Bruna Baltresca

Ela poderia salvar o mundo, mas um carro desgovernado interrompeu seu destino

por Milly Lacombe em

Meses antes de completar 29 anos, Bruna Baltresca decidiu virar a mesa: pediu exoneração de um cobiçado cargo público e se preparava para viajar pelo planeta para ajudar crianças carentes. Mas um carro desgovernado interrompeu seu destino

Bruna entrou pela primeira vez em um avião quando tinha 24 anos. Com a amiga de infância Claudia Minzon, foi para Buenos Aires passar alguns dias. Mas o medo era tanto que Claudia começou a temer que Bruna protagonizasse um espetáculo constrangedor. “Ela tremia demais, falava sem parar”, lembra. “Quando o avião acelerou para decolar, achei que a Bruna ia desmaiar ou, pior, começar a gritar”, completa rindo.

Mas o medo não desembarcou com ela em Ezeiza, o aeroporto internacional da capital argentina. Em algum lugar entre São Paulo e Buenos Aires Bruna relaxou e entendeu que viajar fazia parte de sua alma. Depois disso, foi para Jerusalém, Amsterdã, Paris, Las Vegas, Los Angeles, Nova York, Havaí, Cairo.

Na época, recém-concursada para uma vaga de advogada no Tribunal Regional do Trabalho, depois de se formar na Universidade São Judas, passou a economizar todo seu dinheiro para viagens. Morando com a mãe, Miriam, e com o irmão, Rafael, palestrante motivacional que desde a morte do pai – de infarto, em 2004 – bancava a casa, Bruna podia se dar ao luxo de guardar quase todo o salário para viajar. E era o que fazia, mesmo sob protestos do irmão, que pedia para ela colocar a cabeça no lugar e fazer uma poupança.

Mas Bruna dava de ombros. Sabia que não conseguiria mais deixar de viajar. E quem, com um mínimo de noção do perigo, topa enfrentar uma ariana com ascendente em Áries? Rafael, três anos mais velho, sabia que a parada não era para qualquer um. E, por essas e outras, chamava a irmã de encrenqueira. “Se a situação tinha sabor de injustiça ela botava para quebrar, mesmo sem ter nada a ver com o negócio”, diz.

Claudia lembra que ir com Bruna para a balada era saber que a noite acabaria em discussão. “A frase que ela mais dizia era: ‘Então chama o gerente’”, diverte-se. “Sabe aquela hora que já deu, está tarde, todos querem se mandar, e, quando a conta chega, ninguém está a fim de olhar? Então, a Bruna pegava, conferia e, claro, sempre achava algum erro. Era desesperador porque ela mandava chamar o responsável e só saía com tudo corrigido.”

Bruna não se indignava pela grana, porque nunca se importou em gastar e pagar coisas para os amigos. Fazia para aquietar o rígido senso de justiça que habitava seu espírito.

Mas não era só de encrenca em encrenca que ela caminhava. À noite, em casa, quando o irmão chegava,  não era raro tirá-lo para dançar na cozinha. Adorava dançar, mesmo que fosse sozinha em seu quarto ou com o irmão dentro de casa. Era Rafael também quem avaliava a roupa com a qual ela saía à noite. Quando Bruna perguntava se estava bom e ele dizia que não tinha gostado, ela devolvia com uma espetada: “Ah, você não entende nada de moda, não sei por que pergunto”. Minutos depois, aparecia na sala com outra roupa, rindo muito. “E agora?”, dizia rodopiando.

No fim de 2008, o trabalho ficou pesado e ela passou a chegar em casa sempre lotada de casos que deveriam ser analisados. Depois de passar no concurso, acabou assumindo cargo de alta confiança trabalhando diretamente com juízes, e não eram raros aqueles que a aconselhavam a prestar o exame para magistrado; para muitos, Bruna, com o apurado conhecimento da lei, o incansável senso de justiça e a capacidade sem fim para trabalhar noite adentro, seria uma juíza excepcional.

Em 2010, começou a refletir se aquela era exatamente a vida que queria. Varava noites estudando todos os casos porque vivia atormentada com a ideia de cometer alguma injustiça. Quando tinha um tempo, cuidava do inventário do pai, que estava concluindo. Durante o jantar, quase sempre feito com a mãe e o irmão na mesa da cozinha, começou a falar do cansaço que sentia por estar trabalhando muito. “Acho que não quero mais isso”, comentou um dia. Rafael olhou para a irmã e entendeu que ela jamais seria feliz se continuasse no tribunal. “Sai, Bruna. Eu ajudo você até que encontre o que quer fazer”, disse. E ela então começou a pensar mais seriamente na possibilidade. Mas quem abre mão de um cargo vitalício? Quem joga pela janela o “salário para sempre, a aposentadoria garantida”? Só os fodões.

E foi assim que, em 10 de setembro de 2011, a corintiana Bruna Baltresca virou a mesa.

 

Na saída do shopping Villa Lobos, por volta das dez da noite, foram andando pela calçada rumo ao carro. E esses seriam os últimos passos de Bruna

 

Os dias que se seguiram ao pedido de demissão foram de ócio. Bruna acordava tarde, ia até a cozinha, pegava uma cumbuca com cereal e frutas, jogava um pouco de leite por cima e se mandava para a sala, onde ligava a TV no Cartoon Network. Depois, passava horas no computador planejando a próxima viagem. Não sabia para onde ia, mas sabia que não iria como turista: agora queria ajudar crianças e comunidades carentes. Dois países a tentavam: Índia e África do Sul, esse último ainda mais atrativo, já que Bruna precisava e queria aperfeiçoar o inglês. Não era de namorar firme e muito menos sonhava com casamento porque, antes de se amarrar a uma pessoa só, dizia que queria conhecer o mundo sendo tão livre quanto pudesse.

Transformação

Sozinha em seu quarto, aproveitava para escrever no diário. Talvez só ele soubesse que a aparente fase mais relaxada vinha com uma dose de angústia; Bruna intuía que a vida estava mudando.

No dia 6 de setembro, escreveu: “Sinto que estou em transformação e que muitas coisas virão pela frente. Comecei a pensar em coisas que nunca pensei antes sobre a minha vida. Essa transformação está sendo difícil, acho que só agora estou descobrindo quem  realmente sou”. Dias depois, continuaria no mesmo tom: “Sei que isso vai passar e que será importante para mim. O mundo não vai parar para eu me levantar, a vida continua. A vida esta aí para ser vivida, para fazer boas ações, cuidar do próximo, amar e ser feliz”.

No dia 17 de setembro, Bruna acordou tarde e disposta. Queria aproveitar o dia para conseguir mais informações a respeito da África do Sul e, quem sabe, comprar alguns livros. Gostava de ir ao shopping Villa Lobos, que ficava perto de sua casa, no Parque São Domingos, zona noroeste de São Paulo. Aproveitaria para convidar a mãe, Miriam. No fim do dia, mandou um e-mail para um ex-namorado que era grande amigo: “Oi, Diego. Tudo bem? Como vai o pequeno Mati? Espero que bem! Uma pergunta. Que te parece fazer trabalho voluntário na Índia? Estou pesquisando algumas coisas e tem a possibilidade de ir para muitos países, entre eles África do Sul e Índia.Tks”. Enquanto esperava pela resposta, Bruna e a mãe saíam rumo ao shopping, mas na pressa, acabou esquecendo o iPod Touch sobre a cômoda no quarto, bem embaixo do painel de fotos que estava montando com imagens das viagens que havia feito.

Costumava estacionar o carro em uma rua transversal por saber da dificuldade de achar uma vaga na garagem do Villa Lobos. No shopping, comeram alguma coisa, compraram livros e acabaram encontrando amigas da mãe, com quem sentaram para bater um papo. Na saída, por volta das dez da noite, foram andando pela calçada rumo ao carro. E esses seriam os últimos passos de Bruna.

Consciência

O Golf dirigido por Marcos Alexandre Martins, 33 anos, chamou a atenção dos demais pedestres. Em alta velocidade e sem rumo, todos correram ao perceber que o carro invadiria a calçada. Bruna e Miriam fizeram o mesmo, mas não conseguiram escapar. Miriam morreu na hora; Bruna, algum tempo depois, no hospital. Segundo consta no boletim de ocorrência 6799 do 14º DP, o bombeiro Veronezzi, responsável por socorrer o motorista, afirmou ao delegado plantonista que havia sinais visíveis de embriaguez, informação confirmada pelos cirurgiões Marcio Simões e Andressa Giacomazzi, que acudiram Marcos no hospital São Luiz. Já não importava. Bruna e Miriam tinham encerrado ali suas jornadas humanas.

Enquanto você lê esta matéria, pelo menos uma pessoa é atropelada no Brasil (a média é de um atropelamento a cada 7 minutos). Quantos deles provocados por excesso de bebida? Não se sabe. E vai continuar assim enquanto não houver obrigatoriedade de soprar o bafômetro ou fazer exame de sangue.

A lei e a Justiça

De acordo com o boletim de ocorrência (nº 6799) lavrado no 14º DP, de Pinheiros, o motorista que matou Bruna e sua mãe estava visivelmente embriagado. Preso, Marcos Alexande Martins seria liberado dias depois – e sem a necessidade de pagar fiança. Horas após a colisão, acabou realizando exame de sangue no IML para que se constatasse, ou não, a embriaguez (o resultado não foi divulgado até o fechamento desta edição).

No atual Código de Trânsito, dirigir embriagado já bastaria para levar à punição, mas dois problemas aparecem: o primeiro é a não obrigação de um exame que constate a embriaguez. O segundo é a qualificação do crime: culposo (sem intenção de matar) ou doloso (com intenção). Se a qualificação for de homicídio culposo, o motorista não vai para a prisão e cumpre, no máximo, pena alternativa de dois a quatro anos por morte.

Em outubro, foi instituída no Senado uma comissão de reforma da legislação. Uma das propostas dessa comissão é que beber, dirigir e matar seja sempre qualificado como homicídio doloso, com pena de até 20 anos em regime fechado. A fundamental discussão sobre a legalidade do bafômetro corre no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). A petição pública de Rafael Baltresca, que já conta com mais de 100 mil assinaturas, pede a mudança da legislação. Acesse: www.naofoiacidente.com.br.

Crédito: Arquivo Pessoal
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