A estrela de Belém
A biotecnóloga palestina Penelope Shihab conta como é ser cientista e empresária em uma cultura islâmica
A trama é conhecida: um casal procurava um local para que a mulher, prestes a entrar em trabalho de parto, conseguisse dar a luz. Não havia a possibilidade de retorno à cidade em que moravam por causa da ocupação de seu país e da constante ameaça de violência. Nesse exílio involuntário, o casal decidiu às pressas que a cidade de Belém seria o refúgio mais seguro para um parto – que aconteceu no dia 25 de dezembro no Hospital Francês, a menos de um quilômetro da Igreja da Natividade, suposto local de nascimento de Jesus Cristo. O ano era 1973. O bebê, uma menina, ganhou um nome não muito usual por aquelas bandas: Penelope – tudo porque seu pai, Ahmad, sempre foi fã de Homero.
O que Ahmad não podia anteceder é que Penelope seria muito mais parecida com o protagonista da Odisséia, Ulisses, do que com a paciente esposa desse herói. Hoje, Penelope Shihab é uma autoridade em biotecnologia, além de CEO e sócia de duas empresas nessa área: uma na Jordânia, outra nos EUA. O caminho até aqui foi difícil e continua sendo. Até os 18 anos, Penelope, ou Pen, como insiste em ser chamada, estudou em Ramalá, nos territórios ocupados da Palestina. Terminado o ensino médio, ela convenceu os pais que precisava mudar para Jordânia para estudar na Universidade Jordaniana de Ciências e Tecnologia, onde receberia uma melhor educação e completaria seus estudos em um país menos afetado pela violência. Os pais ficaram, ela foi – atitude impensável dentro da cultura islâmica: “Meus pais sempre foram muito liberais”.
A escolha da faculdade foi muito mais pautada pela ambição intelectual do que pela vocação: “Eu era a melhor aluna da minha classe, o curso que escolhi, o mais difícil”. O curso em questão seria o equivalente ao pre-med norte-americano. Mais da metade das mulheres do curso encerraram os estudos logo após a graduação para se tornarem esposas e mães. As outras alunas se tornaram enfermeiras e professoras de ciências. Penelope foi a exceção, quis continuar a graduação em hematologia/biotecnologia. O curioso é que durante a faculdade, Penelope não usava o hijab, o véu que as mulheres islâmicas usam para cobrir cabeça – na época não sentia a necessidade e estava aproveitando os ventos mais permissíveis de seu novo país. O retorno do véu aconteceu quando Penelope precisou entrar no mercado profissional e, aparentemente, tem um significado muito mais próximo de identidade cultural e conquista de respeito do que religioso. Ela gosta de se afirmar como uma mulher do Oriente Médio e quer ser identificada assim.
Em um setor de sua vida Penelope não conseguiu fugir da tradição: logo após a graduação na faculdade em 1999, ela se casou com Ammar Abu Tarboush, hoje o maior empresário de moda da Jordânia e nesse mesmo ano o casal teve sua primeira filha, Batool. Mas mesmo casando cedo, Penelope continuou desafiando o status quo: “Eu nunca precisei trabalhar, mas sempre quis. Ninguém entende isso por lá”. Já formada, teve vários empregos na área de pesquisa, mas foi na Dako – gigante farmacêutica dinamarquesa, quando já fazia seu mestrado em hematologia, que Penelope resolveu se dedicar ao setor de vendas e marketing da empresa, onde teria horários mais flexíveis – e foi nesse setor que percebeu duas peculiaridades em sua profissão que iriam mudar sua trajetória. A primeira é que a imensa maioria dos cientistas do Oriente Médio trabalha para empresas internacionais, que pouco contribuem com o desenvolvimento econômico de seus países e a segunda é que quase nenhum cientista é ao mesmo tempo um empreendedor: “Eu percebi que eu podia ser uma cientista e também uma empreendedora. Que eu podia colaborar com a economia do meu país”.
"O preconceito é diário – desde homens dizendo que meu negócio nunca vai dar certo, porque eu sou uma mulher, até funcionários da prefeitura que ser recusam a falar comigo sem meu marido presente"
Com isso em mente cursou mais dois MBAs de administração, um na Inglaterra e outro nos EUA. Nesse meio tempo teve mais uma filha e em 2005 Penelope fez então o que raros cientistas de sua região foram capazes e o que nenhuma mulher ousou: abriu a Monojo, sua própria empresa de biotecnologia que se especializou na criação de remédios e cosméticos com insumos locais. É a única empresa de inovação biotecnológica do país. É da Monojo a patente da proteína de leite de camelo como tratamento de pele. O laboratório também está a ponto de lançar um novo medicamento para gastrite e tem duas pesquisas importantes em medicamentos para diabetes e câncer. Ser CEO de uma empresa em um país muçulmano provou ser tão desafiador quanto ela já imaginava: “O preconceito é diário – desde homens dizendo que meu negócio nunca vai dar certo, porque eu sou uma mulher, até funcionários da prefeitura que ser recusam a falar comigo sem meu marido presente. Meu marido não tem nada a ver com meu negócio”.
Os obstáculos parecem não interromper qualquer ambição de Penelope. Em 2012, ela abriu uma segunda empresa, a Columbia Biotech, em Missouri. Depois de várias pesquisas de mercado ela detectou que a aprovação de seus produtos no Oriente Médio seria maior se ela tivesse a validação dos EUA. Ou seja, ela está transformando seus produtos feitos na Jordânia em produtos importados, porque o jordaniano ainda enxerga mais qualidade em produtos vindos de fora.
Penelope tem hoje três filhas e um filho. Divide seu tempo entre duas empresas em países diferentes e uma pesquisa de doutorado em Cambridge. Fala com orgulho da vocação da filha Batool para as artes plásticas e da segunda filha, Layan, para música. Aseel e Ahmad ainda são muito pequenos para apontarem alguma vocação, mas Penelope tem certeza de que todos eles serão independentes.
No começo de dezembro a cientista esteve no Brasil para conhecer o mercado local, visitou o centro de biotecnologia da USP, conversou com investidores e até possíveis clientes. Para ela, é uma aventura necessária: “Num evento em Israel, há duas semanas, disseram que eu precisava conhecer o Brasil, porque é um lugar de oportunidades. Eu vim. Eu sou assim”. Penelope viajou sozinha, as crianças ficaram com a sogra. Entre risos ela se declara uma aventureira: “Já saltei de paraquedas, já pratiquei paragliding. Eu não tenho medo de nada”. Perguntei então se ela não temia ver seus pais ainda vivendo em meio à violência dos territórios ocupados da Palestina. Rapidamente ela respondeu: “Não. Já testemunhei mais de uma vez tiroteios. Eu não tenho medo. Só se vive e se morre uma vez”. Claramente, Penelope escolheu viver.
(*) Daniela Abade é roteirista e escritora