A vida dos outros
Eles entraram na minha vida sem pedir licença e sem nenhum interesse em mim
Eles entraram na minha vida sem pedir licença e sem nenhum interesse em mim. Ainda assim, foram capazes de me fazer uma mulher muito feliz
O primeiro eu conheci na piscina da casa de minha tia, no Rio. Era o verão de 1986 e estávamos, eu e minhas irmãs, fazendo o que fazíamos durante todo o período das férias – nada em volta da piscina – quando a campainha tocou. Ele entrou meio calado, meio tímido, e, depois de cumprimentar a família inteira, incluindo minha avó e minha tia, sentou-se ao lado de seu objeto de desejo: Nininha, minha irmã caçula (se não relacionarmos o varão, claro).
Nininha, agindo como a perfeita prima-dona que ensaiava ser, baixou sua cadeira, fechou os olhinhos e deixou que o sol a consumisse. E ele, demasiadamente branco para aquela cena carioca, ficou ali
olhando para a frente. Minha irmã, sempre a princesinha e a namoradeira da casa, parecia não querer dar muita bola para aquele que era, segundo havia ventilado a rádio pirata que funcionava na cozinha onde Nonna fazia seu macarrão, o atual namorado.
“Mas que menino lindo é esse!”, disse minha tia, sempre a mais lúcida e menos encrenqueira do clã siciliano.
“Um pouco branco demais, não?”, refutou a matriarca.
“No no. Un póco magro demais, isso si”, disse Nonna.
Voltei à piscina e fui espiar o eleito pela diva do lar. Cabelos claros, olhos escuros, maxilar largo – um perfeito Brad Pitt antes mesmo de haver um Brad Pitt. Minha irmã, a mesma que esnobava esse Brad Pitt do Recreio dos Bandeirantes, tinha 14 anos na época. Naturalmente, ele era um casinho de verão, um namorico que duraria mais algumas semanas. Mas, até lá, eu gostaria de recomendar que ela desse um pouco de atenção ao rapaz que, desde que chegou, havia sido interpelado apenas por minha avó. “Não, obrigado”, disse ele elegantemente a Nonna. “Não quero mais pão com molho. Aquele quinto pão que a senhora ofereceu me deixou satisfeito. Vou esperar o almoço, obrigado.” Claro que ele não tinha como saber que recusar a comida que minha avó oferecia era mais ofensivo do que elogiar Mussolini na mesa. Vendo a carranca com que minha avó voltou à cozinha com seus pãezinhos repletos de molho de tomate intactos, pensei: “Esse cara tá com os dias contados”.
Em volta da mesa
O segundo eu conheci em Búzios, no recesso de fim de ano. Era o verão de 1991. Estávamos na praia, em um luau, e Adriana, minha irmã, veio me apresentar o rapaz. Elegante, alto, bonito, simpático, espirituoso. Tudo isso eu descobri a respeito dele em menos de 15 minutos brindando com cerveja em copos de plástico na praia de Geribá. Adriana, a mais séria da casa, o orgulho de meus pais, a que fez administração na GV e física na USP, a que, com 20 anos, já tinha dinheiro para morar sozinha, a que tinha certeza de que a vida foi feita para ser dedicada ao trabalho, a que não queria casar e muito menos ter filhos, tinha encontrado um namorado que tocava violão, fazia escola de teatro Macunaíma, falava quatro línguas, lia Marx e sabia não se levar muito a sério. Diferente de todos os outros executivos mirins que ela havia namorado. “Tá tarde. Melhor ir embora”, disse ela ao eleito. “Imagina, Adriana, a festa está só começando.” “O quê? Nada disso. Vamos embora.” Eu, que tinha me apegado ao rapaz, lamentei que eles fossem embora tão cedo e pensei: “Esse tá com os dias contados”.
Nininha e Felipe estão juntos há 24 anos. Têm quatro filhos, uma casa linda e todos os dias eu ainda consigo ver um pouco mais como Felipe ama e admira minha irmã. Pequenos gestos, longos olhares, carinhos sem protocolo e risadas fora de hora. Colocaram no mundo Paulo, Antonio, Bruna e Mel, que são o resultado em carne e osso da insistência de Felipe em namorar Nininha. Todas as noites, jantam em uma mesa grande, falam da vida, da casa que construíram na represa, mandam Antonio sentar e ficar quieto e pedem para Paulo parar de reclamar do irmão. Bruna e Mel, 3 e 1 ano, ficam em volta da mesa, aumentando os decibéis do ambiente e fazendo o pai rir a ponto de fechar os olhinhos a cada intervenção que protagonizam. Felipe continua parando o trânsito por onde passa e minha avó, até morrer no ano passado, tinha certeza de que ele era bonito, mas muito, muito magro.
Adriana e Marcelo estão juntos há 18 anos. Têm três filhos, um apartamento lindo e todos os dias eu consigo ver um pouco mais o amor e a admiração que Marcelo tem por minha irmã. Todos os dias noto como ele faz questão de mimá-la, como olha para ela quando ela está falando, como é capaz de apreciar até, e especialmente, um repente de mau humor dela e como conseguiu fazer com que ela risse com ele das pequenas coisas da vida. Colocaram no mundo Estela, Francisco e Marcelinho, que são o resultado em carne e osso da insistência de Marcelo em namorar Adriana. Todas as noites, jantam em uma mesa enorme – ou na frente da TV mesmo –, falam da vida, mandam Francisco comer a carne que ele nunca come, pedem a Estela que fique um pouco mais na mesa e que Marcelinho, pelo menos, prove o macarrão. Todas as noites, alguma frase de Francisco os faz morrer de rir. Marcelo não faz mais Macunaíma, mas passou aos filhos o gosto pela música. Quando algum assunto ganha ares de polêmica, como Francisco não querer ir dormir, Marcelo resolve tudo dentro da tenda do urso: coloca suas mãos ao lado dos olhos, fazendo uma espécie de cabaninha com elas, e convida Francisco a entrar. Francisco repete o pai, fecha seu rosto em uma cabaninha e cola a testa na dele. Lá dentro, pai e filho, ou ursinho e ursão, negociam uma saída para a crise. Sempre funciona.
Onde tudo termina
Felipe foi a primeira pessoa para quem eu contei que era gay. Marcelo, a segunda ou a terceira. Cada um a seu modo, meus cunhados mostram, todos os dias, como me amam, me respeitam e fazem questão de incluir minha mulher e eu no cotidiano de suas famílias. São as figuras paternas que ficaram comigo depois da morte de meu pai. Ao lado de meu irmão, me fazem ter a certeza de que tenho mesmo muita sorte por ser cercada por homens tão especiais. Mas, mais do que isso, me fazem acreditar no futuro. Ao amarem minhas irmãs dessa forma sempre tão apaixonada, ao se comportarem como os pais mais dedicados que já vi, ao formarem pequenos seres humanos de valores tão sólidos, Felipe e Marcelo fazem de mim uma mulher feliz. Porque talvez não haja maior êxtase na vida do que saber que aqueles que você mais ama no mundo construíram seus casulos, encontraram seus cúmplices e levam a vida do melhor jeito possível: rindo.
A carioca Milly Lacombe, 41 anos, é jornalista. Seue-mail: milly@trip.com.br