Amor louco

Livro reconstituiu a paixão entre Simone de Beauvoir e o escritor Nelson Algren

por Gabriela Sá Pessoa em

Isto é história: Sartre foi o maior parceiro de Beauvoir. Além da sepultura que compartilham no cemitério de Montparnasse, em Paris, o casal de filósofos dividia ideias e trabalhava junto. O homem que mais a balançou, no entanto, foi o escritor americano Nelson Algren, que ela conheceu aos 39 anos.

Algren era um apaixonado, capaz de provas de amor cinematográficas, e um sedutor, com quem Simone teve seu primeiro orgasmo – isso é romance, baseado em diários e cartas inéditas. Escrito pela jornalista francesa Irène Frain, Beauvoir apaixonada recria os 18 meses dessa paixão e mostra uma Beauvoir menina, implorando por carinho e prazer. “Na época em que conheceu Algren, ela e Sartre não transavam havia 13 anos!”, revela.

O livro, lançado este mês, mostra como o caso – e a dificuldade de conciliá-lo com o trabalho – influenciou O segundo sexo, obra mais famosa da escritora, sobre a condição feminina. “Sartre financiava Beauvoir e minou a relação dela com Algren”, diz Frain.

Leia, abaixo, a entrevista concedida pela autora à Tpm:

Tpm. Por que você resolveu escrever um romance sobre a vida de Beauvoir?
Iréne. Quando li a edição das cartas que Beauvoir escreveu durante anos a seu amante americano Nelson Algren, me senti muito frustrada: as respostas de Algren para Beauvoir foram proibidas de publicação. Além disso, um quinto das correspondências de Beauvoir foi omitido.

Ora, com as história de amor ocorre o mesmo que no tribunal: como ser justo se não ouvir ambas as partes? Algren era realmente o perdedor caprichoso, o sedutor lunático que Beauvoir descreve em seus livros após a separação? E ela, era sua inocente e infeliz vítima? 

Para chegar ao fundo da questão, eu fui à Universidade de Columbus, nos Estados Unidos, onde são mantidos os registros de Algren. Fotos íntimas dos dois amantes, poemas dedicados a Beauvoir, entrevistas de Algren sobre ela, originais de cartas de Beauvoir: todos estes documentos me contavam uma história completa! Uma realidade amorosa ao mesmo tempo cômica e trágica, violenta e terna. Humana, para ser honesta! Para vê-la melhor, fui a Chicago, onde os dois amantes viveram os momentos mais fortes da paixão. A maioria dos lugares onde eles se amaram continuam intactos, foi inebriante dar passos sobres os passos deles, ao mesmo tempo em que confrontava os textos desses dois grandes escritores.

Lá, também conheci a última testemunha viva dessa ligação tumultuada: Shay Art, o fotojornalista que fotografou Beauvoir nua, provavelmente porque ela assim lhe pediu, porque queria fazer ciúmes a Algren num momento em que ele queria romper com ela. Ele me fez confissões espantosas. Foi nesse ponto em que me disse: "OK, tenho o que é preciso para escrever os 50% que faltam da história". Tentei, então, reconstituir esses três anos de amor louco.

O que há de novo no livro?
Ninguém pesquisou como Algren viveu essa história. A fama planetária de Beauvoir e sua autoridade intimidaram a maioria dos biógrafos e levaram a engolir, sem discutir, a versão dela dos acontecimentos. Minha principal descoberta é que havia duas mulheres na mesma: Beauvoir, a intelectual sisuda, talentosa, afiada, emancipada, ícone austero do feminismo internacional. E Simone, sua face secreta, uma menina, na verdade, que implorava desesperadamente por carinho e satisfação sexual – porque na época que ela conheceu Algren, era totalmente frígida, e Sartre e ela não tinham relações sexuais havia 13 anos! Ela se liga a Algren com uma adolescente imatura, entregue, ela chora, ela ri. Ela goza! Pois com Algren, como ela mesma confessou, ela teve o primeiro orgasmo de sua vida.

Assim encontrei num caderno de viagens nos arquivos de Algren: “Busy day. Fucking and so on” [dia cheio, fodendo e tudo o mais]. Quem teria imaginado que Beauvoir poderia escrever, e mesmo pensar coisas assim? Outra surpresa: se essa história terminou mal, é por causa de Sartre. Ele não suportava essa "libertação" de Beauvoir e torpedeou a relação de forma muito maquiavélica. Naquela época, ele exercia sobre Beauvoir uma contenção perversa; e como ele era o "papa" da intelectualidade internacional, a carreira de Beauvoir era totalmente dependente dele. Inclusive era Sartre quem a financiava... Ela teria gostado de conciliar seu trabalho com sua paixão, mas Sartre a fez entender que isso seria incompatível. Até conhecer Algren, ela se sentia tão livre quanto os homens. E, voilà, como qualquer mulher tradicional, se viu totalmente alienada por sua dependência aos homens que a rodeavam.

Ela, então, experimentou uma terrível crise interna, num momento em que ninguém havia feito esse tipo de reflexão, pela simples razão de que poucas mulheres eram ilustradas a um nível tão alto. Beauvoir teve de se virar sozinha, e com seu único meio: a filosofia. Ligou, então, sua própria história a uma reflexão sobre a situação das mulheres em geral. Isso levou ao seu livro mais famoso, O segundo sexo, escrito em 1948-49, no auge da sua crise. Um tratado filosófico secretamente alimentado por sua vida íntima.

Finalmente, quando percebi que provavelmente era ela a instigadora da sessão nua que Art Shay havia feito em 1950, e quando descobri que não havia uma única imagem dela, mas seis, eu quase caí da cadeira! Que audácia tem essa mulher, que temperamento!

E quanto de O segundo sexo devemos a Algren?
Muito. Primeiro, ele revelou sua sexualidade, a “liberou”, como se diz hoje em dia. Ele falava sobre sexualidade muito de frente, ele havia conhecido muitas mulheres e não era nada puritano. Mas ele também havia lido muito sobre o assunto, tanto que forneceu a Beauvoir muitas pistas de escrita, especialmente quando disse: “Se você quiser entender a condição feminina, primeiro tente entender a dos negros!”. Também foi Algren quem lhe contou sobre o controle de natalidade, chamou sua atenção para as condições de vida das prostitutas, a iniciou nas obras de feministas americanas. Ele não tinha dinheiro, mas se endividava para comprar e enviar esses livros a Beauvoir. Ela realmente deve muito a ele. É muito feminista dizer isso, porque Beauvoir o ajudou a escrever seus melhores romances. E o feminismo, para mim, não é rivalidade, mas a complementaridade.

O que mais te impressionou na pesquisa? Você descobriu alguma outra coisa sobre ela que não sabia?
Tudo me atordoou. A perversidade de Sartre. A frigidez de Beauvoir, antes de seu encontro com Algren. A vitalidade poderosa de Algren, sua criatividade, sua poesia, sua consciência profética do revés do sonho americano, seu humor devastador... Com ele, Beauvoir ria. E muitas vezes ele se comportava como um herói de comédia romântica.

Por exemplo, um dia, Beauvoir lhe escreveu de Paris: "Eu sinto falta da sua voz". Em Chicago, quando recebe a carta, Algren corre até um amigo que trabalha numa rádio, grava uma mensagem de amor, depois vai até a casa de um outro amigo que aceita passar a gravação a um LP. Em seguida, envia o disco a Beauvoir. Fabuloso, não? Finalmente, esses dois amantes tiveram um acordo amoroso excepcional: uma comunhão em três níveis, sexual, emocional, intelectual. Durou apenas 18 meses, mas nem Beauvoir nem Algren podiam esquecer esse pico de incandescência. Prova: na véspera de sua morte, em 1986, Beauvoir exigiu ser cremada com o anel de prata que Algren havia lhe dado na manhã seguinte à sua primeira noite de amor juntos...

Vai lá: Beauvoir apaixonada, ed. Verus, R$ 39,90

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