Anti-Carnaval
Sobre afeto, Catarse e letras que descrevem toda uma geração: Minha história com Los Hermanos
A primeira vez que ouvi Los Hermanos foi por acidente. Assim como eles, eu estudava comunicação na PUC, e fiquei sabendo, nos pilotis da universidade, de uns alunos cuja banda misturava som pesado com letras românticas. O show seria logo mais, ali mesmo, na vila dos diretórios, mas, atrasada pra aula de antropologia, acabei não parando pra ver Marcelo Camelo, Rodrigo Barba, Bruno Medina e Rodrigo Amarante.
Um ano depois, o grupo explodiu e vendeu 300 mil cópias do seu disco de estreia. O hit responsável pelo sucesso, “Anna Julia”, era uma música ingênua e graciosa inspirada em rocks americanos dos anos 50, mas que tocou tanto nas rádios e em todos os lugares que eu, como metade da população brasileira, tomei horror à canção e à tal garota do título.
De qualquer forma achei simpático saber que tinha visto aquela turma começar. Tínhamos todos 20 e poucos anos e o sucesso era, no mínimo, a possibilidade de sair da casa dos pais e pagar a própria viagem pra Bahia.
Amparada pelos Hermanos
Mas minha relação com o grupo continuou distante, até que ouvi O bloco do eu sozinho, segundo disco dos rapazes. Delicado e surpreendente, com tubas, trombones, clarinetes, flautas doces, oboés e banjos, o álbum não saiu do meu carro por todo o ano de 2001 e virou a trilha do começo da minha vida adulta. As músicas melancólicas que evocavam uma primeira consciência do tempo me arrebataram o coração e deram forma a algo que eu sentia, mas não havia ainda formulado em ideias ou palavras, um luto pelo que acabamos de deixar de ser.
Eu havia dirigido meu primeiro curta, que falava exatamente dessa passagem e um dia, ao cruzar com o Amarante no Baixo Gávea, pedi autorização pra usar O bloco como trilha do filme. A negociação foi rápida e, mesmo sem me conhecer, eles cederam as canções depois de ver o material. E assim, meio por acaso, iniciamos uma parceria que só agora se concretiza com o documentário que fiz sobre a última turnê do grupo.
Meu filme acompanha a banda em sete cidades, dos ensaios às apresentações, e também nos quartos de hotel e aeroportos, lidando com fãs e, principalmente, fazendo música. Nada de explicação do recesso, nada de polêmica, nenhum plano para o futuro ou lamento pelo passado. O que eu e minha câmera vimos em dez dias de convivência foi um afeto extremo de quem se conhece desde o colégio, e que foi tocar junto por ser amigo e pra falar das mesmas coisas.
O elogio do perdedor, o despudor de amar sem ser correspondido, a paixão rasgada, o anti-Carnaval, o riso amargo no fim: desde a Legião Urbana, com as letras altamente pessoais e catárticas de Renato Russo, uma banda não mobilizava e representava tanto uma geração.
Eu fui tão amparada pelos Hermanos que quis fazer um filme, como se ingenuamente quisesse congelar todos os ideais românticos que fui abandonando pela estrada.
Talvez o apego aos grupos da nossa juventude represente um sentimento abstrato que o passar dos anos vai roubando de cada um de nós: a possibilidade de ser tudo e fazer tudo, a vida inteira pela frente, o mistério do porvir.
Ou talvez seja só o consolo de que estamos envelhecendo juntos e, por mais distintos que sejam nossos caminhos – o meu e o de cada um deles –, a lembrança daqueles pilotis e daquele ar que se respira aos 20 anos nos mantém algo cúmplices, como quem diz: eu sei quem você era, e isso basta, mesmo que hoje nada mais tenhamos em comum.
Eu sei quem você era e isso é suficiente.
* Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com