Casa nova
Senti aquela sensação tranquila de que, não importa aonde eu vá, o caminho sempre dá certo
Tudo o que quero neste momento é conseguir te fazer sentir as emoções que vivi no último mês. Finalmente consegui mudar de casa. Me veio aquela emoção adolescente de quando eu queria morar sozinha.
Desde que sofri o acidente, há 15 anos, que deixei de ter minha casa e fui para a casa dos meus pais.
Morei no apartamento que era do meu irmão, antes em um flat, antes na casa da minha avó e antes vai longe.
Fui da rua da Mata, em São Paulo (“mata”, na Itália onde morei também, quer dizer louca), para Paraty, para o Einstein.
Acabei de pensar que já morei com muita gente: Roberto (namorado), Julinho (primo admirado), Milena (amiga), Rafael (amigo), Catherine (amiga), Mansur (amigo), Paulo (namorado), Dorethée (amiga), Maysa e Telma recentemente.
Estou naquele pique de comemoração da vida. Toda hora quero enaltecê-la. As contas não param de chegar, a reforma e os pedreiros continuam mesmo comigo lá, mas está tudo bem!
Outro dia, com Fabiano, meu novo namorado, eu não tinha vontade de deixar o contato da noite na pele. Saímos circulando pela rua quieta. Fomos descobrindo cada pedaço de calçada, seu perfil, seu cheiro e sua acessibilidade.
Um encontro
De repente, num foco de luz, estava um rosto ladeado de muitos objetos: panelas, Pets, latas, caixas, panos. Sobre a cabeça e o tronco, um guarda-chuva e, sobre as pernas, cobertor e saco plástico. Rapidamente falou com voz forte e rouca: “Oi, vocês aqui? O que aconteceu com você?”.
Referia-se à cadeira de rodas, mas eu demorei em responder pois não conseguia discernir se era homem ou mulher. Decidi perguntar seu nome para entender melhor a situação destaque da noite, e ela respondeu: “Meu nome é Cassetão”.
Aí, pensei: “Putz, o Cassetão tem um peitão grande de senhora, bigode de mulher portuguesa e a voz era neutra”.
Desencanei de ter esse referencial e falei que tive um acidente de carro e quebrei o pescoço.
Começou, sorridente, a contar que o músico tenor alemão Fritz (Friedrich Wunderlich), com a voz mais bonita do que a do Pavarotti, quebrou o pescoço rolando de uma escada e morreu. E eu não podia ter quebrado o pescoço e estar viva.
– Mas quem é esse cantor?
– Cantava “Granada” melhor do que qualquer outro.
Perguntamos: “Você mora aqui?”.
– Moro na rua, cada dia em um lugar.
– Por que não vai para um albergue?
Desconversou. Fiz essa pergunta quatro vezes até que o Cassetão (agora eu tinha certeza de que sua alma era feminina) mostrou um carrinho de feira no meio dos seus pertences e disse: “Não vou para um albergue por causa do meu namorado, vem ver meu namorado”. O Fabiano foi me empurrando e eu falei:
– Não, não, pode ser um cadáver.
E ela insistiu até que descobriu o carrinho desvendando uma ave gorda, grande e tímida. Não sei se era pato, pomba gigante ou uma jovem e robusta galinha. Todos caímos na risada. Nós três estávamos visivelmente gratos pelo encontro.
Fui voltando com o Fabiano e senti de novo aquela sensação tranquila e gostosa de que dá para virar em qualquer rua que o caminho sempre dá certo.
Mara Gabrilli, 40 anos, é publicitária, psicóloga e vereadora por São Paulo. Fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@camara.sp.gov.br