A beleza de ser vulnerável
Ou sobre como nos despedirmos de alguém que talvez não voltemos a ver
A irmã de minha mãe se chama Dinda. O nome na certidão de nascimento é Carlotta mas foi alterado pela família quando eu nasci. Primeira sobrinha, fui batizada por ela e nesse dia o apelido pegou. Todos os meus irmãos a chamam de Dinda, embora ela não seja a madrinha deles, minha mãe se refere a ela como Dinda, meus amigos a chamam de Dinda e minhas ex-mulheres a chamam de Dinda. Era na casa da Dinda, no Recreio dos Bandeirantes, no Rio, que passávamos as férias, era no colo da Dinda que víamos TV, era na piscina da Dinda que gastávamos nossas tardes durante os anos da infância. Dinda nunca casou, mas teve um filho – que chamamos de Milton porque esse é o nome dele.
No final de julho, Dinda, hoje com 72 anos, não se sentiu bem e foi ao médico. Depois de alguns exames o médico disse que Dinda precisaria ser internada às pressas para três pontes de safena. Havia veias quase totalmente entupidas e Dinda corria altíssimo risco de vida. Diabética, Dinda teve que parar de trabalhar por ter se tornado, há alguns anos, deficiente visual. Dinda é arquiteta e até hoje, mesmo sem enxergar quase nada, consegue encontrar soluções criativas quando um de nós precisa fazer alguma pequena reforma na casa.
O problema, explicou o doutor, é que na idade dela, e por causa da diabetes, seria uma operação de risco bastante elevado, então ele sugeriria que pensássemos. E se ela não operar, Milton quis saber. "Morre em aproximadamente dois meses", disse o médico.
Dinda nunca teve medo de morrer, mas com o nascimento da primeira neta, há um ano e meio, tampouco tinha pressa em deixar de viver. Dinda acredita que existem mais coisas além daqui e desde muito cedo se dedica a visitar variadas filosofias e religiões, sendo a mais recente a Kabbalah. Tem a capacidade de não abrir mão de nenhuma das já visitadas e vai, assim, empilhando crenças e uma lista de orações, feitas em diferentes línguas antes de dormir e ao acordar. A lista é de fato bastante extensa e o quarto de Dinda é decorado com a Bíblia, o Zohar e uma meia dúzia de outros livros sagrados, alguns de filosofias pouco conhecidas.
Quando soube que teria que fazer uma escolha entre operar ou não, Dinda foi rápida: disse que não ia operar. Milton então pediu que o médico fosse claro com ela. O doutor colocou Dinda sentada e disse de forma direta: "Se a senhora não operar, sabe o que vai acontecer? Num sábado qualquer, não muito distante, vai estar na casa do seu filho tomando uma xícara de chá, rindo e conversando, vai sentir uma dor no peito, levar sua mãozinha até ele, dar um suspiro e morrer". Quando ele parou de falar Dinda disse: "Mas, doutor, que morte linda. Não vou operar mesmo. Obrigada".
Ao saber da sentença, liguei para minha mãe, que estava com Dinda na hora em que o médico descreveu a cena da morte, e perguntei o que ela achava de tudo aquilo. "Acho um absurdo falar com velho usando o diminutivo. Não temos mãozinha ou pezinho. Temos pés e mãos. Eu, aliás, calço 40!" Minha família sempre teve um problema de foco, então não insisti e fiz a única coisa que poderia fazer: comprei uma passagem para o Rio, onde Dinda mora.
Claro que não demorou para que uma comitiva convencesse Dinda a operar, e cheguei ao Rio na véspera da cirurgia. Dinda estava internada na UTI do Hospital Adventista Silvestre e, a caminho de lá, ainda no táxi, liguei e perguntei a minha mãe o que ela estava achando do hospital. "Tô achando que a Dinda vai sair daqui com uma nova religião." Lembrei do problema de foco e não encompridei o assunto. Cheguei ao Silvestre às 7 da noite e consegui furar o bloqueio para ver Dinda na UTI. Entrei com minha mãe, que até ali tratava a operação como de amídala, e quando a vi se inclinar sobre o leito da irmã caçula, segurar seu rosto com as duas mãos, beijar sua testa e suas bochechas repetidas vezes, demonstrando um tipo escancarado de afeto que ela só oferece para os nove netos, não pude mais me segurar e desabei sobre o peito de Dinda.
Aos prantos não conseguia falar, e coube a Dinda quebrar o silêncio. "Bilu" – ela só me chama de Bilu – "Bilu, eu quero que você saiba que eu amei você desde o primeiro dia que te vi e que vou amar você para sempre." Sem saber o que dizer, porque é bastante difícil saber o que dizer para alguém que talvez nunca mais vejamos, me deixei ficar ali chorando enquanto Dinda fazia carinho em minha cabeça.
Ainda tinha a cabeça em seu peito quando a ouvi contar que estava escutando uma palestra do rabino Shmuel, seu amigo, com o fone de ouvido no leito da UTI, e ao abrir os olhos viu Shmuel a seu lado. Achei que ela falava de uma experiência mística, mas Dinda explicou que o rabino tinha ido até lá dar um beijo nela. Estava feliz como uma criança com a visita do amigo e professor; Dinda é apaixonada pelas pessoas, e não esconde o que sente – Dinda nunca escondeu o que sente nem por um dia. Em troca, as pessoas se apaixonam por ela. E eu pensei que era de uma dignidade desconcertante estar a algumas horas do episódio que poderia tirar sua vida e se mostrar tão gigantescamente calma e alegre.
O ato de demonstrar amor, a coragem de dizer que ama, e a coragem ainda maior de expor nossas vulnerabilidades são lições que Dinda me deixou. Com ela aprendi que o ser humano é mais bonito quando permite se mostrar vulnerável; e que a perfeição não é sedutora porque é irreal. Com ela entendi que é justamente quando a gente consegue exibir fraquezas que podemos nos conectar com o outro de forma sincera e profunda, nos permitimos ser verdadeiramente amados e entendemos como estamos todos tão intensamente ligados.
A operação durou 9 horas e quando o cirurgião saiu para ir falar com todos nós, que passamos as 9 horas sentados na recepção do centro cirúrgico, minha mãe tremia. Ao dar a notícia de que tudo havia corrido bem, minha mãe deu um abraço nele e contou que tinha comprado bolos e queijos e pães e sucos porque passar quase 10 horas sem comer não estava certo. O pobre homem não teve tempo de recusar, e quando vi os cirurgiões e minha mãe entrando na sala privada dos médicos para o piquenique que ela havia preparado em homenagem à Dinda lembrei que há infinitas formas de demonstrar amor, e que todas são igualmente fundamentais.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com