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Autobiografia fora do armário

Ilustração Felipe Cohen

 

Alison Bechdel escreve com imagens. Em 2006, lançou Fun Home, sua
autobiografia em quadrinhos, ganhadora do Eisner Award e publicada no
Brasil pela Conrad. Não perca. Ela cresceu numa família que guardava um
segredo: o homossexualismo de seu pai, que era assumido na prática,
embora disso não se falasse. Essa não era a única particularidade do
pai dela. Ele era louco por casas antigas, reformava-as com paixão de
antiquário, era culto, professor de literatura inglesa. Além disso,
havia herdado a funerária da família, daí o trocadilho com “fun”, casa
funerária, funesta, mas divertida.

Menina solitária que se veste
de garoto, menstrua em silêncio e odeia seus peitos, Alison descobre
cedo sua homossexualidade, mas também sobre isso nada se fala. Ela
cresceu ajudando a construir o museu patriarcal, destino partilhado com
uma mãe meio etérea e dois irmãos apagados. É seu pai, na obstinada
tarefa de montar uma casa perfeita, em contraposição à sua sexualidade
pouco convencional, que constitui a figura central do livro.

É
da estranha vida dele, da dor pela sua morte precoce, da família que
ela chamava de “Adams”, que Alison tira o material não só para seu
lesbianismo, mas também para sua arte. Seria balela simplória dizer que
alguém se tornou gay porque o pai era homossexual enrustido, ou que é
artista porque os pais sacrificaram sua criatividade em prol da vida
familiar. A vida dos filhos não é uma conseqüência direta das
pendências dos pais. De fato, herdamos missões, sinas e segredos, mas o
que fazemos com eles é pessoal, intransferível e, principalmente,
imprevisível.

Alison acha que o pai, Bruce Bechdel, só
constituiu uma família por falta de coragem de se assumir, e que a mãe
afogou seu talento de atriz nova-iorquina na chatice da maternidade
interiorana. Porém, quando ela se assume lésbica e comunica isso à
família, seu pai lhe escreve: “Tomar partido é um tanto quanto heróico,
e eu não sou um herói. Será que vale mesmo a pena?”. Talvez os três
filhos e a casa-monumento não fossem uma máscara para a sexualidade
oculta, mas a obra de sua vida. Já que,no fim das contas, ele viveu
como quis ou como pôde. Bruce é uma figura rica e complexa, cuja
memória a filha restaurou com o apuro artístico que ele dedicava às
casas velhas.

As melhores histórias

Todo mundo
adora falar de traumas. Sempre que algo foge do padrão
tradição-família-propriedade, como o homossexualismo, procura-se um
culpado. Psicologia barata! A vida não é como um daqueles jogos de sete
erros nos quais há coisas na imagem que estão fora de lugar e devem ser
assinaladas. Talvez essa família diferente tenha sido muito menos
maluca do que várias outras, apagadas e convencionais, das quais não há
nenhuma história para contar. A vida sexual de todo mundo tem algum
armário; nele guardamos os trajes com os quais nos achamos atraentes e
com os quais adornamos aqueles que nos apetecem. Desse móvel também
saem bebês. Você não sabia?

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