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Turismo acidental

POR CARLOS NADER*

A ciência está descobrindo o que Jesus Cristo, Timothy Leary, Eduardo Coutinho e Dadá Maravilha já sabiam bem: a realidade é a maior das viagens. Não é muito outra a conclusão de um estudo realizado este ano na Harvard, pelos psicólogos Donna Addis e Daniel Shacter. Trabalhando com um equipamento de ressonância magnética funcional,
que mapeia o cérebro enquanto ele funciona, os pesquisadores perceberam que as áreas ativadas pelo uso da memória eram basicamente as mesmas que eram ativadas pelo exercício da imaginação.
É estranho que o processamento mental do passado seja realizado pela mesma zona de neurônios que imagina o futuro? Talvez para a ciência chamada exata. Na história de um pensamento humano mais amplo, é corriqueira a idéia de que o futuro está contido no passado. E vice-versa. A mistura de tempos é algo que foi expresso, muitas vezes, por poetas
como Maomé e profetas como T. S. Eliot. E o que dizer do fato de que o passado é fato, e o futuro não? O fato de que o passado seja supostamente algo que existiu, existe na memória, e o futuro seja considerado uma especulação da mente? Estranho tratá-los no mesmo nível? Não para poetas como Buda ou profetas como Guimarães Rosa, para quem realidade
é ilusão, realidade é viagem. E vice-versa.

SUA VIAGEM VAI ACABAR COM A REALIDADE
Nos últimos anos, a neurociência cognitiva tem discutido muito essas questões. O estudo da Harvard não é o único. Pesquisadores como V. S. Ramachandran ou Antonio Damásio têm produzido reflexões interessantes sobre a nossa percepção daquilo que existe, inclusive nós mesmos. O que é a consciência? A realidade é percebida ou criada? Há uma
diferença essencial entre imaginação e paisagem? São questões presentes também na física, desde sempre, é verdade, que ganharam agora um fôlego renovado com a teoria de Jonh Wheeler de que o Universo seria feito de informação e de que o bit seria sua menor partícula. A virtualização promovida pela mídia também conspira nessa direção. Para uma mente moldada pela internet, hiperalimentada pelo YouTube ou pela Nintendo, não é tão alienígena a idéia de que o tempo e o espaço, ou seja, a realidade, a vida mesmo, sejam uma ilusão subjetiva. Tanto faz se em filme ou em fato, imaginação ou memória.

O interessante é que, enquanto uma ponta da ciência questiona a realidade, outra ponta esteja empenhada em salvá-la. Estou obviamente falando do “meio ambiente”, um dos nomes, uma das faces do real. Pensei nisso quando, ao mesmo tempo que lia sobre neurociência, caiu na minha mão virtual um artigo também tangente ao tema desta Trip,
Viagem. Era um estudo sobre o aumento na produção de jatinhos. Li o artigo já sabendo que avião a jato é dos maiores poluidores do planeta, num nível desproporcional aos passageiros que transporta. Pois bem. Ou pois mal: a notícia catastrófica da vez era a de que a frota de jatinhos deve, em dez anos, passar de 2,5 mil para no mínimo 13 mil unidades, com alguns modelos vendidos a US$ 2 ou 3 milhões. Assim, o bilionário saudita fica com o Airbus e o milionário da esquina vai poder comprar um audizinho aéreo, individualizando de vez um espaço de transporte até aqui coletivo. E dando sua generosa contribuição ao fim do mundo melhor, que estamos construindo para os nossos bisnetos.
Fim do mundo? Por que não? Bem mais espantoso que o aumento dos jatinhos é o fato de tanta gente ainda ver alarmismo nos alertas ambientais. Não precisa ser nenhum Bob Dylan, nenhum Thom Yorke, para perguntar: quantos estudos mais sobre o fim da fauna marinha em 2050, sobre o elo entre o câncer de mama e os pesticidas ou sobre ligação de distúrbios mentais infantis ao excesso de vacinas serão necessários para entender que o aquecimento global é apenas a face mais visível de um desastre ambiental já em curso, apocalíptico a
médio prazo, sim, causado por um sistema produtivo inconseqüente? É lindo que, ao mesmo tempo que estamos destruindo aquilo que nos constitui, a neurologia e a física apontem para a desmaterialização da realidade. Num mundo em que a coisa vale cada vez mais que o ser, alguma desmaterialização é bem-vinda. E quem sabe poderemos um dia fazer um outsourcing da alma para bancos de cérebros blindados, imunes ao ambiente, que se relacionarão com ajuda de algum cruzamento de The Sims com Second Life 10.0? Sem ironia,
essa possibilidade me anima muito. Mas, nesse meio-tempo, ainda precisamos da realidade como a conhecemos hoje. Não necessariamente materialista, mas material, carnal, atual, factual. Inclusive para viajar. Dentro da cabeça e fora dela.

*Carlos Nader, 43, é um homem de mídia. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com

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