Alexandre Cerqueira
Filho de uma brasileira com um africano, o modelo luta por espaço nas passarelas de moda
Alexandre Cerqueira vive um sonho da adolescência, de quando brincava de desfilar na passarela com as crianças da vizinhança na comunidade carioca do Quitungo (um braço da Vila da Penha, na zona norte), onde nasceu e ainda mora. Testemunha da violência e da dor que precisava enfrentar diariamente, ele perseverou até encontrar sua oportunidade em uma agência de modelos, aos 23 anos (hoje tem 36). Contudo, mesmo em seu sonho Alexandre é assombrado: o mercado da moda para negros no Brasil é “limitadíssimo e exige persistência”, como ele descreve. Mesmo carregando no rosto os traços angulados de um legítimo marfinense (seu pai é africano), com uma beleza não óbvia atraente ao universo fashion, é mais difícil para ele encontrar trabalho.
“Existe uma discriminação naturalizada no meio”, diz. “O racismo na moda é sutil, mas muito presente, está entranhado.” Quando Alexandre recebe uma negativa, geralmente justificada pela frase “você não se encaixa no perfil desejado”, ele precisa respirar fundo. “Até quando é algo para modelos negros, vejo que sou negro demais para o trabalho. Geralmente, um ‘menos negro’ é escolhido.” Ainda assim, ele nunca falta a um casting. Mesmo que tenha o perfil de passarela, por sua altura (1,88 metro) e seu peso, a maior parte dos seus trabalhos acaba sendo para catálogos e campanhas publicitárias. Por aqui, só conseguiu desfilar no Fashion Rio por duas vezes, para Complexo B e OESTÚDIO – ainda assim, era um entre dois negros –, mas nunca emplacou na São Paulo Fashion Week, seu sonho dentro do sonho.
Para ser mais bem aceito na carreira, ele precisou ir até o México, onde passou algumas temporadas entre 2008 e 2011, recrutado por uma agência internacional. Lá, participou da principal semana de moda do país. A diferença do mercado entre os dois países “é explícita e muitas vezes cruel”, descreve. Para perseverar, Alexandre se apoia no exemplo da mãe, dona Maria Damiana, que chegava a trabalhar em três turnos para sustentar oito meninos e duas meninas. “Só existe uma forma de viver, a honesta, conquistada através do trabalho.” Por isso, antes das passarelas, Alexandre experimentou outras profissões: foi catador de papelão quando criança, jogou futebol profissionalmente e foi militar na Aeronáutica (período em que aproveitava o tempo livre para vender bebida na porta do Maracanã e complementar a renda em casa).
“Até quando é algo para modelos negros, vejo que sou negro demais para o trabalho”
É da época de ambulante que Alexandre guarda sua pior lembrança do racismo. Em uma das idas ao supermercado para comprar mercadoria, seu cheque e seus documentos foram recusados sem motivo legítimo. “Criaram razões falsas para negar minha compra. Em nenhum momento alguém disse: ‘Não vamos vender porque você é negro’. Mas era exatamente por isso.” Alexandre entrou com uma ação judicial contra o supermercado. Levou cinco anos, mas ganhou a causa.
Apesar das dificuldades, o “muso” desta Tpm continua alimentando seus sonhos. Um deles se concretizará em breve: sua mulher, Aline, está grávida de três meses. “Sempre soube que seria pai e quero criar meus filhos aqui na comunidade”, afirma. Outro é encontrar o próprio pai, do qual sabe apenas que comandava a cozinha de um navio que partiu da Costa do Marfim no fim dos anos 70, quando conheceu dona Maria Damiana, que embarcou para a África em busca de condições melhores para os filhos que ficaram no Brasil (ela retornou por saudades dos rebentos e trouxe Alexandre na barriga).
A principal fonte deles, entretanto, é o cinema. Nos últimos anos, se a moda lhe trouxe alguma desilusão, os filmes lhe deram motivo para vislumbrar dias melhores. Basta tocar no assunto que a fala de Alexandre muda, se torna mais rápida, quase atropelando a respiração. Ele participou dos longas Paraísos artificiais (2012), Minha mãe é uma peça e S.O.S. – Mulheres ao Mar (2013). Neste último, ele fez seu maior papel, contracenando com Fabíula Nascimento. Ao perceber o próprio entusiasmo, o carioca segura a respiração, se desculpa e avisa: “Sei que esse caminho é mais lento, e até mais difícil. Mas tudo bem, não tenho medo. É mais uma vontade pra realizar”.