Beleza japonesa
Sempre apressados com passos ligeiros, eles se movem em blocos de multidão organizada. E minha cadeira de rodas serve para desorientá-los
Quando era adolescente, conheci, por meio do filme Furyo – Em Nome da Honra (de Nagisa Oshima, 1983), a melodia que até hoje mais encanta meus sentidos. Música japonesa do compositor e produtor Ryuichi Sakamoto, que se tornou para mim uma referência do pop progressivo e da bossa-house. Na mesma época, fui surpreendida por um outro filme chamado Sonhos (de Akira Kurosawa, 1990) e este imprimiu na minha alma o eterno desejo íntimo de desvendar essa cultura. Assim começou minha adoração pelos japoneses...
Possuem um respeito intrínseco pelo outro e levam as coisas bem a sério. Protagonistas do ritual do chá, do budismo, do shiatsu, do kimono com chinelinho. Me fizeram viciar em sashimi, missoshiru, ofurô, cosméticos Shiseido e perfumes Issey Miyake. Me sensibilizam quando fazem reverência e falam “sumimasen” (desculpa!) para tudo. Gosto de assistir àqueles gordinhos lutando sumô com shortinho e “chuquinha” na cabeça, e aprecio os traços imprevisíveis do arquiteto Tadao Ando. Quando eu era criança, tinha um caderno de escola com uma capa da cidade de Osaka. Era de matemática e muitas vezes ficava olhando a metrópole enquanto pensava...
Estou no trem-bala (shinkansen) indo de Tóquio para Osaka. É a segunda vez que venho ao Japão a convite do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para fazer pesquisas. Há um ano, o objetivo era estudar acessibilidade e associações ligadas a pessoas com deficiência. Desta vez, vim para me aprofundar em desenho universal e tecnologias assistivas.
É contagiante ver como essa cultura é diferente da nossa. Por um lado, a tecnologia de vanguarda mantendo a vida sistematizada. Por outro, uma tradição milenar arraigada em cada passo, literalmente, já que as japonesas caminham com seus pés virados pra dentro arrastando os sapatos. Uns dizem que elas gostam e que é fashion, outros dizem que não. Alguns dizem que é de tanto sentar sobre os pés no tatame, outros ainda dizem que é de fechar as pernas para proteger a genitália. Não estará no código genético como os olhos puxados? Assim como o charme imprescindível do vão entre as coxas, provocando mínimo espaço para caber um hashi. São numerosíssimos (127 milhões de habitantes em uma área 40 vezes menor que a do Brasil) e caminham olhando para baixo. Ou para o celular, num gesto submisso transformado num ato de contínuo download.
Choque de culturas
Sempre apressados com passos ligeiros, movem-se em blocos de multidão organizada, respeitando o “irebire” do fluxo... Minha cadeira de rodas, no meio disso, serve para desorientá-los e fazê-los tropeçar. Mesmo quando cubro a cabeça de tanto frio eles não me olham. Por várias vezes, apesar de toda a gentileza que nos dedicam, tivemos discussões com nossos guias, por puro choque cultural. Eles se comprometem com terceiros, demorando a levar em consideração nossas diferenças físicas e de atitudes. Resultado disso é que não conseguimos seguir a agenda da forma programada e eles enlouquecem se não puderem cumprir com a palavra. Do mesmo jeito que não consigo ficar sem comer, me vestir em cinco minutos, sair sem antes ter me alongado, não posso ouvir um “não” e ficar satisfeita ou achar que tudo é impossível quando fora da conformidade.
Porém, nossas outras diferenças nos deixam exageradamente interessantes de nos observar. E agora uma mensagem de “oriente” para você: nunca estive tão dentro do sonho, da melodia, da imagem, da memória. Um presente japonês. Sayonara!