As histórias que ela conta

A arte de manter a máxima atenção a relatos com a complexidade da obra de Proust

por Milly Lacombe em

Algumas histórias não têm fim, especialmente aquelas contadas por meu objeto de devoção. São histórias que começam sempre em um ponto a partir do qual meu objeto de adoração acha necessário retroagir, momento em que as histórias iniciam uma ida e vinda no tempo, e essa guinada exige minha atenção máxima e absoluta sob pena de escutar a qualquer instante um “o que você acha?” e não saber o que responder, ocasiões nas quais eu opto pelo prudente “acho que você está certa”, que normalmente funciona, mas que, quando não se encaixa, causa instantes de tensão. Nessas horas opto por elogiar a roupa que ela está usando, que é sempre altamente elogiável porque ela se veste muito elegantemente. A tática escapista e emergencial é de alto risco, e pode funcionar ou apenas despertar a fúria de meu objeto de afeto, que esquece a história e inicia um monólogo sobre como eu não escuto as coisas que ela diz, sobre como eu não tenho interesse pelos assuntos dela, sobre como, aliás, eu tenho pouco interesse por coisas que não envolvam livros e o Corinthians, sobre como eu cuido de quase nada da casa e sobram toneladas para ela cuidar sozinha, sobre como ela está exausta e sobre como eu demoro uma eternidade para executar as poucas tarefas que estão sob minha responsabilidade (passear com as cachorras, fazer supermercado, comprar comida das cachorras).

Mas existem aquelas que eu chamo de multi-histórias, histórias dentro de uma história principal, que, mesmo com minha máxima atenção devotada apenas para elas, têm a complexidade da obra de Proust e são difíceis de ser seguidas. Dou aqui um exemplo.

Numa noite de quarta-feira qualquer meu objeto de obsessão chega em casa, o que é sempre um momento de pura euforia para Cora, Mila e eu, que nessa ocasião recebo menos atenção porque não pulo executando rotinas acrobáticas, nem fico girando freneticamente sobre meu próprio eixo, nem abano rabo. Mas o fato é que vamos todas eufóricas para a porta receber nosso objeto de estima, que chega tão linda quanto saiu, joga as coisas sobre a mesa, tira os sapatos e deixa sobre o tapete da sala, hábitos que cutucam minha paranoia com arrumação, mas que eu inteligentemente finjo não ter visto, e vai se sentar na cadeira perto da janela, instante em que Cora, Mila e eu nos colocamos a seus pés e perguntamos: “Como foi o dia?”, e a resposta pode vir em forma de multihistória. Depois de pegar Cora e Mila no colo e de me deixar no chão, ela começa.

“Você não sabe quem me ligou. Lembra que te contei que tem um filho de uma amiga da minha mãe morando em Nova York? O Carlinhos, sabe? Te contei, né? O Carlinhos, que eu encontrei uma noite na balada e chamei de Carlinhos, mas ninguém conhecia ele assim, só como Carlos, e todo mundo riu. Te contei, acho. Eu estava com a Tatiana e com a Alê… Ah, falei com a Tatiana hoje e ela agradeceu você ter passado o link da matéria da New Yorker para ela. Você me passou esse link? Eu queria ler também. Me passa? Mas o Carlinhos….”

A história então entra numa espécie de pausa, momento em que meu objeto de encantamento começa a virar o rosto muito lentamente, como quem está à procura de outra pessoa no ambiente, sem se preocupar com o fato de a história ter sido interrompida. Um interlocutor desavisado falaria: “E aí, o Carlinhos?”, mas não eu, que consigo depois de algum tempo aprender com meus erros. De repente, ela volta a falar, ainda girando a cabeça lentamente para o outro lado. 

“Então, o Carlinhos ligou… ué, você notou que a porta de entrada está com umas ferrugens? Não era assim. Aliás você ligou para o técnico do ar-condicionado vir ver o vazamento?”, e ela se levanta para ir checar de perto a porta, Cora e Mila, espertas, pulam para o chão segundos antes da queda, e eu, que não liguei para o técnico do ar-condicionado porque esqueci que a missão estava na minha lista de coisas a fazer, começo a meditar para que a história do Carlinhos tenha sequência e ela esqueça o ar-condicionado. “Amanhã vou chamar o Sergio para ver isso”, diz, averiguando a ferrugem com as mãos”, e eu, que não sei se piorou ou não, emendo com “piorou muito, nossa, deixa que eu chamo o Sergio amanhã”, numa tentativa desesperada de: 1) me mostrar atuante e proativa e 2) desviar a atenção dela do ar-condicionado.

E o Carlinhos?

Ela volta para a sala, vai para a janela e olha para baixo enquanto diz: “Então, o Carlinhos ligou e eu atendi… Nossa, você viu a quantidade de lixo nessa lixeira que colocaram aqui na rua? Deus, não dá para andar na calçada, vou mandar outro e-mail para essa empresa que fez isso porque eles prometeram que dariam um jeito. Eu passei por ali hoje de manhã e a rua agora fede. Ah, encontrei a dona Clara lá embaixo e ela também tá puta... Ela é muito fofa, né? Ela me lembra minha avó, mãe da minha mãe, que era a vó com quem eu me dava melhor… Vou convidar a dona Clara para vir aqui em casa falar sobre esse lixo. E você mandou o e-mail pro seu irmão sobre o jantar aqui na quarta? Precisamos decidir o que vai ser. Aquele peixe com aveia? Ainda tem aveia aí? Pode ser, né? Muito pesado? Acho que não. Se a gente servir com uma salada…”. E eu, que obviamente não mandei o e-mail para o meu irmão, embora ela já tivesse me pedido para fazer isso alguns dias atrás, começo a meditar para que ela se lembre do Carlinhos. Dá certo.

“Bom, mas o Carlinhos. Ele ligou quando eu estava respondendo um e-mail do contador, que agora acha que pagamos errado um dos impostos, mas eu sei que está certo, então estava tentando explicar para ele… Nossa, ele me deixa maluca. Isso me deixou muito nervosa hoje. Até liguei para um amigo meu que é [advogado] paralegal para ver se eu estava ficando doida, mas ele disse que eu estou certa, e isso me deixou ainda mais maluca, porque então o contador sabe menos do que eu? Me diz, é possível?”

E eu, que sei menos que ela e que o contador, já não tenho o que dizer porque a simples menção das palavras “contador” e “imposto” me fez começar a pensar no Corinthians e no jogo de domingo. “Me diz, é possível? Você viu o e-mail dele que te encaminhei ontem, né? Te pedi para ler e me ajudar a pensar o que vamos fazer, você leu? Eu acho que devemos mudar de contador porque não é a primeira vez que acontece isso. Sei lá também. No fundo ele é bom e precisa do emprego… No que você está pensando? Você leu o e-mail? O que acha?” Eu, com leves palpitações, digo que acho que ela está certa, mas que queria mesmo era saber do Carlinhos. É um movimento de risco pressionar pelo fim da história, mas já não me resta outra alternativa por motivos de: 1) estou quase tendo meu talento de deixar para amanhã o que poderia ter feito hoje novamente exposto e 2) eu já tinha perdido o fio da meada.

Nessa hora, dependendo do dia, do humor e da posição de Cassiopeia no céu ela pode rir, me dar um beijo e dizer: “O Carlinhos quer convidar para jantar quando estivermos em Nova York, é isso. Mas e hoje? Vamos jantar fora?”. Eu sempre digo que sim, ainda que me interesse menos o jantar do que o fato de ela estar nele. E a gente então sai a pé pelo bairro em busca de um lugar para comer, tomar um vinho e conversar. Como fazemos há nove deliciosos anos.

A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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