A dor e a delícia de (querer) ser mulher

O universo travesti sob o olhar de Rosanne Mulholland

por Rosanne MulholLand em

Escolhida para interpretar um travesti nos palcos, Rosanne Mulholland mergulha num universo de dúvidas, certezas e reviravoltas


Quando criança, eu tinha certa inveja dos meninos. Eles me pareciam muito mais livres, não tinham regras de comportamento tão rígidas (“comporte-se como uma mocinha!”), podiam se arriscar mais e ainda faziam xixi em pé! Muitas vezes pensava que a vida seria melhor se fosse menino. Mas foi um pensamento passageiro, logo eu estava pulando corda e aquilo não tinha a menor importância.

Ano passado tudo voltou à minha cabeça quando me preparava para atuar na peça A Inevitável História de Letícia Diniz. Resumindo, a peça revela por meio da história de Letícia a realidade de inúmeros travestis que lutam para viver com o mínimo de dignidade no Brasil.

Eu, que sempre me considerei uma pessoa de cabeça aberta, devo admitir que, em relação a esse assunto, descobri que ainda tinha muitos preconceitos. O primeiro deles se revelou com o convite do diretor e autor da peça, Marcelo Pedreira. “Por que EU pra viver um travesti?”, questionei. “Quero uma atriz feminina, de traços delicados. Quero mostrar que existem travestis fora do estereótipo, quase indistinguíveis de uma mulher de verdade.” Desde então, mergulhei nesse universo intrigante.

Um fato me impressionou bastante: crianças de 5 ou 6 anos afirmavam ter nascido no corpo errado e sofriam seriamente com esse “acidente da natureza”. Uma delas teve desde cedo o apoio da família, que observava a felicidade do menino quando ele colocava um vestido. Enfrentaram a sociedade e criaram o filho como menina. Diziam que o sofrimento da criança diante da chacota dos colegas era muito menor do que o sofrimento de ser obrigada a se comportar como um menino. E essa criança parecia mais bem resolvida do que a outra – um menino que tinha uma irmã gêmea. Este via a irmã ser tudo o que ele desejava, enquanto os pais o tratavam como menino. A dor dessa criança me comoveu profundamente. A mãe conta que um dia ouviu o filho pedindo a Deus que o fizesse acordar menina. Preocupada, foi conversar com ele, que disse estar muito bravo com Deus, pois Ele o havia colocado no corpo errado e não queria consertar.

Espelho

Conhecer Mariana também me marcou. Era um travesti que Marcelo dizia ser o modelo para minha personagem. Combinamos um almoço. Quando ela (é impossível chamar de “ele” depois de conhecê-la) chegou quase sem maquiagem, de jeans e uma blusa com um laço, sem afetação, tive que me esforçar para parecer natural – que “mulher” linda! Bem-educada e delicada, ela tem 23 anos, uma pele melhor que a minha e uma cabeleira de dar inveja. Abriu sua vida com a generosidade de uma lady. Desde a infância Mariana sabia que não era igual aos outros. Era menino e gostava de menino. Na adolescência, descobriu que não pertencia ao grupo dos rapazes, mas também não pertencia ao grupo dos gays. E, claro, não pertencia ao grupo das meninas. Começou a tomar hormônio feminino e a se transformar. Ela me contou sobre os preconceitos que enfrentou dentro e fora de casa, como foi parar na prostituição e como conseguiu se ver livre das drogas. Namorou um rapaz durante quatro anos e a família nunca desconfiou. Quando descobriu, o caos foi tão grande que resultou na internação do rapaz e em ameaças à moça. Ela então foi à Europa juntar dinheiro para “comprar” sua dignidade. Mesmo detestando fazer programa, foi a maneira que encontrou para viver. Como travesti ela se destaca em relação às outras, enquanto na sociedade sofre discriminação e não consegue emprego. Mariana acredita que, em breve, terá dinheiro para largar a prostituição, mudar definitivamente de sexo e ter uma família.

Outro momento importante nesse mergulho no universo trans foi ir às ruas. Na Lapa, no Rio de Janeiro, vi de tudo: travestis mais masculinos, mais femininos, fazendo o tipo “gostosa” ou o tipo “mignon”, olhares mais sofridos, outros mais debochados, e bastante afetação. Muitas parecem assumir uma persona quando fazem ponto na rua. Uma delas me disse que o importante era se sentir desejada, porque os homens se sentem atraídos por “mulheres” poderosas. Mas, em casa, quando estava só, era uma pessoa completamente diferente.

Fui percebendo como esse universo é amplo. Alguns se sentem bem apenas se vestindo como mulher. Outros modificam o corpo, mas não veem necessidade de mudar de sexo. E há os que precisam desesperadamente da mudança completa.

Uma característica me parecia ser comum a todos: a vaidade. Entretanto, alguns estão satisfeitos em ser tratados como mulheres e ponto. Outros são extremamente vaidosos, porém, onde vão buscar autoestima se a família virou as costas e nenhum homem assume um relacionamento sério (apesar de a extensa lista de clientes ser de homens casados)? É fácil julgar quando se está num pedestal.

No mais, minha experiência com elas me fez repensar aquela inveja que sentia dos meninos. Eles não eram tão mais livres do que eu. Eu podia andar de mãos dadas com minhas amigas, brincar de boneca, dançar requebrando a cintura, passar batom... e tantas outras coisas que eram “proibidas” a eles. Hoje, conheço as dores e as delícias de ser mulher – e assumo todas elas em cima de um belo salto.


Vai lá: A Inevitável História de Letícia Diniz
Teatro Sérgio Porto
Endereço: r. Humaitá, 163, Rio de Janeiro, (21) 2535-3846.
De sexta a domingo, no mês de fevereiro

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