou comunista. Mas não posso falar agora. Depois vou na sua casa e te explico”.
Ele foi? Foi. E ele foi responsável pela minha politização [risos]. Falo isso para o Bob: “A culpa é do seu pai”. O Jacob falou [Clara começa a chorar]: “Um dia vai ter uma sociedade em que todos serão iguais, e aí não vai ter dinheiro, vai ser tudo troca”. E eu: “Mas como assim?”. Ele: “Ah, se você precisa de um sapato, a gente troca de acordo com a necessidade”. Eu disse: “Ué, então também sou comunista!” [risos]. Depois, quando fui trabalhar em um banco como datilógrafa, me chamavam para reuniões de mulheres que trabalhavam em fábricas, reuniões de luta por melhores salários. Aí entrei na história, queria participar daquela luta.
Como foi a sua infância? Meu pai era mascate. Minha mãe fazia tudo em casa. Lembro dela cozinhando naquele fogão a lenha, ao mesmo tempo abanando com a mão para que a casa não ficasse tomada pela fumaça. Meu pai não era religioso. Nunca seguimos as tradições judaicas, minha formação era democrática. Você tinha que ser sincero, honesto, tinha que trabalhar. Minha mãe queria que eu fosse pianista, então, alugaram um piano para que eu pudesse estudar, já que não podiam comprar. Ia um professor lá em casa e me ensinava. Fiz o primário e o ginásio em escola pública. Era um ambiente que tinha meninos e meninas. Tive ótimos professores, tanto que foi lá que aprendi inglês, e tradutora acabou sendo uma das minhas profissões.
Você também trabalhou como aeromoça. Eu queria ser aviadora. Como não podia, porque não existiam aviadoras naquela época, decidi ser aeromoça. Agora, imagina isso na cabeça do meu pai. Minha mãe morreu com 40 anos, meu pai me queria perto dele. Mas eu já estava começando a me envolver com atividades políticas. Aquelas histórias de que a filha do [Luiz Carlos] Prestes nasceu no campo de concentração, todas essas notícias começaram a mexer muito com a gente. Peguei uma pneumonia e tive que sair do trabalho, aí decidi mudar para o Rio de Janeiro para tentar ser aeromoça. Meu pai só falava: “Não se meta em política”. E eu fui me metendo cada vez mais [risos].
“Eu olhei. Ele [o Marighella] olhou. Me chamou a atenção aquele preto enorme”
Foi quando você conheceu o Marighella? Conheci o Marighella na sede do Partido Comunista. Meu pai não sabia de nada, claro. Eu trabalhava como aeromoça em uma companhia chamada Aerovias Brasil. Como já era do partido, quando tinha viagem, ia e perguntava: “Tô indo para o Ceará, querem que leve alguma coisa?”. Fiz isso durante muito tempo. Em uma das vezes, fui pegar o material [documentos], entrei fardada e vi aquele cara parado na porta do elevador. Eu olhei. Ele olhou. Me chamou a atenção aquele preto enorme. E disse para um companheiro: “Vi um cara alto lá embaixo!”. E ele disse: “Ah, deve ser o Marighella”. Foi a primeira vez que escutei esse nome. Nem sabia que ele existia. E ele fez a mesma coisa quando subiu, perguntou quem era “aquela” moça.
E ele convidou você para sair? Convidou nada! Continuei sendo aeromoça. E fui convocada para a inauguração de um voo que ia para Miami. Nesse voo, o comandante era integralista e ele não me suportava. Eu era a única mulher no voo e falava sobre liberdade, igualdade. Ele tentou me dar uma cantada, e eu, nada. Você sabe que naquela época algumas aeromoças saíam à noite com a tripulação, né? Hoje não é mais assim. Ele tentou, não conseguiu, ficou com ódio. O avião voltou quase vazio e combinei com meus colegas: “Um de vocês dorme, eu fico com outro, depois a gente troca”. Acharam ótima ideia. Quando ele me viu deitada, ficou louco. Escreveu em um relatório que eu era relapsa. Todos os garotos me defenderam, mas não teve jeito. Pensei: “Não vou ficar nessa profissão lidando com esse homem fascista”.
O que você foi fazer? Voltei para o Rio e tinham montado a fração parlamentar. Era uma espécie de escritório que decidia e redigia todas as propostas, discursos e ações dos parlamentares do Partido Comunista. Os deputados só podiam levar para a Câmara o material que fosse aprovado lá. Foi um trabalho maravilhoso. E o Marighella, que fez parte da primeira bancada de comunistas do Brasil, era responsável pela fração. Foi lá que começamos a namorar e que fiquei amiga do Jorge Amado. Mas isso durou dois anos e passamos para a clandestinidade [nos anos 40, na ditadura de Getúlio Vargas, que durou de 1937 a 45] .Começamos a ser perseguidos e fomos morar juntos. Mas nosso plano antes era casar de papel passado. A partir daí, ficamos entrando e saindo da legalidade. Essa era a nossa vida.
Como seu pai lidou com o fato de você virar companheira do Marighella? Ficou desesperado [risos]. Falava que o Marighella era “preto, cristão e comunista” e que tinha me criado para casar. E ele foi até o Rio me pegar à força. Aí, fugi, ajudada por uma amiga, a Adalgisa. O pessoal do partido me mandou uma passagem e fui para a casa de uma comunista alemã no Rio. Daí me mudei com o Marighella e fizemos uma vida juntos.
Como era viver na ilegalidade, dava para ter rotina? Não era normal. Você não podia dar o seu nome, inventava uma profissão. O seu companheiro, no meu caso, saía sempre à noite, trabalhava de madrugada, porque era procurado e não podia ser visto durante o dia. Eu era a cidadã pacata, que fazia as compras. Saía com a cestinha, comprava verdura, era simpática com todo mundo.
Onde moravam nessa época? Morávamos no Ipiranga [zona sul de São Paulo], eram casas simples. Me chamava Vera. Não podíamos fazer amizade com os vizinhos. Tinha uma vizinha italiana que se sentia muito sozinha e tinha um neto, que vivia com ela. Eu não podia me aproximar deles. Passava o dia ouvindo a rádio Gazeta bem alto. Usava o rádio para disfarçar e falava para todo mundo que meu marido era viajante. Um dia, estou em casa e toca a campainha. Era a senhora italiana: “Dona Vera, a senhora sabe dar injeção?”. Fiquei sem saber o que falar. Eu sabia. Ela tanto insistiu que dei. Virei santa para ela. Quando saía para atividades políticas e ficava dias fora, ela molhava minhas plantas.
Como você ficava sabendo dos trabalhos que tinha que fazer pelo partido? O próprio Marighella me transmitia as missões. Em uma delas, peguei uma pneumonia, parecia que ia morrer de febre. Ele ficou desesperado, não podia ligar para um médico. Falou com um companheiro farmacêutico que disse: “Vou parar meu carro na esquina, de madrugada, você enrola a Clara em cobertores e traz ela”. Fui carregada, ardendo em febre, e esse companheiro ficou comigo na casa dele. Conseguiu que médicos simpatizantes do partido fossem lá. Tínhamos toda uma rede. Fiquei três meses nessa casa, me trataram como se eu fosse uma neta. Eles eram mais velhos e tinham três filhos. Os pais não diziam nem para os filhos quem eu era, porque eles podiam falar sem querer na rua. Inventaram que eu era uma parente. Lá eu me chamava... olha, tive tantos nomes que nem lembro [risos].
Como sabiam qual era a hora de mudar de casa, de nome? O Marighella era secretário-geral do partido, então ele mesmo sabia quando vinha a ordem de mudar. Quando estávamos havia muito tempo num lugar, começávamos a nos olhar e a gente falava: “Está na hora de largar esse aparelho”. Só podíamos levar uma mala pequena. Não levávamos móveis. Não levava roupa de cama, nada. Só o básico.
Você era vaidosa? Claro que não, menina. Ninguém podia ser vaidoso. Não tinha tempo para isso, imagina. Você tinha que andar limpa, arrumada. Não podia andar com uma roupa rasgada, tinha que ser discreta. Mas vaidade? Ninguém tinha tempo para isso.
“Meu pai só falava: ‘Não se meta em política’. E eu fui me metendo cada vez mais [risos]”
O que era mais difícil na vida ilegal? Era muito difícil viver com a polícia atrás de você. Ainda mais sabendo que você não tinha feito nada. Pelo contrário, você estava ajudando o seu país. O que facilitava é que eu vivia com o Marighella, que era uma pessoa maravilhosa, humanista. Dividíamos todas as tarefas da casa. Logo ficou combinado que ele ficaria com as coisas mais pesadas. Ele adorava mexer com água, então, lavava o chão, lavava roupa. E eu passava. Até que um dia ele saiu e, quando voltou, eu estava passando roupa. Ele olhou, deu uma volta e falou: “Vamos combinar uma coisa. Não passe enquanto eu não estiver em casa”. Eu disse: “Por que, se você não sabe passar?”. Ele respondeu: “É que, quando você for passar, vou ficar ao lado, lendo para você” [começa a chorar e pede desculpas]. É que essas coisas mexem muito comigo.
O que ele lia para você? Lia o que interessasse: poemas, discursos, notícias importantes do Brasil... Imagina se a essa altura do campeonato vou lembrar exatamente!
Quando saía, você tinha que se disfarçar? Fui uma das primeiras a perder o direito de cidadã. O meu nome estava na primeira lista de pessoas que perderam seus direitos civis, quase no topo. Aí, o Marighella falou: “Clara, você não pode sorrir nas ruas, senão vão te reconhecer”. E parei de sorrir. Depois fui para Cuba, e lá também não podia sorrir nem tirar foto, por medo de que nos descobrissem e tivéssemos que voltar ao Brasil. Então, você imagina como foi quando voltei e todo mundo queria tirar foto comigo sorrindo. Achei que isso nunca fosse acontecer [chora].
Seu pai nunca chegou a conhecer o Marighella? Quando o JK [Juscelino Kubitschek] era presidente, a gente tinha uma vida legal, morava no Rio de Janeiro, no Catete, e um dia meu pai foi conhecer o Marighella. Imagina, se apaixonaram. Ele acordava e ia comprar as frutas para o meu pai no café da manhã. Meu pai se deu conta da grande figura que ele era. Tanto ele como a minha irmã, do segundo casamento do meu pai, a Iara, ficaram lá em casa e próximos de nós. Mas logo veio a repressão e acabou com tudo.
Vocês foram ilegais na ditadura do Vargas, mas voltaram a viver na legalidade nos anos JK. Como foi? Na década de 50, fomos legais, o Carlinhos [Carlos Augusto Marighella], filho do primeiro casamento do Marighella, morava com a gente no Rio. Adoro ele, temos uma relação de muito carinho um pelo outro. Ele ficava no colégio Batista e passava o fim de semana com a gente. Tínhamos uma vida normal. O Marighella achava que você precisava ter vigor físico, que tinha que estar sempre em forma para o caso de alguma coisa acontecer. E também era muito estudioso. Mas a pronúncia dele para idioma estrangeiro, vixe Maria, era péssima. Um dia ele chegou em casa e trouxe um aparelho de madeira, como se fosse um remo. Ele sentava para fazer exercício com aquilo. Achei ótimo. Mas, ao mesmo tempo, para não perder tempo, ele queria estudar inglês [risos]. Ele colocava um aparelho no ouvido, como se fosse um rádio, e ouvia, repetia as palavras e fazia os exercícios. O Carlinhos chegou em casa e morreu de rir.
O Marighella era comandante da ALN (Ação Libertadora Nacional) e praticava a luta armada. Você andava armada? Sabia de tudo, claro, mas não participava das ações armadas. Nunca tive arma nem aprendi a atirar. Era uma organização. E, dentro da organização, o papel do Marighella era um, o meu, outro. Eu fazia o trabalho de apoio tático. Cada um tinha sua função. Mas acho engraçado chamarem a gente de terrorista. Terroristas eram os militares. Eles que começaram a prender as pessoas, a torturar. Eles começaram uma guerra.
A gente apenas se defendeu. Se eles não tivessem começado a matar os companheiros como mataram, nunca teria havido da parte da resistência uma ação armada. É isso: eles começaram. Nós só tentamos nos defender e melhorar o país, lutar pela democracia.
Você sabia de tudo o que ele fazia, mesmo das ações mais sigilosas? Não. O Marighella não falava abertamente. Um dia ele chegou em casa e disse: “Preciso estudar inglês porque vou viajar”. Eu não perguntei para onde.
Como conseguiu não perguntar? Minha filha, porque não existia a possibilidade de fazer essa pergunta. Era uma norma. Era melhor não saber, porque senão você podia ser presa e acabar entregando na tortura. A única coisa que ele me disse foi que precisava aprender inglês em um mês. Então, ficamos um mês conversando em inglês [Clara teve bons professores na escola e tinha facilidade para a língua] e ele aprendeu um pouco. Ele viajou e eu fui presa.
Como aconteceu? A direção do partido achou que eu poderia ser professora de um curso para ferroviários em Campinas. Falaram que eu seria recebida pelos companheiros em Campinas. Aceitei. Estava com problema de vista e precisei comprar óculos. Quando experimentei, perguntaram o meu nome e saiu Marta Santos. Nem pensei. Fui para Campinas e levei o recibo no bolso. Fui com uma sacola cheia de livros. Livros marxistas, claro. Quando cheguei, o companheiro disse que estava sendo procurado pela polícia. Olha a loucura que eles fizeram! Ele me levou para a casa de uma companheira e, chegando lá, ela não queria que eu ficasse. Ele foi procurar outra casa. Chegamos lá, a casa estava fechada. A essa altura, a polícia da cidade começou a achar a movimentação esquisita. E ele com mandado de prisão. A polícia o reconheceu, ele conseguiu fugir. Eu fiquei, fui presa e comecei a gritar: “Abaixo a ditadura de Getúlio Vargas”. Fiquei com ódio. Na delegacia, não tinha preso político, só ladras, prostitutas etc. O guarda entrou, me olhou e perguntou meu nome. Falei Marta Santos, e disse que tinha ido fazer tratamento de saúde em Campinas. Ele percebeu que era tudo mentira, né?
Como foi sua vida na cadeia? Fiquei uns quatro meses presa [na ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937-45]. Me levaram para a única cela disponível para mulheres. E o delegado disse para as outras: “Não falem com essa mulher que ela é comunista” [risos]. Uma chegou para mim e perguntou: “O que é comunismo?”. Eu disse: “Comunismo é dividir as coisas que você tem com as outras pessoas. Por exemplo, se eu tenho dois rádios, posso te dar um, porque só preciso de um”. E ela respondeu: “Então sou comunista. Fui presa porque tinha dois rádios na casa onde eu trabalhava e roubei um” [risos]. Fiquei queridíssima pelas presas. Daí me tiraram da cela com medo de eu fazer uma revolução com elas. Me levaram para uma cela sozinha. Ficava deitada em um colchão podre, sem casaco, sem nada. Começaram a trazer delegados de São Paulo para tentar me reconhecer, e nada. Perguntavam meu nome e eu dizia: “Marta Santos”. Um delegado falou: “Sua comunistinha de merda. Se você não falar a verdade, vamos acabar com você”. Se eu falasse, ia ter que contar tudo, que eu era a Clara Charf. Seria uma tragédia.
E como saiu? O partido me mandou um recado de que eu teria que dizer meu nome. E começaram a se mobilizar para me tirar. Um dia, quando não aguentava mais, disse: “Falo meu nome, mas na frente do juiz”. Um dia depois, apareceu um juiz. Pensei: “E agora? Vou ter que falar!”. Nunca esqueci a cara dele. Senti um ódio quando vi aquele juiz do lado de fora e eu presa naquele lugar horrível. Tive um ataque na cela, joguei tudo no chão. Avisei o advogado que só falaria fora da prisão. Me levaram para o Tribunal de Justiça e quando disse que era Clara Charf foi um escândalo.
E aí? Voltei para a cadeia e saí semanas depois. Fiquei com medo e disse que só sairia na companhia do responsável pela associação de imprensa de Campinas. Não sei por que falei isso. Mas, no dia seguinte, apareceu o cidadão e me tirou de lá. Me levou para a casa dele [começa a chorar]. Imagina, tinham preparado uma cama maravilhosa para mim, banho quente, comida quente. Que pessoas maravilhosas. Me deram a cama deles para eu dormir [chorando]. Ele me levou até o Rio de carro, avisou o Partidão. E foi lá que reencontrei o Marighella, que estava na China quando eu estava presa.
Por que deixaram a senhora livre? Nem eu sei ao certo, só sei que o advogado conseguiu um habeas corpus.
Como foi o reencontro? Ele só chegou uns dias depois da soltura. Antes de dar um abraço nele, perguntei: “Escuta, você pode me dizer onde é que você estava?”. E ele: “Na China”. E eu: “Na China? Mas como você falou inglês com os chineses?”. E ele: “Ué, eles também não sabiam falar [risos]”. Ele se entendia desenhando. Morri de rir com as histórias dele. Ele era um grande desenhista. E a partir daí passei a ser conhecida, isso nos anos 50.
Como era a vida de vocês na legalidade? Tivemos um momento de muita felicidade e alívio com a eleição do João Goulart [em 1961]. Comecei a trabalhar na liga feminina, mas isso durou pouco. Logo veio o golpe. Invadiram nosso apartamento. O Marighella pressentiu tudo. Disse: “Vamos descer pela escada”. Eles subiram pelo elevador. Quando saímos, fomos para a casa de um trabalhador conhecido nosso. Marighella foi encontrar a zeladora para pegar umas roupas e levou um tiro. E foi preso. Só fui saber no dia seguinte, quando um companheiro me deu a notícia. Fiquei na agonia. Quando ele foi solto, fomos para um sítio, onde ele escreveu o livro Por que resisti à prisão. Ele foi preso muitas vezes. E sempre foi conhecido por ser muito corajoso. Nunca falou nada na tortura.
“Sabia de tudo, claro, mas não participava das ações armadas. Nunca tive arma nem aprendi a atirar”
Essa última ditadura que você viveu, após o Golpe de 64, foi a pior? Toda repressão é horrível. Mas ali era um caso de vida ou morte. O golpe endureceu e Marighella passou a ser o homem mais procurado do Brasil. Nossa vida era muito perigosa. No dia em que ele foi assassinado, ele saiu para fazer uns contatos. Alguns deles eram com padres, para tentar tirar gente do Brasil pela fronteira da Argentina. Ele não sabia que os padres já tinham sido presos, torturadíssimos e que acabaram entregando ele. Eles mataram o Marighella como se fosse um troféu. Era o inimigo número um da causa deles.
Como soube da morte? Estava em casa, à noite, esperando o Marighella voltar. Aí um companheiro chegou e falou: “Vamos sair daqui correndo. Você sabe o que aconteceu?”. E me contou [começa a chorar e para de falar]. “Ele foi morto, não é?” “Foi. Assassinado.” Me levaram para a casa de uma companheira maravilhosa, depois para várias casas. Até que montaram um esquema e consegui ir para Cuba. Fui com a roupa do corpo e carregando um retrato do Marighella, que foi a única coisa que sobrou do nosso apartamento [no dia da entrevista, Clara não encontrou a foto]. O resto todo foi queimado. Fui abraçada com essa foto para Cuba. Não a largava por nada.
Como foi a sua vida em Cuba? Em Cuba eles eram maravilhosos. Colocaram a gente numa casa. Como era meu nome lá mesmo? Era Claudia Gonzales. Tinha amigos, mas não podia falar muito sobre a minha vida. Fui tradutora de cabine. Aprendi espanhol. Foi uma experiência profissional maravilhosa. Fiquei mais de dez anos sem ver muitos conhecidos. Minha família não podia nem pensar em me visitar.
Você só voltou ao Brasil em 1979, com a anistia... Minha vinda foi uma epopeia. Ficamos sabendo da anistia, mas não existia consulado em Cuba. Tive que vir pelo Panamá e, chegando lá, não queriam me dar o passaporte. Fiquei semanas indo na embaixada, e eles diziam que não tinham autorização para emitir meu passaporte. Acabei vindo com uma declaração de viagem escrita em um papel. Mas consegui chegar. Aí foi aquela loucura. Imagina o chororô da família.
Foi difícil se readaptar? Quando voltei a procurar emprego, olha, vou te contar... Ia toda arrumadinha. Minha irmã comprou um vestido para mim, pintei o cabelo. Fiquei agoniada atrás de emprego. Até que me falaram que o Sérgio Motta [empresário e ministro da Comunicação de Fernando Henrique Cardoso, morto em 1998] arrumava muito emprego para quem tinha saído da cadeia. Me convidaram para ser bibliotecária. Mas eu não tinha diploma. Acabaram me registrando como auxiliar de biblioteca. Fiquei trabalhando lá. Menina, você não imagina o sucesso. Estava contentíssima, já tinha entrado no PT, na Secretaria de Mulheres.
“Quando voltei, me chamaram para fazer palestras sobre Cuba. Estava feliz da vida”
Como foi esse seu retorno à militância pós-anistia? Quando voltei, começaram a me chamar para fazer palestras sobre Cuba. Eu estava feliz da vida. Chegava em casa, fazia minha comida. Até que um dia tocaram a campainha, e era toda a comissão de mulheres do PT. Perguntei se tinha acontecido alguma coisa e elas: “A gente quer que você seja candidata a deputada pelas mulheres”. Disse que elas estavam loucas, que isso nunca tinha passado pela minha cabeça. Mas aceitei. Resultado: tive mais de 19 mil votos [mas não foi eleita]. Não sei como. Eu não tinha dinheiro. Mas todo mundo queria ajudar. Foi uma coisa linda. Ninguém sabia como eu tinha tido tanto voto. Depois disso, fiquei superconhecida. Todo mundo me chamava para fazer palestras. Entrei na Secretaria de Mulheres, trabalhei na assessoria de relações internacionais com a [Luiza] Erundina. Trabalhei na Câmara. Ai, é tanta coisa que fiz que nem te conto. E continuo fazendo. Porque, quando você vai entrando na luta, você não para. Sou do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, desde que entrou o Lula. Sou da Secretaria de Mulheres do PT e presidente da Associação Mulheres pela Paz. E ainda dou palestras. Tem muita coisa para a gente fazer.
Em que o movimento Mulheres pela Paz atua? A gente combate a violência contra a mulher. Nosso foco agora é trazer homens para dentro do movimento. Achamos que o homem não deve ser visto como inimigo, mas como alguém que pode ajudar no combate. Eles podem ajudar os filhos a não praticar violência contra mulher, podem denunciar e ajudar se isso estiver acontecendo com alguém da sua família.
Como é a sua rotina? Ainda trabalho muito. Mas tenho meus limites desde que quebrei o fêmur, em Brasília, quando anunciaram a candidatura da Dilma, há quase três anos. Tinha muita gente conhecida lá, eu estava muito feliz, e alguém atrás de mim me chamou. Fui virar, perdi o equilíbrio e caí. Daí me botaram na ambulância, mas não tinha leito disponível em nenhum hospital de Brasília. Avisaram o Lula e eu fiquei esperando até ele conseguir um leito para mim no hospital das Forças Armadas, que a princípio só atende militares e familiares e pessoas que têm cargo oficial. Mas ele deu um jeito e fui pra lá.
A senhora precisou ser operada? Fui operada e fiquei internada até me recuperar. Nesse meio-tempo, decidiram que seria melhor eu me mudar para perto da minha irmã Sara. Então quem fez a mudança, alugou e deu um jeito neste apartamento [no Bom Retiro, região central de São Paulo] foi o pessoal do PT. Os móveis da sala, essa estante... Eu não tinha nada disso. Quando voltei pra São Paulo, já voltei pra cá. Ah! E foi num avião das Forças Armadas também, a pedido do Lula, porque ainda não podia andar. Quando eu ia imaginar que ia ser bem tratada pelas Forças Armadas?