A patrulha chegou lá
Tendência nos consultórios de cirurgia plástica, a ninfoplastia promete padronizar vulvas
Ana* passou 28 anos sem recorrer à depilação comumente chamada de completa. Aquela que deixa a vulva totalmente careca – sim, vulva, a parte externa do órgão genital feminino (vagina é o nome do canal interno, incluindo útero, trompas e ovários). Com a vulva desbastada, Ana percebeu que a geografia de seu órgão era diferente do que imaginava. Quando apenas “limpava as bordas para usar biquíni”, nunca tinha parado para analisar sua anatomia íntima. Ana é brasileira, fotógrafa e nascida na capital paulista. Quando criança, mudou-se com a mãe para a França. Segundo ela, “lá ninguém se importa com depilação”. Quando aportou em terras fluminenses, para viver de vez, foi que se rendeu à cera. Ao decepar todo e qualquer pelo de sua xoxota, ela experimentou uma sensação (e visão) nunca antes percebida. “Com ‘ela’ desnuda, descobri formas que não conhecia e não gostei”, entrega.
A aparência do que Ana desconhecia se tratava do tamanho de seus pequenos lábios, bem maiores do que esperava. Eram amplos a ponto de ultrapassarem seus grandes lábios. Na verdade, “caíam sobre eles como uma cortina”. No primeiro susto, acreditou se tratar de uma anomalia, de uma doença, mas não imaginou que eles apenas seguiam a normalidade da complexa anatomia feminina. Uma consulta com o ginecologista afastou todas as possibilidades malignas e comprovou: seus pequenos grandes lábios eram tão saudáveis quanto os de qualquer outra mulher.
Mesmo com um diagnóstico favorável, Ana não ficou em paz. “Passei a viver com um espelhinho na bolsa, e quando ia ao banheiro, o posicionava sob minha virilha pra checar os lábios. E eles estavam sempre ali, gigantes.” Depois de uma semana pesquisando sobre a questão, soube que poderiam ser limados cirurgicamente e que o nome pra essa intervenção seria ninfoplastia. Por R$ 3.600 e não mais que 40 minutos de procedimento, ela trocou a cara de sua vulva.
Como Ana, outras 13.682 brasileiras se submeteram a tipos de ninfoplastia em 2013, o que faz do nosso país campeão na categoria, segundo pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética. Em 2011, foram 9.043, o que representa um crescimento de 33% em dois anos. Ninfoplastia é o nome dado a procedimentos cirúrgicos na vulva e pode compreender ainda: redução e/ou preenchimento dos grandes lábios e do volume do púbis, clareamento das mucosas vaginais (que é feito através do corte das pontas dos lábios) e redução do clitóris (sim, até parece mutilação). O segundo lugar para cirurgia íntima feminina fica com as alemãs, que se submeteram a 9.711 intervenções em 2013.
Os números confirmam a aderência das brasileiras a um nicho de mercado que vem se fortalecendo, o da ginecologia estética, ou ginecologia cosmética. Por meio de procedimentos como os citados, é possível corrigir o que em espanhol se chama de inesteticismos, ou uma estética estranha segundo as próprias pacientes. O resultado, afirma Luis Ishida, cirurgião membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,“é a melhora da autoestima, principalmente na vida sexual da mulher”.
Com a empresária paulistana Neusa, 48 anos, foi bem assim. Ela planejou colocar silicone nos seios e aproveitou pra fazer duas cirurgias de uma vez. A redução dos pequenos lábios não foi indicação médica e não tinha fins funcionais. A queixa em relação ao tamanho deles era apenas de Neusa. “Meu marido não percebeu mudança alguma. Mas me senti outra, mais feliz.” Antes, seu próprio cirurgião chegou a avisar que o procedimento era desnecessário. “Mas pra mim não, eu não estava bem. Insisti que queria fazer. Depois que comecei a me depilar totalmente, o tamanho dos lábios passou a me incomodar. E vi em filmes pornôs outras tão mais bonitas. Queria que a minha ficasse também!”, defende-se.
Para a psicanalista carioca Joana de Vilhena Novaes, o modelo de Neusa não é novidade e pode ser regra. Na cultura do espetáculo, até para a boceta temos referências, e elas vêm do sexo como produto. Ela explica que a internet popularizou o conteúdo pornográfico, que por sua vez produziu novas condutas e aspirações sexuais.
Pornô style
Se a pornografia dita tendência entre as xoxotas pelo mundo, a cineasta sueca Erika Lust propõe repensar a produção do material: “A maioria da pornografia que temos é feita para homem. Precisamos inserir diversidade. Existem muitos corpos. Existem muitas bocetas. Pornô precisa ser pra todo mundo e representar todos os tipos”, diz Erika, que segue uma linha de cinema pornô feminista em sua produtora, a Lust Films.
As referências que as mulheres levam quando procuram uma cirurgia estética íntima é um tópico interessante. Quando falamos de outras partes do corpo conseguimos enumerar as “inspirações”: a mídia, a indústria da beleza etc. Estamos cansados de saber que o corpo, especialmente o feminino, é alvo de patrulha. Mas e a boceta? O órgão sexual feminino é muito mais íntimo e de cunho privado que os seios ou a bunda, por exemplo. Será que isso está mudando?
Joana Vilhena de Novaes sugere que hoje os conceitos de público e privado estão dissolvidos. Se as pessoas fazem selfie da barriga nova e do peito novo, “certamente farão de suas genitálias”, aposta. “Não duvido que, daqui a um tempo, o que vai definir mostrá-la ou não é o fato de ela estar depilada, limpa e rosada.” São os padrões de xoxota que começam a ser desenhados. “Não gostou, compre uma nova”, ironiza Joana. A psicanalista diz que não aceitamos mais “imperfeições” e culpa a mercantilização de todos os processos. “Ninguém mais precisa conviver com uma genitália que não lhe apetece. Tudo está ao alcance do bolso, e tudo pode ser parcelado.”
Mas não para por aí. Outro ponto para a imensa acessibilidade de procedimentos cirúrgicos é a banalização deles. A própria Joana trata o assunto no livro Corpo para que te quero? Usos, abusos e desusos (ed. Appris). “É o discurso médico aliado ao tecnológico. As estatísticas não mentem. O Brasil é campeão em cirurgias estéticas. A cosmética é compreendida como artigo de primeira necessidade para a classe média!” Seu discurso é corroborado com os dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética: pela primeira vez, o Brasil supera os Estados Unidos em número de cirurgias para fins estéticos.
A catarinense Amanda*, hoje com 25 anos, tinha 18 quando decidiu aparar os pequenos e os grandes lábios. A cor e o tamanho deles a incomodavam desde que começou a ter suas primeiras transas e, logo, a assistir aos primeiros filmes pornográficos. A câmera fechada na genitália das atrizes a fez ter certeza: o tom escuro e a assimetria da sua eram indesejáveis. “Fiquei um tempo sem sexo quando comecei a ver os filmes. Minha sorte é que soube cedo da ninfoplastia. Em uma consulta para uma abdominoplastia [procedimento para retirada do excesso de pele e gordura da barriga], o médico logo disse que poderíamos consertá-la e o valor seria R$ 2 mil a mais. Fechei negócio na hora”, relata.
“Ninguém mais precisa conviver com uma genitália que não lhe apetece. Tudo está ao alcance do bolso, e tudo pode ser parcelado” - Joana de Vilhena Novaes, psicanalista
As queixas de Amanda seguem a linha das que o cirurgião plástico Alexandre Mansur ouve em Curitiba, onde vive e trabalha. De acordo com ele, as mulheres que fazem a ninfoplastia geralmente vão ao consultório por outras razões e lá acabam descobrindo, depois de reclamarem da aparência de suas genitálias, que podem modificá-las.
O conceito de estética integrou-se aos de limpeza e saúde e o mesmo aconteceu com as práticas cosmetológicas. Por isso, a obsessão por superfícies lisas, sem pelos e rugas. “Vivemos uma cultura que tem horror e desprezo pela história e pela tradição. Quem não tem história, não tem marca. Genitálias sem pelo, delicadas e rosadas lembram as infantis. Tudo que se assemelha ao envelhecimento é considerado sujo e deselegante em nosso tempo”, diz Joana.
Intrigadas com o aumento das cirurgias cosméticas “íntimas” em seu país, o segundo do ranking, as ativistas alemãs Claudia Richarz e Ulrike Zimmermann fizeram um documentário sobre a vulva e as intervenções que ela sofre. Vulva 3.0 estreou no Festival Internacional de Cinema de Berlim deste ano e está na programação do Festival do Rio de Janeiro. Para as diretoras, “a vulva está sujeita a um ideal de beleza absurdo. Mulheres que não celebram nem conhecem bem as suas ficam críticas consigo mesmas e recorrem à operação”. O teaser do filme mostra um designer tratando a imagem de uma mulher nua. Rapidamente ele reduz os grandes lábios aparentes na foto. Em segundos ajuda a criar um padrão estético inexistente, ou melhor, dependente do bisturi e do Photoshop.
É quase impossível nos mantermos longe da avalanche de imagens perfeitas com as quais convivemos. É mais difícil ainda nos sentirmos bem com a aparência do nosso próprio corpo quando somos oprimidos por elas. O conselho dos especialistas: a cirurgia plástica tem seu valor, porque pode mesmo tirar um traço estigmatizante do sujeito e melhorar sua autoestima. No entanto, é preciso tomar cuidado: de traço estigmatizante para norma, é um pulo. Do direito de ter o corpo e a boceta que você quer para a obrigação de ter a que te impõem, é outro pulo, e bem curto.
Do direito de ter o corpo e a boceta que você quer para a obrigação de ter a que te impõem, é um pulo
A jornalista e escritora norte-americana Natalie Angier, autora de Mulher – Uma geografia íntima (ed. Rocco), não se conforma com a intervenção cirúrgica e propõe o que chama de “a única alternativa imaginável para quem sofre com uma vulva com proporções maiores”. Se a mulher não tem dor ou real incômodo por causa de sua anatomia diferenciada, ela prega: “Queridas, se o problema é vergonha de suas bocetas, há uma solução mais simples do que entrar na faca: simplesmente não raspem seus pelos pubianos”.
*As entrevistadas desta reportagem tiveram seus nomes trocados.
Ninfoplastia nos pequenos e grandes lábios
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*Colaborou Flora Lahuerta