Um, dois, supera!
Ilha Point, a academia carioca que reivindica o título de maior salão de musculação do país
Os personagens e a rotina da Ilha Point, academia da zona norte carioca que reivindica o título de maior salão de musculação do Brasil
Lá o som ao redor é uma mistura de batidão eletrônico, esteiras rolando, respiração ofegante, ruídos de conversa condensados e ferro batendo contra ferro. De vez em quando, risadas de adultos, gritos de crianças e exclamações como “Vambora, força!” sobressaem nessa amplificada massa sonora. Luzes frias iluminam o cenário tomado por espelhos e telas de TV, onde centenas de pessoas dedicam-se a lapidar corpos de diversos portes, cores e idades. Estamos na maior sala de musculação do Brasil – é o que professa um cartaz na entrada da academia Ilha Point, na Ilha do Governador, zona norte do Rio.
O maquinário de forjar músculos e suprimir gorduras que se encontra por ali é de cair o queixo quadrado de qualquer marombeiro: são 80 esteiras, 60 bicicletas e mais de 200 aparelhos de puxar ferro. Uma piscina semiolímpica, salas de aula, um salão de beleza, uma clínica estética e lojas de roupas para malhar e suplementos alimentares complementam o complexo. Só a sala de musculação ocupa uma área de 2.500 metros quadrados, distribuídos em dois andares de um edifício com ares de antiga fábrica, que poderia ter virado igreja evangélica ou filial de universidade particular, como outras construções similares na região. Acabou convertido em um templo dos corpos torneados, um monumento à obsessão dos cariocas pela forma e, ainda, para alguns, o símbolo de uma grande transformação no cada vez mais disputado mercado fitness brasileiro.
Vamos por partes, como o bom treinador, que sabe que é preciso trabalhar cada grupamento muscular de uma vez. Em primeiro lugar, o que faz o ambiente de uma academia são as pessoas que a frequentam.
Morador de Ramos, também na zona norte, Julio Cesar Moura, 38 anos, é um dos personal trainers que trabalham ali com uniformes negros, que os diferenciam dos demais professores. Além da Ilha Point, ele dá expediente em mais duas academias, uma na Penha e outra em Jacarepaguá. Dizendo-se um “pezão”, cruza o subúrbio de ônibus e van, encarando o verão mais quente das últimas décadas. A zona sul e a Barra, meca das academias cariocas, não fazem parte do seu roteiro.
Carismático e hiperativo, Julio Cesar gosta de ser chamado de Personal Boladão. O apelido, ele explica mexendo a cabeça e balançando as pernas sem parar, deve-se à determinação incansável com que busca motivar os alunos. Na Ilha Point, Boladão (atendendo ao seu pedido, só o chamaremos pelo nome artístico) treina sete mulheres e um homem. Ganha em média R$ 50 por hora e repassa à academia R$ 100 por mês por cada aluno.
É preciso estar atento e forte: caso você tenha a honra de um dia integrar o Team Boladão, deve estar preparado para receber diariamente mensagens SMS como: “Nada de pizza depois do Fantástico, hein?” ou então: “Boa noite. São 11 horas, eu já estou dormindo. E você?”. “Hoje, o mercado exige diferenciais. Os meus são saber motivar o aluno e me manter conectado, mesmo fora da academia. Eles sabem que estou sempre pensando e cuidando deles”, explica o personal, esperando sentado por uma aluna que lhe deu chá de cadeira.
Lambaeróbica
A primeira aluna só foi chegar por volta de onze da manhã. Era a comissária de bordo Camila Vieira, antiga amiga que resolveu experimentar o método Boladão de exercício. Ex-funcionária da Web Jet, incorporada pela GOL no ano passado, Camila continua recebendo salário por determinação judicial, embora não tenha voado nos últimos meses. Ela trata de aproveitar o tempo livre correndo atrás do prejuízo na academia: “Fiz uma preparação de quatro meses só para voltar à academia, não queria chegar aqui parecendo uma velha. Agora estou alcançando o ritmo”, conta a aeromoça, enquanto descansa um pouco.
As mulheres, 60% do público da Ilha Point, são maioria em aulas com nomes em inglês, como Dance mix, Power lifting e Body balance
Quando a atividade recomeça, Boladão apresenta outra de suas marcas registradas: os lemas motivacionais. “Um, dois, supera! Três, quatro, cadê? Não tô vendo! Cinco, seis, rompe! Sete, oito, rompe! Rompe! Nove, supera, vamos lá! Dez! Largou o peso e correu pra esteira”, arremata, e sai correndo na frente com o tablet no qual monitora o rendimento do alunos.
As mulheres formam cerca de 60% do público da Ilha Point e são maioria também em aulas com nomes em inglês como Dance Mix, Power Jump, Power Lifting e Body Balance. Em uma das salas, umas 30 mulheres e apenas dois homens pulam em pequenas camas elásticas ao som de um inusitado rock’n’roll. O triatleta e entusiasta da malhação aeróbica Luiz Felipe Aguiar comanda a aula, incendiando a turma com gritos de: “Força, vamos dançar!”. Em salas ao lado, a lambaeróbica – verdadeira fênix das academias – e o spinning correm soltos.
Por volta de sete da noite, a Ilha Point está em seu horário de pico, com esteiras tomadas e uma multidão correndo, malhando e conversando. Crianças brincam em um parquinho indoor, enquanto os pais trabalham... o corpo. No andar de cima, os marombeiros da pressão revezam nada menos do que seis supinos. Alguns deles são militares que servem na base aérea do Galeão, a poucos metros da academia. É o caso do capitão de infantaria da Aeronáutica José Luiz Gondin. Com seus 46 centímetros de bíceps e sua barba modelada (“Agora posso usar, pois estou de férias”), Gondin é um dos frequentadores mais assíduos da Ilha Point, malha de domingo a domingo, geralmente duas vezes por dia. “Tenho dois objetivos: chegar bem aos 100 anos e poder comer todas as besteiras que quiser”, diz o sarado militar de 49 anos.
Tigresa do funk
Nas paredes verde-menta da Ilha Point estão colados cartazes com propagandas de campos de paintball, tratamentos estéticos a dar com pau, mercados de verduras e uma hipercalórica cadeia de pizzarias. Destaca-se em meio a essa miscelânea o rosto do cirurgião plástico Gustavo P. Vaitsman, cujo anúncio se repete em uma página inteira na revista da academia. Encontramos o doutor Vaitsman, que tem consultório nas cercanias, malhando com seu personal em uma tarde de segundafeira: “Tanto eu como a academia temos como público-alvo pessoas que se preocupam com beleza e saúde. Hoje, somos parceiros: eles me indicam para os alunos interessados e eu recomendo para cá pacientes que precisam fazer exercício”, explica com naturalidade o médico, que já foi campeão brasileiro de iatismo e hoje transpira para entrar em forma.
Outro rosto conhecido na Ilha Point é o da modelo Mariana Souza, musa da escola de samba União da Ilha, ex-dançarina de Mr. Catra e, atualmente, vocalista do grupo As Tigresas do Funk. Diariamente, ela desfila por ali suas formas generosas vestidas em tons vibrantes, adornada por pulseiras e brincos de ouro e levando a estrela de Davi tatuada no antebraço. A responsável por suas formas é a inseparável personal trainer Aline Oliveira, que só à noite pode se dedicar ao próprio treino. Ossos, ou melhor, músculos do ofício: além de instrutora, Aline é campeã carioca, brasileira e sul-americana de fisiculturismo, ou body fitness, como prefere chamar. Atualmente, treina para o Arnold Classic, competição internacional que ocorrerá no Rio, em abril. “Eu respiro esta academia. No início, o pessoal não entendia muito bem o que era body fitness, achava que era só bomba. Hoje, recebo muito apoio.”
Geração Cocoon
Por volta das 17 horas, três vezes por semana, Maria Auxiliadora Trajano, a Dodô, aparece religiosamente no salão de ginástica. Com 74 anos, é uma das decanas da academia. Piadista, gosta de dizer que estacionou nos 35 e que malha para não enferrujar. Na verdade, Dodô convive com uma fissura crônica na medula, fator de risco para a leucemia, e assegura que a ginástica tem sido fundamental em sua luta para não sucumbir. Obstinada, em março pretende renovar a matrícula por mais dois anos, aderindo ao mais extenso plano de fidelização da academia. “Desde que comecei a malhar, fiquei viúva e aconteceu muita coisa, mas continuo aqui, caminhando meus 2 quilômetros por dia. Ajuda a arejar a cabeça”, explica Dodô, aposentada por um escritório de advocacia e ex-presidente do clube de escoteiros 77 Uirapuru, cujo lema, “Sempre alerta e obediente”, faz questão de repetir.
"O mercado exige diferenciais. Os meus são saber motivar o aluno e me manter conectado, mesmo fora da academia"
O caso de Dodô ilustra bem duas estratégias contemporâneas das academias: fidelizar o máximo de clientes e atrair o crescente público da chamada melhor idade. “Estamos assistindo a um fenômeno que gosto de chamar de Geração Cocoon, gente de 70, 80 anos que quer continuar vivendo e fazendo esporte. As academias precisam aprender a atrair e lidar com esse público”, revela o empresário paulista Waldyr Soares, 72 anos, presidente do Instituto Fitness Brasil, malhador contumaz e espécie de think tank do ramo no país. “Sou um dinossauro nesse negócio e só sei que é o melhor momento que já tivemos.”
Recentemente, Waldyr visitou e malhou em dois extremos do mercado, a luxuosa Body Tech, do Shopping Eldorado, em São Paulo, cuja mensalidade chega a R$ 500, e uma recém-inaugurada academia a preços populares no bairro de Cocaia, na periferia paulistana, frequentada por caminhoneiros, empregadas domésticas e motoboys. Ficou impressionado com a sofisticação da primeira e com a quantidade de alunos da segunda. “O mercado de fitness e bem-estar já vinha crescendo muito no país com foco na classe A. De uns dois anos para cá, com o aumento da classe C dentro do novo modelo econômico brasileiro, a coisa explodiu. Agora assistimos à consolidação de grandes grupos no país e à popularização das academias através de cadeias low price, que estão se espalhando rapidamente”, observa.
A última grande pesquisa realizada pelo Sebrae, em 2011, demonstrou forte predominância da Classe B na Ilha do Governador, um segmento da classe média menos alardeado ultimamente. São os principais frequentadores da Ilha Point, onde a mensalidade custa R$ 240, mas cai para R$ 129 no plano de 24 vezes. Segundo dados próprios, atualmente malham por ali 5.500 sócios. A academia existe desde 2007, mas só no ano seguinte tornou-se filial do grupo Proquality. O novo salão, com 40 esteiras novas, foi inaugurado em novembro do ano passado e faz parte de uma estratégia para atrair até 10 mil alunos antes do final do ano.
O grupo Proquality nasceu modestamente em 1994, em Pinheiral, município de apenas 22,7 mil habitantes no interior do estado do Rio. A primeira academia tinha apenas 60 metros quadrados e foi um presente dado pela mãe ao jovem calouro de educação física Valério Ramalho. “Eu era, ao mesmo tempo, o estagiário e o dono. Tínhamos só 50 alunos e fomos descobrindo sozinhos como se faz uma gestão”, lembra Valério.
“Hoje, o mercado só atende 4% da população do país. Nos próximos anos, chegaremos a 17%”
De Pinheiral, onde ainda vive, o empresário expandiu negócios para Volta Redonda – hoje QG do grupo –, Barra Mansa e, finalmente, instalou seus supinos no Rio. Hoje, é dono de 13 filiais, com preço e luxo variados para malhadores do abastado Leblon à mais humilde Vila Isabel, do lendário compositor Noel Rosa.
Aliás, caso vivesse em nossa época, o raquítico e boêmio poeta da Vila seria a mais perfeita antítese da geração bodybuilding. Mas mesmo nos distantes anos 20 já encontramos indícios da paixão carioca pelos corpos torneados. Em “Tarzan (O filho do alfaiate)”, Noel cantou a história de um magricela-filé-de-borboleta, como ele, que arrancava suspiros e distribuía autógrafos na praia graças a um fantástico terno musculoso, uma “armadura de casimira dura” tecida pelo pai. Como a alternativa ao fitness imaginada pelo compositor nunca pegou, o Rio continua sendo a capital nacional do culto ao corpo.
Há quase duas décadas no ramo, Valério realiza estudos de mercado para garimpar novas áreas promissoras na cidade. Ele pergunta até ao repórter se conhece algum local interessante para investir em um bairro da zona sul. O empresário está seguro de que o Brasil verá o número de academias multiplicar nos próximos anos, enquanto o mercado fitness se adequará às tendências de concentração da economia atual: “Hoje, o mercado só atende 4% da população do país. Nos próximos anos, chegaremos a 17%. Mas, de agora em diante, só haverá espaço para as cadeias. Teremos academias de grande porte, como a Ilha Point, e o fim das academias médias de bairro, que vão virar pequenos estúdios ou desaparecer.”
Homem sarado, capitalismo selvagem.