Um paralelo entre escravidão e sistema prisional
Mais de dois anos após ter deixado a prisão, o colunista encontra a diferença entre liberdade e libertação
Os escravos chegavam ao Brasil depois de dura viagem de aproximadamente quatro meses presos nos porões dos navios negreiros. Cerca de 50%, ou mais (não havia IBGE para precisar), morriam no percurso. Já dá para imaginar como era a viagem.
Fui obrigado a fazer várias viagens da penitenciária de São Paulo para as penitenciárias de Presidente Wenceslau, Prudente e Bernardes. Era o terror. Presos dentro dos cofres de aço dos primitivos “rabecões”, nós estávamos sempre em mais de dez pessoas, num espaço que caberia, no máximo, meia dúzia.
Rodávamos por 11 ou 12 horas, sem parar para nada. O sol fritava, os ossos doíam de tanto se chocarem contra os bancos e paredes de aço. Não havia como fazer as necessidades físicas. Era preciso segurar, dar nós nas tripas. Não morria ninguém (a não ser assassinado), mas o grau de sofrimento era tão elevado que dá para ter uma idéia de como seria em um navio negreiro.
Os africanos chegavam à Bahia. De Salvador, eram distribuídos para as fazendas de cana-de-açúcar da colônia toda. As meninas novas eram escolhidas pelos escravocratas para sacanagem. Segundo Darci Ribeiro, essa preferência nacional por bunda tem aí suas raízes antropológicas. Os demais eram vendidos e comprados para o trabalho, de sol a sol, nos serviços mais rudes da lavoura. Não possuíam identidades, nomes. Eram somente escravos.
A Igreja de então discutia se o escravo possuía alma. Os maiores engenhos do Nordeste, aqueles que possuíam mais escravos, cerca de 800, eram dos jesuítas. Nas fazendas, com o passar do tempo, os escravizados, como todo homem, faziam cultura. E assim, aos poucos, foram se destacando aqueles que melhor usavam inteligência e capacidade. Alguns se tornaram mestres da cura do açúcar; outros boiadeiros, ferreiros, mucamas, barbeiros. Havia até a figura do capitão-do-mato, um negro que servia ao senhor de escravos para caçar outros negros fugitivos e castigá-los no tronco a chicotadas. Com muito sacrifício, construíam suas identidades. Agora já eram alguém. Tinham um nome relacionado ao trabalho.
Na história do ciclo do ouro, vários escravos conquistaram suas alforrias com o trabalho extra que executavam. Alguns se dedicaram a construir igrejas e assim arrecadar capital para conseguir a liberdade de seus irmãos africanos. Um escravo custava entre meio e um quilo de ouro. Uma luta altamente dignificante. Havia os brancos que também lutavam pela causa da abolição da escravidão. Alguns, de tão radicais, chegavam a tomar de assalto as fazendas para liberar os escravos. Mas foi a atuação do negro na Guerra do Paraguai (capítulo nebuloso e ainda não definitivamente explicado da história do Brasil), que decididamente pôs fim à escravidão. Foram tão valentes e corajosos que, depois do fim da guerra, o exército recusou-se a prendê-los ou caçá-los. Não tendo quem os capturasse, acabou a escravidão no Brasil. A assinatura da Lei Áurea foi apenas uma formalidade para legalizar a multidão de ex-escravos foragidos nos quilombos ou escondidos nas cidades.
Conquistei minha identidade depois de sofrida e longa caminhada por mais de 30 anos na prisão. Cheguei como qualquer pessoa aprisionada. Era apenas um preso, como eram os escravos. Aos poucos, por meio da educação que assimilei nos livros, no trabalho de escriturário e depois no de professor, construí minha libertação. Não é apenas liberdade. Isso é pouco. Não é quando abrem o portão e colocam o preso na rua que este estará livre. Liberdade tem a ver apenas com espaço, ir e vir. O que o egresso necessita é livrar-se da cultura criminal que o impregnou na cadeia. O desejo de liberdade não é suficiente. É preciso trabalhar duro dentro de si. Construir moral e ética que dêem consistência e suporte à vontade de conviver e participar da existência com outras pessoas. Isso é libertação, algo maior e muito mais importante. Não estou disposto a abrir mão dessa minha conquista por nada neste mundo. Não sou metade em busca da metade que me falta. Sou inteiro, embora, paradoxalmente, incompleto. Divido-me às vezes. Sei pouco sobre a profundidade de minhas fraquezas e limites, mas tenho certeza de que somente eu posso ultrapassar tais limites e fraquezas. Acho que tentar a libertação passa necessariamente pelo esforço violento de compreender o que me limita.
A existência aqui fora exige mobilidade contínua e crescente competência para a vida pessoal. São exigências totalmente em desacordo com a vida prisional, que é parada, rotineira e absurda. Sim, absurda porque impossível. Preso sobrevive e resiste como pode à opressão, ao que está submetido.
De qualquer maneira, estou aqui. Tenho minha identidade, profissão, sou pessoa como as outras. Estou convivendo, produzindo e até sendo feliz, às vezes. Falo sobre essas coisas todas do passado porque não posso esquecê-las. Sei que não é mais possível voltar à estrada que já transposta. As pegadas deixadas agora fazem parte do próprio caminho. Mas esquecer pode significar repetir os mesmos erros já cometidos. Já errei demasiadamente para dar essa chance para o azar.