Visão do paraíso
Todas as pessoas de quem eu gostei nesta vida estarão presentes no meu paraíso particular
Um dos maiores pontos de venda de qualquer crença é o paraíso, tem para todos os gostos e maneiras. Peço licença, então, e venho compartilhar com vocês a noção do que, espero, um dia será o meu por toda a eternidade.
Em primeiro lugar, o meu paraíso vai ter todas as pessoas de quem gostei nesta vida e todas as outras que teria gostado de conhecer. Não pense que vai estar lotado. Serão entre 300 e 400 pessoas, o suficiente para lotar uma área que os olhos possam abraçar com tranquilidade e identificar os rostos presentes, sem perigo de esquecimento. Aliás, esquecer o nome de um companheiro no paraíso, esse, sim, um verdadeiro faux pas.
O mais importante é que vai ter uma orquestra completa. Tipo Count Baise ou Duke Ellington. O lugar será sempre uma festa, mas a música não será muito barulhenta. Vai ser suficientemente alta para alegrar o salão e, ao mesmo tempo, para poder registrar as pessoas falando, sorrindo, se cumprimentando, circulando entre as mesas redondas com toalhas brancas e pequenos arranjos de flores (rosas laranjas), iluminadas por velas que vão ter suas chamas ondulando por causa da pequena brisa que vai soprar de um mar não muito distante.
A iluminação vai ser suave, dourada, com luzes penduradas nas árvores. Vamos todos falar italiano, com muitos “ciao, come stai?” e “come sei bella”. Frases que vão deixar todos alegres e contentes. Como vai ser verão o tempo todo, estaremos bronzeados, saudáveis, as mulheres com vestidos longos e os homens enfiados em summer jackets (1).
Sorrisos, batons vermelhos, cabelos bem cortados e corpos perfumados. E todos vão poder fumar. Como já teremos passado para uma vida melhor, não vai ter perigo para nossos pulmões soltar baforadas (no paraíso, no dia seguinte, as roupas vão continuar cheirosas). E já que poderemos ter um cigarro na mão, por que não um gimlet (2) na outra? Porque ressaca é coisa terrenal e no paraíso não vai existir dor de cabeça. O jantar nunca vai ser servido, o que vai possibilitar que os copos e os pratos fiquem limpos, refletindo a alegria dos que estão em volta. Isso quer dizer que não vai ter garçons, ninguém vai ter de trabalhar ali.
Em segundo lugar, devo avisar que o paraíso não vai funcionar 24 horas. Os dias serão curtos, começarão lá pelas seis da tarde e terminarão às duas ou três da manhã. Serão como os dias de A invenção de Morel, livro de Adolfo Bioy Casares. Segundo Casares, Morel é um inventor que criou uma máquina que repete um momento determinado. Todos os dias ela reproduz esse instante porque a eternidade é um momento que se repete para sempre. E o que é o paraíso senão a eternidade?
VOLARE
À meia-noite em ponto, a música suave vai dar lugar ao mambo. Sim, mambo, com os irmãos Cachao, Tito Puente, Arturo Sandoval e, quem sabe, Xavier Cugat e Abbe Lane. Alguns dias até vão ter o Dean Martin, e os Gipsy Kings, com seu “Volare”, não vão poder faltar (3). Todos estarão presentes no palco, com seus sorrisos contagiantes, com todos os músicos da orquestra impecavelmente vestidos, com seus solos de trombetas, trombones e bongôs enquanto estaremos deslizando pelo salão, incansáveis, rodopiando na ponta dos pés.
A cada solo de trompete a memória vai ser inundada pelas lembranças das boas coisas que fizemos na vida (não se esqueça, se vamos estar no paraíso será por causa das boas ações de nosso passado), e os sorrisos serão mais eternos ainda. E, sim, o mambo será a música do paraíso porque ela carrega a intensidade que transforma a vida em pura energia (4). Energia cósmica feita para que a alma se multiplique em uma explosão de mil pedaços de alegria. Uma alegria que proporciona asas aos pés e que somente a consciência leve e a música são capazes de nos dar.
Em terceiro lugar, espero, de verdade, encontrar todos vocês lá um dia. Porém, não se esqueçam de um detalhe importante: as portas estão abertas para todos, mas alguma coisa temos de fazer para merecer o convite.
(1) Summer jacket é um smoking de verão. A calça e a gravata-borboleta continuam pretas, mas o casaco é branco.
(2) Gimlet é a bebida típica da costa oeste americana e a preferida de Philip Marlowe, o personagem de Raymond Chandler. Ela aparece no livro The Long Goodbye (1953).
(3) O ritmo para dançar o mambo é definido no manual de dança como “‘rápido-rápido-devagar’. O pé se move na segunda batida, na terceira o peso do corpo balança para o outro pé, voltando à posição original do pé na quarta batida”.
(4) Em Barcelona, há uma antessala do paraíso. Se chama La Paloma e fica no Carrer del Tigre, 27, no bairro de Raval. Ali, bandas de mambo, rumba e chá-chá-chá fazem a alegria de quem sabe flutuar sem tirar os pés do chão.
*J. R. Duran, 59, é fotógrafo e escritor www.twitter.com/jotaerreduran