A paixão, essa insanidade
Ou de como a vida só faz sentido quando encontramos coragem para nos entregar
Ou de como a vida só faz sentido quando encontramos coragem para nos entregar às ideias que parecem as mais estapafúrdias
No dia em que decidimos nos mudar dali, decidimos também como a presentearíamos. Pareceu apenas natural que, em agradecimento a tudo o que ela havia feito enquanto moramos no apartamento da porta da frente, oferecêssemos à nossa ex-vizinha as infindáveis bênçãos e felicidades da vida como proprietária de um cachorrinho. Tínhamos certeza de que um recém-nascido de quatro patinhas preencheria a ausência das vizinhas que tinham virado melhores amigas. O que poderia ser mais perfeito para aplacar a dor de nossa partida? Para deixar tudo ainda mais cosmicamente encaixado, o aniversário dela se aproximava, um sinal claro dos céus para que fôssemos atrás de um quadrúpede. Nos dias que antecederam a ida ao Centro de Zoonoses, uma espécie de orfanato de vira-latas, contamos a alguns outros amigos o que estávamos prestes a fazer, e todos fizeram observações do tipo: “Vocês vão virar a vida dela de pernas para o ar”. Ou: “Cachorro não é uma coisa que se ofereça como presente surpresa”. Entendemos a reação coletiva apenas como inveja e tratamos de ignorar as considerações. Assim, numa manhã ensolarada de sábado, acordamos mais cedo do que o normal para ir ao orfanato canino.
O Centro de Zoonoses é um lugar enorme, uma espécie de pavilhão com centenas e centenas de gaiolas que abrigam cachorros pequenos, médios e grandes, bebês e adultos, todos achados nas ruas. Andando pelos corredores, íamos conhecendo os candidatos, esperando que o eleito indicasse de forma clara que era ele, poupando-nos da dor da escolha. E, de fato, depois de quase 1 hora de zigue-zagues por aqueles corredores de cheiro memorável, o inquieto inquilino de uma gaiola que estava quase na saída grudou as patinhas nas grades e, com olhos de súplica, entregou sua alma. “É esse”, minha mulher gritou decidida. Eu, que apenas obedeço, chamei a funcionária do centro e repeti apontando: “É esse”. A mulher explicou que aquele cachorro tinha sido encontrado havia duas semanas em um matagal. “Estavam morrendo, ela e a irmã.” E foi assim que soubemos que se tratava de uma fêmea e que, por debaixo de toda aquela histeria, havia uma outra cachorra, uma cópia perfeita, apenas menos agitada. “Mas não podemos separar as duas, não ia ser justo”, disse meu objeto de devoção. “Então vamos procurar um pouco mais”, retruquei, já aflita porque sei perfeitamente que é mais fácil tirar o plástico que lacra uma caixa de DVD do que uma ideia da cabeça de minha mulher. “Vamos levar as duas”, decretou, antes de emendar olhando para mim: “É até melhor, pensa bem. Ela sai para trabalhar e a cachorra não fica sozinha. Uma vai sempre fazer companhia para a outra. É perfeito isso, aliás”. E eu, completamente convencida, porque me convenço muito facilmente com tudo o que fala minha mulher, disse à funcionária do centro que ela podia embrulhar as duas. Foi nessa hora que lembramos de perguntar de que tamanho mais ou menos elas iriam ficar, já que o apartamento da Ciça não é grande. “Vira-lata a gente nunca sabe, mas elas têm uns 2 meses e não são grandes, então devem ser de porte médio.” A explicação foi suficiente e saímos dali com aquelas duas cadelas negras como petróleo dentro do carro.
Choque inicial
Ciça estava em casa quando chegamos. Pedimos que ela fechasse os olhos e entramos com as oito patinhas. “Pode abrir”, dissemos quando as duas estavam bem à sua frente. Em nossos sonhos, era nessa hora que Ciça colocaria uma mão na boca, choraria de emoção e se atiraria aos pés da cachorra, que agora eram duas. Mas não foi exatamente o que aconteceu. A expressão em seu rosto assim que o cérebro captou a imagem estava mais para a mesma que ela teria se alguém dissesse: “Para consertar esse vazamento em seu banheiro teremos que quebrar todas as paredes da casa”. Decidimos então que o choque inicial era natural e que em minutos ela reagiria exatamente como em nossos sonhos. Ciça, que lida bem com números e planilhas, quando foi capaz de voltar a falar começou a fazer perguntas: “De que tamanho vão ficar?. Comem muito? Quanto vou gastar de ração por mês? Como faz para fazer elas fazerem cocô e xixi no lugar certo? Elas vão chorar à noite até se acostumarem com a casa?”. Para todas, escolhíamos as respostas certas. “Superfácil ensinar cachorro pequeno, Ciça.” “Ração? Quase nem comem.” “Recém-nascidos dormem como anjinhos, nem se preocupa com isso.” Quando, muitas horas depois, fomos para casa acho que pude finalmente ver Ciça chorando, embora agora, olhando em retrospecto, não me pareça que ela chorasse de emoção ou alegria.
Passados dois dias, Ciça apareceu em nossa casa com o rosto pálido, aos prantos, falando sem vírgulas e agitando as mãos pelo ar: “Desculpa, mas não dá. Elas fizeram cocô na casa inteira, comeram os pés do sofá, o batente de uma porta, o pufe foi praticamente todo mastigado [o que, claro, explicava a quantidade de cocô, mas isso achei melhor não falar], acham que o pote de água é uma piscina na qual podem mergulhar o corpo inteiro e depois sair pingando pela sala e, para piorar, dois vizinhos vieram reclamar dos latidos noturnos, que parecem uivos, e eu pensando bem acho mesmo que são uivos, vocês têm certeza de que me deram cachorros e não lobos?”. Tentamos acalmá-la, mas ela estava decidida a devolver o presente, o que de fato fez, deixando as duas em nossa casa logo depois da crise.
Dobermann com manga-larga
Enquanto pensávamos como poderíamos resolver a questão sem ter que voltar ao Centro de Zoonoses, colocamos as duas na área de serviço. Chegamos até a considerar ficar com elas, mas já tínhamos Cora e Mila e a ideia não demorou a sair de nossas cabeças. Quando, depois de 5 minutos, abrimos a porta da área nada ali estava como antes: os potes de água estavam vazios, a área encharcada, o tapete comido e havia xixi e cocô por todos os lados; imagem que faria Marley parecer um cachorro comatoso. “Precisamos devolver imediatamente, a Ciça tem razão”, eu disse, já hiperventilando. Mas, antes de conseguirmos colocar as duas no carro, Ciça voltou esbaforida: “Eu quero elas. Eu quero!”. Nunca saberemos o que a fez mudar de ideia, mas o fato é que ela saiu de nossa casa com as duas outra vez.
Com o passar dos meses, enquanto cresciam, começamos a imaginar de que tipo de mistura de raças eram feitas. Havia uma pitada de dobermann, sem dúvida, mas havia também alguma outra raça menor, já que o ritmo de crescimento não era grande, o que nos deixava bastante aliviadas. Mas então, sem que pudéssemos antecipar, as células caninas iniciaram frenéticas mitoses e aqueles cachorros deixaram claro do que eram feitos: uma mistura de dobermann com manga-larga.
Hoje, um ano e meio depois do episódio, moram em um apartamento de 90 metros quadrados com Ciça, que se recusa a imaginar a vida sem seus pôneis e simplesmente ignora todos os móveis comidos, ou o corre-corre desenfreado de patas pela sala, ou o carro inteiro riscado por fora. Quando vamos visitá-las, minha mulher e eu travamos sempre o seguinte diálogo: “Meu Deus, o que fomos fazer?”. “Pois é, que ideia de jerico, a sua.” “Foi sua!” “Não, foi sua!” Mas aí Ciça diz para pararmos com a briga, conta que nunca foi tão feliz, que não vive mais sem Clô e Filó, e a gente então lembra que a vida só faz sentido quando encontramos coragem para nos entregar à maior de todas as insanidades: a paixão.
A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com |