A volta
Morrer é difícil, mas renascer é lindo. Aos 47 anos, e pela primeira vez na vida, finalmente comecei a voltar para casa
São nove e meia de uma noite clara e estrelada de primavera nova-iorquina. Estou sentada dentro do avião, e é como se apenas metade de mim estivesse aqui. Ao meu lado, um casal voltando das férias na Califórnia fez escala em Nova York, onde eu tinha passado os últimos dois anos da minha vida. Estão vendo fotos no celular e rindo. Devem ter uns 70 anos. Como estão casados há tanto tempo? Pelo que terão passado? O que terão enfrentado? Será que estão juntos porque, ao contrário da gente, não desistiram?
O calor dentro do avião me faz suar. O comandante avisa que o ar-condicionado está com problema. E se o avião não sair por questões mecânicas? Será um sinal para que eu não vá? O que estou fazendo aqui nesse avião? Larguei minha casa e sua pele para trás em nome do quê? Teria sido cedo demais? Será que eu deveria ter lutado por você? Por nós duas? Pelo relacionamento?
A aeromoça passa pelo corredor e peço um copo d’água. Sinto vontade de perguntar o que está acontecendo com o ar-condicionado, mas percebo que iniciar um diálogo vai exigir de mim uma força que não tenho. Desisto e, quando recebo o copo, agradeço baixinho e em inglês, mesmo sabendo que ela fala português.
Todos ao meu lado parecem calmos e relaxados. Em pé no corredor, uma mulher tenta fazer caber no compartimento de bagagens a mala de mão e uma sacola. Por que ela comprou mais coisas do que era capaz de carregar? Penso enquanto vejo a dificuldade com que ela ergue a mala lotada de tranqueiras. Sinto raiva da mulher e vontade de levantar e atirar as coisas dela na pista. O rapaz da fileira de trás se levanta para ajudá-la, eles começam a conversar e sorriem. Certamente ninguém aqui está passando pelo fim de um relacionamento. Há pouco tempo eu era uma dessas pessoas que ignoram como são felizes, uma dessas pessoas que ignoram que a felicidade talvez seja apenas a ausência de angústia.
Experimento uma solidão que só conheci nas madrugadas da minha infância, quando ia dormir na casa de uma amiga e, luzes apagadas, entendia que não poderia sobreviver àquela noite sem minha mãe no quarto ao lado. Não havia chance de respirar sem esperar que a porta fosse aberta e ela entrasse para ver se eu já tinha pegado no sono, me dar um beijo de boa noite, mesmo sabendo que eu fingia estar dormindo para ver se ela ainda assim se abaixaria para me beijar, e ajeitar o cobertor sobre o meu peito.
Nessa época, dentro de uma casa estranha, que era o que a casa de minha amiga representava à noite – embora durante o dia, enquanto brincávamos, eu não a visse assim –, a noção de não ter minha mãe por perto me desesperava. A noite trazia com ela todos os fantasmas, e só me restava pedir que os pais da tal amiga ligassem para que minha mãe viesse me buscar.
Mas agora estou sozinha e minha mãe não virá me resgatar, o que pouco importa, dado que estou morta.
Ao fundo, de olhos abertos
Eu morri em Nova York numa noite estrelada de primavera de 2015. Foi uma noite na qual tive a impressão de estar voando para longe de casa sem saber que estava voando para perto de mim. Claro que existe a morte derradeira, mas antes dela há muitas outras. Aos 47 anos, morta e sozinha pela primeira vez, não tive outra opção além de tentar descobrir quem eu era e o que estava fazendo da vida. Nessa busca, fui para a Amazônia, dormi em rede, cheirei rapé, fiz uma sauna muito doida dentro de uma tenda às margens do Tapajós, comecei e terminei um curso de autofuçação interna, passei semanas isolada em uma cabana no meio da Serra da Mantiqueira, matei com minha Havaiana uma aranha que tinha o tamanho de um bicho pré-histórico, fiz um ritual de ayahuasca, dancei sozinha na sala, aprendi a acender a lareira, andei descalça na grama, chorei de cócoras no chão da sala, experimentei carne de javali, rezei o terço com desconhecidos, conheci dezenas de pessoas interessantes e apaixonantes.
Viajar para dentro de si mesmo não é uma viagem cheia de prazeres, muito pelo contrário. Há escuridão, há ambientes feios e gelados, há outros assombrosos e espinhosos. Enxergar em você as coisas que você mais detesta no outro é uma pancada que a princípio pode fazer com que tudo pareça ainda pior e mais grave. Mas há uma recompensa para aqueles que topam ir ao fundo de olhos abertos, e ela está em entender que só existe uma forma de voltar para casa.
Tudo está dentro de cada um de nós: céu e inferno, purgatório e paraíso, amar e perdoar. Perceber com a cabeça a experiência de estar viva é deixar que a dualidade da mente siga pregando peças. Perceber com o coração a experiência de estar viva é deixar que a unidade conduza à trilha da bem-aventurança. A mente existe na dualidade; o coração, na unidade. São lugares muito diferentes esses, mente e coração. O ego vive na mente, a alma, no coração. Quando começamos a escutar a música das esferas, a canção do universo, fica bastante fácil dançar. “Os fados guiam aquele que assim o deseje; aquele que não o deseje, eles arrastam”, disse o professor de mitologia Joseph Campbell. O que Campbell talvez tenha esquecido de dizer é que quase sempre os que a princípio são arrastados – como eu fui – depois se permitem guiar.
Morrer é difícil, mas renascer é lindo. Aos 47 anos, e pela primeira vez na vida, eu finalmente comecei a voltar para casa, e a única casa possível existe apenas dentro da gente. A minha é uma casa que ainda está meio bagunçada, com coisas fora do lugar, e é preciso seguir fazendo faxinas pesadas, mas essa é a minha casa, uma para a qual sempre poderei retornar e uma que ninguém mais pode me tirar.
Créditos
Ilustração: Juliana Russo