50 tons de pica

Livro reúne a trilogia obscena que Hilda Hilst escreveu no início dos anos 90

por Emilio Fraia em

“É metafísica ou putaria das grossas?”, pergunta um personagem de Contos d’escárnio, que ao lado de O caderno rosa de Lori Lamby e Cartas de um sedutor compõe um dos capítulos mais destemidos e anárquicos da literatura pátria. A história é sabida: aos 60 anos, depois de 28 livros publicados (entre poesia, ficção e teatro) e escaldada com o silêncio da crítica, Hilda Hilst (1930-2004) decide renunciar à literatura “séria” e se dedicar a histórias pornográficas, aventuras lúbricas cheias de cus, paus e xoxotas — ou, como preferia, “adoráveis bandalheiras”. 

Embalada pelo discurso de uma guinada literária para “baixo”, à cata de leitores e atenção do mercado (“já que não consigo vender meus livros, quero escrever histórias de sacanagem para caminhoneiros baterem punheta!”), Hilst cria, ao contrário, textos de altíssima voltagem, qualidade e capacidade de provocar. Está muito à vontade entre os amigos Sade, Bataille e companhia. Zomba de todo ascetismo da vida intelectual. Sapateia sobre as solenes Senhoras de Santana. E atesta: “Fora do corpo não há salvação” (isso tudo com muita finura; no duro, como escreve bem).

Esta nova edição reúne os três livros citados, o volume de poesia Bufólicas e o inédito Fragmento pornográfico rural. Traz ilustrações de Millôr Fernandes, Jaguar, entre outros; textos críticos de Caio Fernando Abreu, Humberto Werneck, Jorge Coli, além de uma preciosa análise da professora Eliane Robert Moraes. E tem capa rosa e título chick lit (a dita “literatura de mulherzinha”): Pornô chic, o que poderia fazer, enfim, Hilda brilhar na mesma prateleira da Bridget Jones e da Anastasia Steele. Mas, claro, isso não seria o bastante. Além de implodir todo e qualquer Cinquenta tons de cinza (o que, convenhamos, nem é preciso dizer), a tríade obscena de Hilda Hilst nos dá a impressão de que boa parte da literatura “séria” à nossa volta — muitas vezes assexuada, convencional, com seus lamentos conjugais e moral semivitoriana — é ela mesma uma grande e rosa prateleira de chick lit. Esse é o real veneno da sua prosa. 

Para terminar (e combinar com a ilustração da Laura Teixeira ao lado), Hilda conta uma história: “Quando recebi as provas de meu livro Kadosh, no lugar da palavra cu, aparecia sempre co ou ca ou ci. Cu mesmo, nunca. O que é que há de errado com o cu?, eu me perguntava. Deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm, eu pensava. Essas são, no fim, as verdadeiras obscenidades”.

Vai lá: Pornô Chic, editora Globo, R$ 59,90

 

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