Um hipnotizador paraguaio parte para cima de você. Ele vem todo invasivo, com imposições de mão, voz grave e firulas auto-ritárias, mas o que sai da boca dele é diametralmente oposto à linguagem corporal. ?Você está com sono?, ele diz. E você fica.
O nome disso é ?estímulo paradoxal?, técnica comum de hipnose. A idéia é emitir dois sinais divergentes ao mesmo tempo. As palavras dizem uma coisa, a atitude diz o oposto. É uma tentativa de deixar o receptor confuso, aplicando um drible na consciência alheia para que a bola da mensagem passe por debaixo das pernas da razão. E penetre mais fundo. O ?estímulo paradoxal? é uma finta para baixar as defesas e iludir o senso crítico de uma pessoa. Ou de uma multidão. Hitler, para citar um exemplo, tinha no ?estímulo paradoxal? uma de suas técnicas preferidas ? para pregar atrocidades, usava bigodinho de palhaço, roupa de bufão e gestos de pateta.
Nem só de monstros históricos ou hipnotizadores paraguaios vive o estímulo paradoxal. A TV é um tiroteio de estímulos paradoxais. Em dezenas de programas há uma estranha dislexia entre o que é dito e o modo de dizê-lo. Há uma profunda dissonância entre a moral sendo defendida e as imagens sendo mostradas. Pega o Gugu, que encarna o queridinho da vovó, enquanto seu programa mostra carros blindados sob ataque, chacinas em presídios e casais se esfregando numa banheira. Ou pega a Xuxa, que usava roupa de chacrete para se comunicar com seres humanos que batem na altura da coxa dela. Ou o Ratinho, que esbraveja histriônico contra a mesma degradação humana que o sustenta.
Não que eu ache que todas as celebridades midiáticas se tranquem num quartinho secreto e à luz de velas conspirem com seus assessores, como quem diz: ?Vamos lançar estímulos paradoxais para conquistar o inconsciente coletivo?. É provável que a imensa maioria das personalidades incorpore a técnica de maneira intuitiva, não calculada. Ela faz parte do que a gente chama de ?dom?, dentro de um espectro que pode ir do talento à patologia. E o estímulo paradoxal é um artifício neutro, nem bom nem mau. Só depende das intenções.
Um corpo que cai
Lembrei desta velha técnica de hipnose porque quando comecei o texto estava à procura de uma palavra que resumisse a relação da sociedade de espectadores com a violência das ruas. O que me veio foi um conceito que também define um paradoxo: ?Vertigem?.
Outro dia, uma amiga minha veio contar que estava viciada no Cidade Alerta. E que um menino tinha atirado no pai porque pensava que era o vampiro da novela. Que os seqüestradores agora estavam usando caixotes de um metro quadrado como cativeiro. Que os assaltantes estavam arrancando as obturações de ouro das vítimas. Que ela estava assustada com tudo isso. Junto com o pavor, havia no olho da minha amiga um brilho fascinado. Não é novidade. Desde que o mundo é mundo, a violência é transformada em mitos sedutores, transmitidos de avô para neto. Violência vicia. Como o sexo, violência sempre foi campeã de audiência. Se com o passar dos anos as narrativas sexuais podem agora ser transmitidas sem culpa (que bom), a mitologia da violência quase sempre inclui uma moral de denúncia e autocondenação (que ótimo). É um paradoxo milenar, do Velho Testamento ao Exterminador do Futuro, de tablóides eletrônicos como o Linha Direta a narrações sofisticadas como Cidade de Deus, do WTC ao assalto da esquina.
Se os meios de comunicação não cansam de contestar a violência, também não cansam de mostrá-la. É louvável, mas acho que a pergunta certa para esses tempos bicudos é: qual o ponto em que essa narrativa pára de denunciar ou sublimar a violência e começa a incentivá-la? Óbvio que não tenho a resposta. Mas se a atração apavorada da minha amiga e de quase todos nós pela violência é absolutamente natural, a overdose veiculada pela mídia pode dar gás a uma espiral incontrolável. Se uma pessoa pode ter medo e atração pelas narrações de violência, uma sociedade inteira submetida a um bombardeio narrativo pode potencializar essa sensação e transformá-la em vertigem. Vertigem é temor e tentação. Medo e vontade de se jogar.
*Carlos Nader, 37, homem de mídia, não se deixa hipnotizar fácil. Seu e-mail é:
carlos_nader@hotmail.com
