Veneno e remédio
Ronaldo Lemos: em anos eleitorais os principais sites recebem avalanche de ordens judiciais
O Brasil vem reafirmando a liberdade de expressão como um valor central, mas, em anos eleitorais, como este, os principais sites do país recebem uma avalanche de ordens judiciais mandando remover conteúdos
Este ano de Copa do Mundo permeado por tantas expectativas e frustrações é um bom momento para retomar o livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik. Tomando por base o futebol, o livro faz um apanhado elegante das nossas forças e fraquezas possíveis. Gosto especialmente da análise do livro feita pelo amigo Pedro Meira, professor do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade de Princeton. Nas palavras dele: “Veneno remédio é uma obra poderosa que se abre para a história das interpretações do Brasil e, portanto, para a história das ciências sociais e da crítica literária e cultural do país no século 20. O futebol é uma espécie de matriz hermenêutica fundamental”. Para quem gosta de futebol ou de pensar o país, fica a dica.
Uma das ideias centrais que vêm à cabeça com a lembrança desse texto tão oportuno é o debate contínuo sobre como nossas principais qualidades podem se tornar também contraditórias, convertendo-se em defeitos. Não faz sentido entrar em debate tão complexo aqui em texto curto. Mas aproveito para adicionar meus dois centavos de bitcoin na discussão. Neste ano que é também de eleições, vamos nos deparar novamente com a batalha para definir os contornos da liberdade de expressão no país.
Sobre o tema, a notícia é em princípio boa: nosso país vem reafirmando a liberdade de expressão como um valor central (como fez, por exemplo, aprovando o Marco Civil da Internet). A postura do Brasil contrasta positivamente com a de outros países, incluindo democracias como a Turquia ou os demais BRICs, onde esse direito já foi ou está sendo deixado de lado. Apesar disso, há uma crise silenciosa da liberdade de expressão em curso. Essa dubiedade (veneno/remédio) quanto à liberdade de expressão manifesta-se especialmente durante o período eleitoral. É nessa época que os principais sites do país recebem uma verdadeira avalanche de ordens judiciais mandando remover conteúdos. Isso preocupa especialmente porque a rede tornou-se central para a nossa esfera pública.
SEM PATERNALISMO
Boa parte dos pedidos de remoção diz respeito a conteúdos considerados “agressões ou ataques”. Só que a lei não define claramente o que seriam “agressões ou ataques”. Nem diz se a análise deles caberia à Justiça Eleitoral ou à Justiça comum. Sem critérios definidos, cada juiz dá sua interpretação. E tudo é decidido com base em liminares, ordens judiciais em que apenas uma parte é ouvida. O resultado é uma chuva de decisões mandando remover massivamente manifestações ocorridas durante o período eleitoral. Claro que ilícitos (como calúnias) devem ser sancionados. Mas a questão é que, durante o período eleitoral, acabam sancionados também um grande número de conteúdos que são lícitos.
Definir o balanço entre mais esse veneno/remédio, reafirmando a liberdade de expressão, é desejável. O desequilíbrio atual interfere até mesmo na soberania do eleitor, que acaba sendo tratado de forma paternalista, como se não tivesse condições de discernir sobre o que vê. Discursos problemáticos devem ser respondidos com mais discursos, não com menos. Repressão, remoção e supressão são claramente veneno, não remédio.
*Ronaldo Lemos, 37, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu Twitter é @lemos_ronaldo