William Ury
O pacificador que se transformou em um dos mais requisitados mediadores de conflitos do mundo
Movido por uma questão que o persegue desde sempre – como aprender a viver junto? –, o antropólogo William Ury se transformou em um dos mais requisitados mediadores de conflitos do mundo, desarmando bombas de ódio tanto na política internacional como nas relações entre empresas, famílias e indivíduos
William Ury era um menino de 9 anos de idade quando a Guerra Fria, instaurada entre o governo do seu país, os Estados Unidos, e o da extinta União Soviética, chegava a um de seus capítulos mais tensos. Era 1962 e a corrida armamentista entre as duas superpotências de então tinha atingido proporções tão delirantes que ambos os lados tinham o poder de destruir o planeta inteiro com um ataque nuclear. Naquele ano, o episódio que ficou conhecido como a crise dos mísseis em Cuba – país que abrigava o arsenal soviético estrategicamente apontado para o território inimigo – colocou no imaginário coletivo o temor de que, em um simples apertar de botão, a humanidade poderia chegar ao fim.
Ury estudava na Suíça nessa época, mas o fantasma da guerra nuclear que assombrou sua geração sempre esteve vivo em sua cabeça. Mais do que isso, foi uma das razões que o levaram a se dedicar à área em que hoje ele é um dos nomes mais proeminentes: a mediação de conflitos. Antropólogo formado pela Universidade de Yale e pós-graduado em Harvard – da qual é diretor do Global Negociation Project –, ele passou os últimos 35 anos envolvido em negociações tão encrencadas quanto o conflito entre a Rússia e a Chechênia, a guerra civil que desintegrou a ex-Iugoslávia, o apartheid na África do Sul, a crise entre o presidente venezuelano Hugo Chávez e a oposição que tentou lhe tomar o poder, e muitas outras.
Fora da política internacional, Ury também ganhou prestígio ao mediar negociações relacionadas ao mundo dos negócios, especialmente de empresas familiares ou que passaram por fusões, situações invariavelmente cobertas de conflitos. Por conta de experiências tão diversas, não é incomum que lhe perguntem quais as negociações mais difíceis e dolorosa: as que acontecem entre partes que não se conhecem (como países ou corporações com interesses divergentes) ou as que se dão entre pessoas que são próximas (como irmãos discutindo o futuro de um negócio criado pelo pai). Ele responde sem hesitar: é muito mais complicado resolver as questões que envolvem pessoas que cresceram juntas ou que têm o amor e a amizade como componentes do relacionamento.
"O Brasil tem essa habilidade de dissolver limites. Há um talento para convivência, algo que o munto inteiro precisa aprender"
Nascido em Chicago, criado em San Francisco, estudante por muitos anos na região de Boston e com andanças pelos cantos mais diversos do mundo – incluindo aí os tempos de escola suíça e suas vivências como antropólogo com nativos guerreiros da Nova Guiné, com o povo Semai, na Malásia, entre outros –, Ury cumpria sua agenda de cidadão global quando fez a mais recente passagem por São Paulo, no início de maio, para apresentar a palestra “Como negociar com eficiência com os membros da família”. Vinha do Chile, onde também ministrou a palestra, e seguiu para a Colômbia, onde está envolvido atualmente em tentativas de acordos relacionadas às Farc, as forças revolucionárias que aterrorizam aquele país há décadas. As incontáveis viagens fazem com que ele valorize ainda mais o porto seguro – a casa em meio às montanhas da cidade de Boulder, no Colorado, onde vive com a mulher, uma brasileira, e três filhos.
Outro ponto do globo pelo qual passa frequentemente é o Oriente Médio, região onde está um dos conflitos que especialistas (e leigos) do mundo todo consideram insolúvel. Para ele, não é. Na opinião de Ury, também parecia impensável logo depois da Segunda Guerra Mundial que um dia pudesse existir algo como a União Europeia, em que estados como França e Alemanha, inimigos históricos, se tornaram aliados. Ou que um terrorista do IRA, o Exército Republicano Irlandês, pudesse entrar em harmonia com os líderes protestantes que costumava atacar literalmente com ferro e fogo – o que, de fato, aconteceu há poucos anos.
Para Ury, há esperança de paz na Palestina e um dos caminhos é uma aposta na integração cultural dos povos daquela região. Foi com essa inspiração que ele criou, em 2006, o Caminho de Abraão, espécie de peregrinação que passa por diversos países em conflito e que já foi percorrido por 4 mil turistas com disposição não só para conhecer a história do berço das três maiores religiões monoteístas do mundo – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo –, mas também para espalhar um ideal de pacificação e união entre povos hoje tidos como inimigos.
Apaixonado pelo Brasil, lugar que, segundo ele, tem muito a ensinar ao mundo sobre como lidar com a diversidade, o autor de best-sellers como Como chegar ao sim, Supere o não e o recém-lançado em português O poder do não positivo, que somam milhões de exemplares vendidos mundo afora, completa 60 anos em setembro. Ele recebeu a equipe da Trip em uma noite de domingo e falou não apenas das missões internacionais das quais participou, tão variadas quanto espinhosas, mas também da arena delicada e profunda em que são travadas batalhas diárias, em qualquer lugar do mundo onde houver mais de um ser humano convivendo: a família – e, mais especificamente, os relacionamentos afetivos. William Ury se tornou especialista nesse campo porque uma mesma pergunta o guia desde sempre, esteja ele em um gabinete de governo, em uma sala entre conselheiros de uma empresa ou discutindo com a filha adolescente: como aprender a viver junto?
"Tornou-se cada vez mais fácil ser destrutivo"
Quando você percebeu que tinha habilidade como negociador na vida? Já me fiz essa pergunta muitas vezes na vida [risos]. Há duas coisas que, acho, me predispuseram a isso: uma é que quando eu tinha 5 ou 6 anos nos mudamos para a Suíça, onde passei anos. E, frequentando uma escola internacional, meus primeiros companheiros eram gente do Líbano, Irã... havia estudantes de tantas partes do mundo que aprendi a lidar com a diversidade. A segunda coisa é que nas brigas em casa, quando meus pais discutiam, eu sempre assumia um papel de mediador.
Era algo natural pra você. Sim, acho que desde o começo eu já fazia a pergunta que se tornou minha paixão: como aprender a viver junto? Na adolescência, em plena Guerra Fria, vivíamos em alerta nos Estados Unidos. Estávamos preparados para, a qualquer momento louco, alguém acordar em Moscou e simplesmente dizer “este é o dia”, e então não haveria futuro. Isso nunca fez o menor sentido pra mim. Por que destruir o mundo? Foi mais uma coisa que me motivou a ir por esse caminho.
Por que antropologia? Em parte porque eu queria entender a natureza humana, a evolução da humanidade, e este momento particular na evolução, em que o gênio humano e as tecnologias criadas por ele podem ser usadas para destruição em massa. Tornou-se cada vez mais fácil ser destrutivo. A escolha é entre isto: a destruição e a nossa habilidade para nos desenvolvermos psicologicamente, emocionalmente, socialmente, espiritualmente.
O Brasil tem sido descrito como bem preparado para lidar com a diversidade. Qual sua impressão sobre a personalidade do país? Toda cultura tem seus pontos fortes, e um dos mais relevantes no Brasil é essa habilidade de dissolver limites. O termo “brasilidade” define essa habilidade de integrar de maneira natural, que flui. Tudo flui no Brasil, a música, até o jeito de as pessoas dirigirem ou jogarem futebol, em tudo há esse “dar um jeito”. Aqui há integração entre árabes e judeus. Há um talento para a convivência, algo que o mundo inteiro precisa aprender agora.
"Sim, a guerra faz parte da nossa natureza, mas tão potente quanto ela é a cooperação"
Você não percebe essas características em outros lugares? Há lugares semelhantes, mas não como o Brasil. Você até sente essa mistura em Manhattan,... mas o Brasil tem uma ligação com o coração, vejo aqui características mais femininas, receptividade, aceitação, sensualidade. Por isso o mundo todo adora os brasileiros. Um americano no Oriente Médio não desperta nenhuma reação calorosa, mas se a pessoa diz que é do Brasil há uma festa.
Ouço da minha filha de 7 anos perguntas como “o que é guerra?”, “por que as pessoas brigam?”. Difíceis de responder, não? Sim, eu faço as mesmas perguntas! Vi de perto muitos lugares em guerra e em todos eles me perguntei: por que as pessoas brigam? A resposta que arrisco é que elas brigam porque estão sofrendo. Quando há dor, geralmente associada a humilhação, a um sentimento de exclusão, elas se defendem. Quase todas as pessoas com quem você conversar numa disputa dirão que não estão atacando: elas dizem que estão se defendendo. Mesmo se estão atacando. Todo mundo tem essa construção interna de que tem a razão, de que está certo.
Quando um indivíduo entra numa briga, geralmente já criou uma história na cabeça. Quando eu trabalhava no conflito entre Estados Unidos e União Soviética, sempre ouvia: “Vamos brigar para sempre, é da natureza humana”. Mas, mergulhando na antropologia da guerra, passando algum tempo com sociedades muito simples, como os bosquímanos na África do Sul, os Semai na Malásia ou os guerreiros da Nova Guiné, descobri que, sim, a guerra faz parte da nossa natureza, mas tão potente quanto ela é a cooperação. Não somos guiados por genes que nos levam a inevitáveis disputas. Os suecos têm origem viking e são criaturas pacíficas. As guerras que já aconteceram entre franceses e alemães não impediram que hoje eles sejam aliados. A natureza humana é maleável.
Gostaria que você falasse sobre dinheiro, a energia em torno dessa ideia. As pessoas querem sempre mais, parecem nunca estar satisfeitas. Em negociações, muito frequentemente as pessoas estão brigando por dinheiro. E minha pergunta é: dinheiro para quê? Você não leva dinheiro com você quando a vida acabar, então qual o objetivo de querer mais e mais? Tenho visto muitas pessoas com grandes fortunas descobrindo que dividir o que têm traz mais resultados. Tenho um amigo em Nova York que era um bem-sucedido empresário da noite, com muito dinheiro, namorando as mais belas modelos, e durante um Natal em Punta del Este – grandes casas, aviões particulares – ele se sentiu desesperadamente infeliz. Foi trabalhar como fotógrafo voluntário num navio que provia serviços médicos na costa da Libéria. Acabou levantando fundos para construção de poços na África. O que ele diz é que se sentiu tão mais realizado... O dinheiro, muitas vezes, é uma ilusão.
Você está no Brasil para uma palestra sobre conflitos em empresas familiares. Conflitos em família são os mais difíceis que existem? Muitas vezes me perguntam o que é mais desafiador: conflitos em que as partes se conhecem ou entre estranhos? Respondo que a mais difícil negociação é entre pessoas que são próximas. Quando você soma as dinâmicas de um negócio, uma empresa, às dinâmicas internas de uma família, as questões do negócio – quem deve ser promovido, quem será o CEO etc. – se misturam a sentimentos do tipo “você sempre foi o preferido da mamãe”. É extremamente difícil mediar negócios em família. E, se você olhar para a política internacional, as guerras mais comuns hoje não são entre estados-nações: são conflitos internos.
O adversário está dentro de casa. Exatamente. Depois de 35 anos trabalhando nesse campo, vejo que a maior barreira para o sucesso de uma negociação não é o outro – “como é difícil tal pessoa, tal chefe, tal governante”. A grande barreira somos nós mesmos, e isso está ligado à tendência humana à reação. Só enxergamos a necessidade de brigar pelas coisas.
Qual sua experiência com conflitos entre casais? Quais as diferenças de sentimentos numa disputa entre um casal e uma negociação com adversários externos? Quando lidamos com uma situação de negócios, as bases são dinheiro, poder, prestígio, mas entre um casal a conversa tende a tocar em dores profundas, como a ideia de rejeição. Quanto mais você conhece aquela pessoa, quanto mais investiu naquele relacionamento, mais vulnerável fica à perda. Seu senso de identidade mudou: você é o casal. Vocês formaram família, vivem juntos, sua identidade está atrelada ao outro. As disputas nos negócios estão frequentemente relacionadas a uma diferença de interesses, mas a identidade é a camada mais profunda de um indivíduo, então a dor é muito maior quando isso está em discussão.
Um importante psicanalista brasileiro diz que homens e mulheres falam idiomas muito diferentes. Ele usa exemplos engraçados: quando um homem diz “que tal você pegar um táxi?”, querendo ser prático, a mulher pode entender como “eu rejeito você com toda a minha força”. O que você sabe sobre essas duas línguas tão diferentes? Há muito mal-entendido porque em geral as pessoas supõem que estão sendo claras, mas em comunicação nem sempre isso acontece: a outra pessoa pode não entender nada do que estamos falando. Para mim, a maior habilidade em negociação, ou melhor, na vida, é aprender a ouvir. Em geral achamos que estamos ouvindo, mas não estamos. Quando eu fiz parte de um grupo de pesquisadores reunidos para entender a crise dos mísseis em Cuba, que nos deixou muito perto de uma guerra nuclear, ficou claro que nenhum dos lados, russos e americanos, tinha ideia do que o outro estava dizendo. É a mesma coisa nos relacionamentos entre homens e mulheres.
E quem tem mais habilidade de ouvir, homens ou mulheres? Eu diria que em geral as mulheres tendem a ser melhores ouvintes e têm mais das características necessárias ao modelo mais moderno de gestão, em que ouvir e colaborar têm mais espaço do que a competição no estilo “macho”. Mas claro que ambos podem aprender a ouvir melhor. Acho que deveria haver cursos sobre isso nas escolas. Da mesma forma que aprendem geografia, as crianças deveriam ter aulas sobre ouvir. Porque não é exatamente fácil.
"É positivo para a paz que haja mais mulheres no poder"
O fato de haver mais mulheres no poder, negociando, muda seu trabalho? Está mudando. O mundo esteve em desequilíbrio por muito tempo, no que se refere a homens e mulheres, mas estamos na era em que as coisas estão se reequilibrando. Não quero dizer que ter mulheres negociando é por si o que torna tudo mais fácil – Margaret Thatcher foi uma das pessoas mais difíceis do mundo –, mas é uma tendência positiva, inclusive para a paz no mundo, que haja mais mulheres no poder.
No ano passado a Trip teve a chance de juntar o empresário Abílio Diniz e o lama Michel Rinpoche. De um lado, um homem muito rico de 76 anos, um sujeito forte, em meio a um enorme conflito nos negócios; do outro, um brasileiro de 33 anos que se tornou lama. E o lama, em certo momento, veio com esta definição: na maioria das vezes, para ganhar você precisa perder antes. Faz sentido, ainda que pareça paradoxal. Falando de mulheres e homens: quem é o vencedor em um casamento? É uma pergunta que não faz sentido de verdade, certo? Nos negócios, idem: quem está ganhando, você ou o cliente? Não é essa a pergunta. Se você for flexível, aprender a ouvir e ceder, vai ter melhores resultados. Há estudos sobre isto: pessoas que cedem mais ganham mais. Há a ideia de que é mais forte quem impõe e que só os fracos negociam. Mas uma nova lógica está mudando essa mentalidade.
Você vê o mundo progredindo nesse sentido ou estamos estagnados? Pode haver momentos de estagnação, mas é nesses momentos que somos obrigados a avaliar se algo não funciona, e vamos atrás de algo melhor. Estamos sendo forçados a superar o modelo em que as decisões ficam com quem está no topo e o resto das pessoas simplesmente obedece. As decisões hoje não são mais de uma figura que detém o conhecimento e o poder. Para mim, a revolução que precisa acontecer é a “revolução do nós”, em substituição à sociedade do eu, em que as necessidades individuais – o que eu preciso, o que eu desejo comprar etc. – se sobrepõem ao resto do mundo. É a hora de refletir: é possível um mundo em que todo ser humano tenha dignidade? Para os que veem nisso uma utopia, eu respondo como antropólogo: somos macacos que viviam em árvores e sobrevivemos ao longo do tempo aprendendo a nos comunicar, a cooperar. Por que não poderíamos aprender isso, a viver junto?
Como tudo isso se manifesta na sua vida pessoal? Você nunca briga? Bom, eu tenho uma filha de 15 anos que tem certeza de que me tem na palma da mão! E provavelmente é isso mesmo [risos]. Muitas vezes desisto de qualquer negociação e faço o que ela quer. Mas em geral tudo o que aprendi me ajuda na vida. Sempre aplico o que aprendi a cada negociação em situações diversas. Não estou dizendo que minha vida seja perfeita nesse aspecto, mas estou aberto a aprender.
Alguma vez já se envolveu em uma briga física? Sim... provavelmente na escola. Na Suíça estudei em colégio para meninos, então era preciso lutar pela sobrevivência. Mas faz muito tempo. Uma coisa que se aprende é a observar a si mesmo. A metáfora que gosto de usar sobre negociações é “imagine que você se afasta e vai para uma sacada, um lugar de calma, onde você assiste à situação de outra perspectiva”. É importante desenvolver essa capacidade de recuar e se perguntar: o que é realmente importante aqui? Meu ego? Que o meu jeito prevaleça? Ou resolver o conflito?
Quando a coisa esquenta numa conversa você sempre vai para essa sacada? Um exemplo: um tempo atrás estive na Venezuela atuando como a terceira parte no conflito entre Hugo Chávez e a oposição. Minha primeira conversa com ele estava agendada para as nove da noite, na sede do governo. Esperei 1, 2, 3 horas, até que à meia-noite um assessor apareceu e disse: “O presidente está pronto para vê-lo”. Eu esperava encontrá-lo sozinho, mas o ministério todo estava na sala. Ele perguntou qual era minha impressão da situação e respondi: “Senhor presidente, conversei com alguns de seus ministros e com líderes da oposição e me parece que estão fazendo progressos”. Ele respondeu: “O que quer dizer com progressos?”, e continuou, aos berros, a apontar como eu era ingênuo, não sabia nada etc. Quando me vi ali, acuado, vendo todo o trabalho de negociação indo para o ralo, lembrei do conselho de um amigo para situações difíceis: beliscar a palma da mão, que traz uma dor momentânea e o mantém alerta. Fiz isso, me pus na sacada imaginária e pensei: vai adiantar eu discustir?
Como acabou o encontro? Eu me mantive em silêncio enquanto ele falou por 30 minutos. Como eu não reagia, apenas assistia a ele, em silêncio, ele foi se desarmando, mudando o tom, até terminar a fala e perguntar: “E então? O que eu deveria fazer?”. Ali sua cabeça estava mais aberta, menos reativa, e respondi: “Senhor presidente, acho que toda a Venezuela precisa ir para a sacada”. Era dezembro e até as festividades do Natal estavam suspensas por causa da tensão. Sugeri uma trégua, um período de duas semanas em que os ânimos se acalmassem. Ele gostou, a conversa se desenrolou em um clima completamente diferente daquele início desfavorável.
Depois de tantas negociações importantes, que trabalhos você aceita hoje? Tenho me dedicado muito às questões do Oriente Médio, tido como um conflito impossível de solucionar. Para mim, não é. É difícil, mas não impossível. Ali, da mesma forma que falamos sobre casamentos, é imprescindível lidar com a noção de identidade. Pesquisando isso acabei chegando à história de Abraão, personagem bíblico que de alguma maneira inspirou as religiões formadas naquela região. A jornada dele e de sua família é a origem compartilhada por bilhões de pessoas unidas em torno do cristianismo, do islamismo e do judaísmo. Na pesquisa sobre isso tive a ideia de uma caminhada. Juntar uma experiência como a do Caminho de Santigo de Compostela, que faz enorme sucesso, com esse aprendizado. Foi assim que criei, há sete anos, o Caminho de Abraão.
Como está esse projeto? Já tivemos quase 4 mil pessoas fazendo o caminho, uma jornada que requer enorme diplomacia. Quando consegui apoio de investidores para refazer a viagem original de Abraão pela primeira vez, muitos nos diziam que seria impossível. Mas juntamos 25 pessoas, incluindo brasileiros como o rabino Nilton Bonder, e representantes de diferentes crenças. Trabalhamos com comitês nos diferentes países – Turquia, Síria, Jordânia, Israel – e em cada lugar que passamos explicamos o significado daquele caminho. Claro, é um percurso bem maior que o Caminho de Santiago, há uma logística. Mas esse trajeto é a melhor metáfora para o que buscamos: inclusão, compreensão, tolerância, união.
"É importante a capacidade de se perguntar: o que é importante aqui? Meu ego? Ou resolver o conflito?"
O Tibete é um caso interessante: depois de ter a terra invadida, templos destruídos, crimes hediondos e sem fim, eles falaram de paz, amor. Reações pacíficas como essa são muito raras, não? São exceções. Já tive a chance de estar com o dalai-lama e, quando ele fala da dor em seu coração, em seu povo, não demonstra animosidade em relação à China ou a qualquer agressor. É uma grande demonstração de poder. Há outros exemplos, como Gandhi, Nelson Mandela. E Martin Luther King, que representa a maior mudança de paradigmas em meu país, com o movimento por direitos civis. Com o discurso de paz, ele mudou uma sociedade inteira.
As religiões têm essas bases, amor, solidariedade. Mas, com o tempo, poder e dinheiro dominam tudo. O que acontece? As pessoas esquecem a essência dos próprios profetas fundadores de cada religião. Buda, Cristo, Maomé, Moisés... as ideias são distorcidas. Uma aula de semântica que nunca esqueci começava com a frase: “Lembrem que o mapa não é o território”. Em religião, o território é o que cada profeta vislumbrou a respeito de amor, conexão, universalidade. As pessoas fazem um mapa do território e então disputam quem tem o melhor caminho. Todos querem chegar à mesma montanha. Mas passam a vida brigando para provar que sua rota é melhor.
Qual o momento mais difícil de sua trajetória? Foi a disputa entre o governo da Rússia, então sob comando de Boris Iéltsin, e o da Chechênia. Trabalhando com os principais conselheiros de ambas as partes, organizamos um encontro em território neutro, Haia, e foi muito difícil. Havia dor, sofrimento em jogo. Foi muito frustrante ver a possibilidade de paz se esvaindo. O líder checheno acabou assassinado depois... O resultado todos sabemos, uma tragédia, nos anos 90. Quando veio o 11 de Setembro, descobriu-se que a porta de entrada de um dos rebeldes na Al Qaeda foi ter participado da guerra na Chechênia. Foi dali que ele foi recrutado para a missão nos Estados Unidos. Tudo está conectado: um conflito distante tem consequências em todo o mundo.
"Obama tem feito muitas coisas boas como negociador, mas precisa fazer movimentos mais fortes"
O que acha de Barack Obama como negociador? Sou um admirador de Obama e sei que ele recebe muitas críticas, particularmente no que se refere a negociações. Ele tem feito muitas coisas boas como negociador, tenta ouvir todos os lados, é paciente. É bem mais habilidoso do que o antecessor, George W. Bush, mas acho que precisa fazer movimentos mais fortes. Na verdade não precisa ser ele, é preciso engajar as pessoas à sua volta. Por exemplo, os conservadores têm muito medo de que uma presença mais forte do governo limite as liberdades conquistadas. Sem lidar com esse medo genuíno, não vai ser possível fazer progressos. Não dá para simplesmente tirá-los da conversa. Essa é uma tendência comum na política: igno-rar ou diminuir o outro lado, em vez de ouvir de verdade quais são seus sentimentos. Mas, quando as partes estão em uma mesma sala negociando, tudo é possível.
Mesmo a paz no Oriente Médio? Sim, eu acredito. Aconteceu na Irlanda! Se alguém dissesse 20 anos atrás que você poderia ter em um mesmo governo Ian Paisley, o mais intransigente líder protestante, e Martin McGuinness, ex-líder do IRA (o Exército Republicano Irlandês), as pessoas iam rir. E eles se juntaram. Se esses dois podem se unir e trabalhar juntos, todo mundo pode. As pessoas sempre partem do princípio de que uma cooperação é impossível, mas não é.
Créditos
Imagem principal: Kiko Ferrite