Vida, identidade e futebol

Antropólogo explica de que forma jogadores em campo são capazes de representar uma nação

por Roberto da Matta em

Meu título acima fala de dimensões básicas do universo humano. Sem identidade não existimos e sem futebol não há — pelo menos no Brasil — o contraste entre amor e dor. Pois é por meio do futebol roubado dos ingleses que, nas Copas do Mundo, nos tornamos torcedores do Brasil e por um momento deixamos de ser ricos ou pobres, velhos ou jovens, paulistas ou cariocas, homens ou mulheres, nordestinos ou sulistas. Tal como ocorre no Carnaval e nos feriados santificados, o futebol põe em foco certas dimensões da vida, eclipsando outras. Desde o dia 12 de junho, então, deixamos de nos preocupar exclusivamente com nossos problemas para nos tornarmos “brasileiros”. Nossa inquietação central agora não é mais a decepção com a política ou a violência. É a “seleção brasileira” que, nos enlaçando, promove uma identidade intensa e exclusiva. Nosso foco não é mais o Brasil a ser consertado, mas um país que é, no momento em que escrevo este artigo, cinco vezes campeão mundial e que transformou o futebol no esporte mais popular do planeta. Na Copa, sua identidade é vista do modo mais agudo: em contraste e em relação com os outros.

Eis que, num mundo globalizado e aparentemente desencantado, o futebol, com suas incertezas, traz de volta todas as crenças e encantamentos. Além da esperança de um extraordinário hexa, ele comove pela ternura de finalmente ouvirmos de nós mesmos uma boa história. Somos virtuosos no futebol mais do que na nossa vida pública; nossos craques são resultado de talento e não da cor da pele ou de aparelhamentos políticos. O futebol é o emblema no qual cabem todas as nossas virtudes e, mesmo na derrota (Deus nos livre!), ele exalta as nossas virtudes. Na vida real, tememos a indiferença. No caso do futebol, somos obrigados, ou melhor, condenados a assistir à Copa! Ficamos hipnotizados. Aqui não há marasmo ou o clássico “eu não sabia”...

Adversários não são inimigos

Os motivos para esse interesse obrigatório são múltiplos. O primeiro é a nossa afinidade com esse esporte inglês, no qual perder e ganhar são duas faces de uma mesma moeda. No futebol não há vencedores ou perdedores absolutos. Nele, o campeão é sempre relativo.

O segundo é a experiência de justiça. Se no mundo real falta talento e abunda a corrupção, no estádio, as regras são claras e valem para todos. Não há como embargar juridicamente uma derrota. No futebol não conta interpretar as regras; o que vale é o jogo. Em outras palavras, Neymar Jr. não pode jogar por decreto, nomeação ou falcatrua. Ele joga porque é craque — é excepcional no campo, diante de adversários que, por sua vez, querem nos vencer, mas não nos destruir ou mandar para o inferno como infelizmente ainda ocorre no campo da política.

O terceiro é que o esporte precisa de adversários, não de inimigos. Adversários são irmãos solidários na disputa; não podem ser destruídos, pois são eles que legitimam o nosso triunfo. Essa conjunção fabrica a identidade atraente e duradoura. Se hoje sou perdedor, amanhã serei vencedor. As camisas são trocadas, mas o coração permanece batendo no mesmo peito.

Guerra sem mortos

Um terceiro ponto é o fato de o futebol ser praticado num espaço removido da vida rotineira. O que acontece no campo, nele fica. Tal foco aumenta o investimento emocional e a identificação porque o campo se divide entre “nós e eles”. Os times têm o seu espaço, seus símbolos e emblemas. Mas a base da nossa identificação são as escolhas realizadas fora da casa e da família. Escolher é básico para a individualidade e para a cidadania, e futebol exige escolher com lealdade. Eu, por exemplo, tive um pai autoritário que, como flamenguista, tinha que aturar minhas gozações quando o Fluminense vencia. No jogo, não éramos pai e filho, mas torcedores (ou cidadãos) de clubes de futebol escolhidos por simpatia individual e não por dever ou nome de família.

Finalmente, a Copa do Mundo ajuda a construir o tempo. Aliás, num sentido preciso, ela torna o tempo — que não pode ser visto, apanhado ou ouvido — algo concreto. De quatro em quatro anos, a Copa nos ajuda a perceber nossa juventude e velhice.

É uma disputa excepcional. Os times transformam-se em países com suas boas ou más lembranças históricas; mas todos jogam debaixo das mesmas regras. Símbolos sagrados vestem as pessoas e o hino obriga a esconder emoções. Africanos jogam contra europeus; e americanos contra asiáticos. Latino-americanos considerados preguiçosos e atrasados vencem países exemplares. Subitamente, compreendemos que todos são humanos. O futebol dissolve preconceitos, ressentimentos e milenares ódios étnicos e religiosos.

Pode haver algo mais sublime do que essa “guerra” sem mortos? Pode haver maior milagre do que assistir ao nosso imenso e diverso Brasil representado por jovens atletas, cuja única marca é o talento e não a corrupção, o sectarismo e a incompetência?

Roberto DaMatta é antropólogo, professor emérito da Universidade de Notre Dame, nos EUA, e professor titular da PUC-Rio.

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