Velozes e furiosas
Espécimes raros na fauna do trânsito paulistano, bikegirls enfrentam predadores com profissionalismo
Ter seu novo emprego desaprovado pela sua mãe não é exatamente incomum. Mas quando ela prevê, mesmo em tom de brincadeira, que o novo ofício vai derrubar sua expectativa de vida para não mais do que um ano, talvez valha a pena refletir. Não foi o que fez a paulistana Grazielli Barroso.
Mas o que ela faz da vida, para ouvir da própria mãe comentário de tamanho humor negro? Trabalha em uma mina de carvão? Foi enviada ao Afeganistão para evangelizar talibãs? Nada disso. A garota de 23 anos é uma das pouquíssimas bikegirls em atividade em meio ao apocalíptico trânsito da capital paulista. Junto com a colega Catarina Araújo, de 26 anos, ela integra a equipe da Carbono Zero Courier, empresa de entregas expressas que usa apenas bikes para prestar o serviço. Para colocar em prática essa atuação de viés ecologicamente correto, a Carbono Zero conta com as pedaladas de um time de cerca de 30 entregadores que tem as duas garotas como únicas exceções ao mar de pernas cabeludas que partem da rua Bela Cintra, na região central de São Paulo, para atender clientes em diversos destinos.
Mas Grazielli e Catarina não fogem à regra apenas entre os companheiros de equipe. Oficialmente, elas são as duas únicas bikegirls trabalhando em empresas de entregas expressas da capital paulista. Isso porque as duas únicas concorrentes da Carbono na cidade – a Giro Courier, da Vila Olímpia, e a Ferrari Courier, do Cambuci – não contam, no momento, com uma só mulher entre suas dezenas de bikers. Ou seja, embora possam existir garotas atuando informalmente ou por empresas menores, Grazielli e Catarina representam uma rara dose de graça feminina no ainda majoritariamente masculino universo dos que ganham a vida sobrevivendo ao trânsito.
“Pouco tempo depois que aquela ciclista foi atropelada na Paulista, ouvi de um taxista o seguinte comentário: sua amiguinha já foi, cuidado que a próxima pode ser você”, conta Grazielli
E graça é o que não falta para as duas bikegirls da Carbono Zero. Seja Grazielli com o seu discreto moicano, seja Catarina com suas quatro tatuagens, elas com certeza chamam a atenção da marmanjada alheia por onde passam. Vale, porém, não confundir graça com docilidade caso você cruze com uma delas. Simpáticas e atenciosas na hora de falar sobre aquilo que fazem, Grazielli e Catarina são bravas quando é necessário. Ou seja, em se tratando do trânsito paulistano, quase sempre. “Pouco tempo depois que aquela ciclista foi atropelada na Paulista, ouvi de um taxista o seguinte comentário: sua amiguinha já foi, cuidado que a próxima pode ser você”, conta Grazielli. Para ela, taxistas e motoristas de ônibus ainda são os mais resistentes a uma convivência pacífica com os ciclistas. O que não quer dizer que, nas pouquíssimas vezes em que há uma ciclovia no caminho, a bikegirl fuja do asfalto. “Eu faço questão de pedalar na rua. Os motoristas precisam aprender que bicicletas são tão parte do trânsito quanto eles”, argumenta Grazielli, mostrando sua faceta cicloativista. Uma postura natural para alguém que pedala por São Paulo desde criança e que não abriu da mão da “magrela” como meio de transporte nem depois de ganhar uma placa de metal e muitos parafusos na perna esquerda depois de bater – de bike – em um carro quando tinha 17 anos.
Fraturas e afins, aliás, estão longe de amendrontar as bikegirls. Catarina também já sofreu uma, no pulso de uma das mãos, em um acidente no ano passado. Mas, assim como a colega, ela encarou as dores como um incentivo a mais para continuar a enfrentar os obstáculos que a capital paulista ainda impõe aos ciclistas. Afinal, de ruas esburacadas, passando por ciclovias que margeiam rios fétidos a pedestres sem noção e motoristas sociopatas, é de se convir que encarar a malha viária paulistana montado em uma bike requer, antes de tudo, coragem.
“Parece até que sirvo como uma espécie de exemplo. Muitas mulheres, quando me conhecem, dizem que vão comprar uma bike e começar a pedalar”, diz Catarina
No caso de Grazielli e Catarina, ser mulher neste mundo infestado de machos com uma ideia pouco sofisticada de civilidade impõe, algumas vezes, percalços a mais. Escutar gracejos, claro, acontece, e Catarina já foi até presenteada, por um motoboy, com um tapa em um local do corpo onde normalmente só pessoas muito íntimas estão autorizadas a encostar. Mas ela conta que é na hora de fazer a entrega para um cliente que fica evidente o quão exótica ainda é uma bikegirl. “Às vezes fico até sem graça. Chego num lugar pra fazer uma entrega e todo mundo comenta, até levanta para vir me ver”, conta Catarina. “Parece até que sirvo como uma espécie de exemplo. Muitas mulheres, quando me conhecem, dizem que vão comprar uma bike e começar a pedalar”.
Nem sempre, entretanto, as colegas do sexo feminino veem as bikegirls como um modelo a ser seguido. Catarina conta que já foi dispensada por um cliente porque teria despertado o ciúme da trupe feminina local. Mulheres que trabalhavam na empresa atendida não teriam gostado de ver aquela garota suada, usando o minimalista traje de ciclista e às vezes até suja de graxa, despertar a atenção dos homens que lá trabalhavam. Afinal, eram elas, e não Catarina, que passavam longos minutos se produzindo antes de partirem para o trabalho.
Grazielli e Catarina chegam a pedalar até 50km em um dia. Suas entregas incluem lugares tão distantes do Centro quanto Pirituba (Zona Norte), Vila Ema (Zona Leste) e Santo Amaro (Zona Sul), em percursos que incluem vias perigosas até para quem se dispuser a encará-las a bordo de um tanque de guerra. Mas medo é, aparentemente, uma palavra que as duas se recusam a grafar em seus vocabulários. Tal postura pode deixar aflito quem a vê de fora, mas é, ao final, necessária nesta hercúlea tarefa de fazer de São Paulo uma cidade de verdade.