Virtuoses Etíopes

Uma visão particular de dois gênios da música africana: Mulatu Astatke e Tlahoun Gessesse

por Henrique Goldman em

Em 2001, fui convidado para dar um curso de cinema para menores abandonados em Addis Abeba, na Etiópia. Desde a minha chegada, percebi estar num dos países mais estranhos do mundo. São 81 idiomas e centenas de dialetos para uma população de 70 milhões de habitantes. A Etiópia é o único país africano que nunca foi colonizado, com exceção de seis irrelevantes anos nos quais os fascistas italianos por lá se aventuraram. Jesus Cristo na Etiópia é negro. Os judeus também. Eu estava lá no dia 11 de setembro. A notícia do atentado ao World Trade Center nem sequer chegou a ser manchete do telejornal local. Parece que lá o que acontece nos Estados Unidos não tem muita importância.

Foi numa boate de Addis Abeba que ouvi Mulatu Astatke pela primeira vez. Foi para mim uma grande revelação. Mulatu é o único habitante de um mundo que ele mesmo criou. Para os poucos que o conhecem no Ocidente, ele é um dos grandes gênios da música contemporânea. Filho de uma família aristocrática, aos 17 anos foi mandado para a Inglaterra, onde deveria estudar engenharia. Mas, na swinging London da era pré-Beatles, abandonou a universidade e se entregou ao clarinete, ao piano e à percussão. Ele se enturmou com um bando de jazzistas caribenhos e se apaixonou pelo merengue e pelo chachachá.

No fim dos anos 60, voltou para a Etiópia com essa bagagem latina e começou a criar o seu próprio universo sonoro. Sua guitarra é meio Renato & Seus Blue Caps da nossa jovem guarda. Nos metais estridentes, ele tem um toque de jazz dos anos 70, da série Hawaii 5-0, do argentino Lallo Schiffrin. E a música tradicional etíope - o som gutural dos menestréis que cantavam para motivar os soldados antes da batalha - permeia essa geléia geral.

Foi dialogando com a voz absurda de Tlahoun Gessesse que a música instrumental de Mulatu encontrou sua vertente mais popular. Tlahoun foi - e ainda é - o porta-voz de todas as emoções políticas e amorosas do povo etíope. Cruzamento de Elvis Presley com Chico Buarque de Hollanda, Tlahoun foi, ao mesmo tempo, amado pelos adolescentes e odiado pelo regime do ditador comunista Mengistu, nos anos 70 e 80. A faixa "Sethed Seketelat" ("Ela vai embora, eu a seguirei"), da compilação Ethiopiques 17, é um divino apelo amoroso. Nela, a voz de Tlahoun é delicada e estranhamente fanhosa como a de um Caetano Veloso resfriado cantando "Ai Amor" com o falsete dolorido de uma moça abandonada.

Canto de batalha

Outro dia queimei um CD justapondo faixas do Mulatu Astatke com outras do grande compositor brasileiro Moacir Santos. Moacir partiu do Brasil e, como Mulatu, inventou seu próprio gênero musical. Percebi que os dois falam a mesma língua: o idioma universal dos outsiders, o esperanto dos que olham de fora para o próprio mundo.

Com esse CD no carro a todo volume, parei em um semáforo em Notting Hill. Vi uma moça com o cabelo verde fosforescente e o rosto coberto de piercings descendo do ônibus. Na sua camiseta estava escrito: "Eu era esquizofrênica. Hoje, nós estamos muito melhor". Isso tudo fez muito sentido pra mim, pois como diria Baudellaire, "a natureza é um templo de correspondências".

Créditos

Imagem principal: Marcio Simch

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