A grande dor de viver
Milly: "Tenho com essa dor que vive aqui dentro uma relação de intimidade crescente"
Tenho com essa dor que vive aqui dentro uma relação de intimidade crescente: nunca uma coisa me pertenceu tanto
Ainda é difícil olhar uma foto sua. Não que seja preciso. Estão vivíssimos em mim seu rosto, sua voz, o jeito intenso e propositalmente infantil com que você mexia as mãos, como se elas estivessem desconectadas do pulso, sempre que alguma coisa excitante estava para acontecer: um grande jogo de futebol, um grande encontro, uma grande festa, uma grande obra. Aí você mexia as mãozinhas para cima e para baixo, freneticamente, como quem quer se livrar de um chiclete na ponta dos dedos. E falava animadamente, entre pulinhos, a respeito do que estava por vir. Era impossível não compartilhar da empolgação, ainda que o assunto fosse o projeto de uma nova ponte, ou de uma nova linha de metrô. Preciso acreditar que esse vigor todo agora vive em outro lugar, continuou para uma dimensão que não conhecemos ainda. Tanta intensidade não morre, não deixa de existir. Seria como apagar o Sol, e nenhum deus no mundo faria isso, ainda que pudesse. Não se apaga o Sol, não se apaga você.
Então, tenho que te contar que aqui embaixo a gente insiste lutando dia a dia, coisa que você fazia com tanta graça. E, embora sigamos sangrando sua falta, estamos indo. A gente e as miudezas mundanas do cotidiano, coisas que ficaram pequenas com sua ausência, mas que insistem em continuar a acontecer. Desde que você foi embora, teve o julgamento do mensalão, teve o Timão campeão do Brasil e depois da América, teve eleição para prefeito, teve o primeiro Natal sem você, teve meu aniversário, teve uma reforma aqui em casa. E teríamos falado a respeito de todas essas coisas, em miúdos detalhes, como você gostava de fazer.
Ao Pacaembu quase não consigo mais ir porque a dor de estar ali dentro, olhar para o lado e não ver você gritando alguma coisa impublicável para o juiz ainda é colossal. Mas é estranho notar como a dor pode ir perdendo a cor forte, adquirindo uma mais fraca e dando espaço para que um tipo de saudade, que eu não sabia que existia no mundo, se instale.
Saudade boa
No começo, era uma saudade sofrida e desesperada, capaz de me tirar o ar, mas aos poucos ela também perdeu alguns tons e foi virando uma saudade que mistura dor, alegria e a inigualável sensação de ter tido a sorte de conhecer alguém como você. Hoje, sou capaz de rir quando lembro das coisas que você gritava para o juiz. E gritava tanto, e tão mais forte que os outros torcedores, que quando eles coletivamente paravam de urrar sentiam-se obrigados a olhar para trás e ver de quem era aquela voz que continuava a se indignar. Era a sua. E eu do seu lado, já rindo, mas sem que você percebesse.
No começo, juro que torcia para o Corinthians apenas para ver você feliz. Nem sei quando comecei a torcer para me ver feliz, mas hoje agradeço demais a você por ter me deixado o time como herança. Sabia que quando ganhamos a América eu paguei uma promessa e corri pelada pelo jardim? Você teria se esbaldado de rir, e depois teria dito, quase séria, que eu era maluca, de um jeito meio culpado, como quem sabe ter sido a responsável por despertar em mim esse tipo de piração.
Hoje, tenho com essa dor que vive aqui dentro uma relação de intimidade crescente: nunca uma coisa me pertenceu tanto. É a minha propriedade mais sublime. Estranho, mas é como se me orgulhasse dela. Talvez porque ela me faça querer ser uma pessoa melhor para, quem sabe assim, poder ser recebida por você logo na saída. Ou talvez porque, ao aceitá-la, como aceitamos a tempestade de verão que destrói, alaga e leva com ela detritos que nem sabíamos que existiam, fiz dessa dor extraordinária uma parte de mim. Uma parte importante de mim.
Dor e amor
E nem sei se é justo me referir a ela apenas como dor porque, na verdade, trata-se de uma dor que se mistura ao – e se lambuza do – amor que sinto por você; do jeito que estão hoje, já não podem ser separados. Mais maluca ainda é a sensação de que jamais estarei sozinha, porque essa dor, que é também amor, nunca mais vai me abandonar. Vamos juntas, estamos juntas, pertencemo-nos e, mais ainda, aceitamo-nos.
Durante esse primeiro ano sem você, aprendi que chorar pode conviver com outras atividades, que não é ação excludente: é possível, por exemplo, chorar e lavar louça, chorar e fazer ioga, chorar e escrever, chorar e arrumar a cama, chorar e guardar as roupas que foram largadas sobre a cadeira na noite anterior, chorar e passear com os cachorros, chorar e fazer supermercado, chorar e arrumar novas flores pela casa. E eu que achava que quando a gente chorava tinha que interromper qualquer outra atividade. Bobagem.
Mas o mais fundamental é que eu continuo a escutar sua música. Muito provavelmente porque, como se diz, “os fados guiam àquele que assim deseje, aquele que não deseja, eles arrastam”. Há um ano, quando você saiu sem se despedir, fui arrastada. Hoje, sou guiada – uma diferença enorme. É o que disse o pensador e mitologista americano Joseph
Campbell, e que eu nunca tinha entendido, mas hoje compreendo perfeitamente: onde está sua dor, está sua vida. De repente, tudo fez sentido. E, se o deus da morte é o senhor da dança, tenho que seguir dançando a música que você deixou e que eu consigo escutar. Ela toca todos os dias, toca constantemente, e, dependendo do momento, toca alto.
Como cheguei aqui eu não lembro, mas sei que foi preciso a ajuda de muita gente. Gente que não tentou me impedir de olhar no olho da dor, reconhecer seu tamanho, me curvar à sua grandeza e a ela me entregar. Gente que estava atrás de mim para me amparar e me fazer ficar de pé outra vez. Gente que me fez ver que a vida existe em um lugar de muita dor, mas também de muito amor. O definitivo truque, acho, é aprender a receber a vida como ela é. E, com a teimosia dos apaixonados, seguir.
A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com