Bonito e a Serpente
A atriz Paula Picarelli foi até Bonito a passeio e descobriu que, como muitos paraísos, a cidade pode estar fadada à destruição pela ganância do homem
Fotos Fernanda Brianti
"Uma monstruosa serpente está lacrada por Senhorzinho, no pico dessa serra. Tem um suspiro que ela haveria de sair. A dita serpente até esta data vive na caverna. Então ele recomendou que dali em diante ninguém fosse mais olhar, senão seria devorado por ela. Portanto, meus irmãos, a serpente ali está até agora acorrentada pelo mestre divino até o fim deste século. Vocês que são jovens ainda vão ver o resultado da fera de incalculável tamanho."
Esse trecho faz parte dos relatos registrados por Theodorico de Góes Falcão, seu Bijo, um dos mais importantes nomes da história da famosa Bonito, pequena cidade do Mato Grosso do Sul. Seu Bijo foi um dos seguidores de Senhorzinho, uma figura lendária que apareceu pela região na década de 40 e deixou relatos emocionantes de milagres e injustiças. A história desse senhor que se comunicava por gestos e por palavras escritas no chão é símbolo perfeito das contradições desse nosso país.
Conta-se que seu primeiro milagre foi ressuscitar um carneiro que havia sido degolado. Daí em diante, 12 carneiros o acompanharam até o fim de sua vida. Ele teria também prendido numa caverna uma serpente descomunal que seria responsável no futuro pela destruição da cidade (as testemunhas estão vivas até hoje) e proibido a passagem por lá. Há relatos de que foi preso algumas vezes, mas sempre aparecia misteriosamente livre e distante da prisão. Dizem que ele fazia curas com ervas e água com cinzas benzidas por muitas orações. Por isso, em pouco tempo, começou a incomodar farmacêuticos, que na época vendiam a rodo o famoso “melhoral". Na disputa de mercado entre os farmacêuticos e a fé, Senhorzinho acabou sendo morto cruelmente.
Se foi praga, premonição ou profecia de Senhorzinho não importa mais, o fato é que realmente estamos vendo hoje a serpente de tamanho incalculável pôr em risco esse santuário brasileiro. Bonito está situada no oeste do Mato Grosso do Sul, aos pés da serra da Bodoquena, cerca de 300 quilômetros de Campo Grande. Existem mais de 50 passeios disponíveis, quase todos muito bem estruturados, com preservação ecológica, valores fixados por tabela, esgoto tratado e número limitado de pessoas em cada passeio.
A maioria dos locais dos passeios fica dentro de fazendas particulares e a fiscalização e as regras ecológicas são rígidas. Mas fora dos locais estipulados para visitação turística a realidade é outra. O desmatamento rola solto por causa da pecuária e há extração de calcário com dinamite a menos de um quilômetro das nascentes. Devido à grande quantidade de calcário existente no subsolo, as águas dos rios são cristalinas de colorações em tonalidades verdes e azuis. Mas pelo mesmo motivo o solo da região é muito frágil. Há quem diga que não vai agüentar e vai acabar cedendo e formando imensos buracos.
O aumento no número de queimadas para pastos vem transformando a paisagem e o meio ambiente no período das secas, que se estende do fim de março a meados de setembro, quando a névoa das queimadas chega a encobrir a cidade.
Os efeitos do aquecimento global também já dão sinais por lá. A média do nível de água dos rios está 70% abaixo do normal para esta época do ano. O lucro imediato da pecuária e da extração de calcário parece ter mais valor que a saúde das pessoas e da cidade. Os problemas são quase invisíveis a um turista desavisado, mas Bonito, como muitos paraísos, pode estar fadada à destruição pela ganância do homem ou pela serpente do Senhorzinho.