Três é demais
O town-in é um esporte dependente da sintonia perfeita entre seus participantes
Enquanto caminham lado a lado pelo calçadão do Arpoador, lendário point do surf carioca, os big riders Carlos Burle, Eraldo Gueiros e Maya Gabeira conversam como se não se vissem há tempos – o que estava longe de ser o caso. Assuntos como o swell que entraria em Fiji, as últimas peripécias do gênio do tow-in Laird Hamilton e a próxima temporada no Havaí pipocam. Tudo o que envolve uma prancha e uma parede d’água em movimento entra na conversa. E não poderia ser diferente. O surf de ondas grandes é o elo que une os três. Não bastasse o gosto em comum pela adrenalina no sangue, um depende 100% do outro quando caem juntos na água para dropar paredões puxados por jet skis. Diferentemente do surf de remada, no tow-in a relação entre os surfistas tem de estar muito bem ensaiada e não admite rivalidade.
“Você é a ferramenta de felicidade do seu parceiro no tow-in. Saímos de um esporte que é muito individualista e partimos para outro em que você é obrigado a compartilhar. E isso se torna prazeroso. A felicidade da sua dupla está na sua mão”, define Burle. Em seu caso, a felicidade de Eraldo quase sempre esteve nas mãos de Burle – e vice-versa. Os dois começaram no tow-in quando o esporte estava apenas engatinhando. “Antes não éramos exatamente uma dupla. Tínhamos uma equipe de praticantes de tow-in na qual todo mundo se unia, juntava um dinheirinho pra comprar um jet, pra aprender... Começou tudo ali”, lembra Burle. A equipe era a Power Surf Team, um grupo de oito big riders brasileiros que se juntaram no Havaí para pegar ondas puxados por jet skis. O time durou de 1998 até 2001, quando cada um seguiu seu rumo. Mas ali começou a se desenhar a parceria entre Burle e Eraldo. “Nosso nível de surf era parecido. Sentimos que seria bom para os dois, que daria certo”, conta Burle.
Na verdade, deu muito certo. Os dois viraram referência de parceria no tow-in e acabaram atraindo uma terceira pessoa para o time. A dupla virou trio quando Maya Gabeira, já experiente nas ondas grandes, resolveu aprender outra modalidade. Começou treinando com Burle há dois anos e logo já estava na água com Eraldo. A relação entre os três demonstra como o tow-in é um capítulo à parte no universo do surf, um esporte verdadeiramente coletivo. “Quando estou pilotando quero entregar a eles o que eles proporcionam para mim. No tow-in dependemos da performance do outro pra ter nossa própria performance”, diz Maya.
Os anos de experiência de Burle no tow-in não o credenciaram apenas para treinar uma atleta como Maya. Ele começou a dar palestras para empresas se valendo de suas vivências com a prancha nos pés. E o tow-in não fica de fora dos discursos. “Quando vou falar do trabalho em equipe cito a história da transição do surf de remada, no qual você tem o controle de tudo, para, de uma hora pra outra, depender de alguém para agir.”
Essa sintonia ajuda a explicar por que, apesar de ter nascido em um país que não entra na lista dos melhores picos de ondas grandes do mundo, o trio é dono de uma coleção invejável de prêmios internacionais. Este ano Maya ganhou pela terceira vez seguida o XXL Global Big Wave Awards, espécie de Oscar da modalidade. E Burle, puxado por Eraldo, levou o prêmio mundial dos vagalhões em 2002 por ter dropado uma parede de água de 22 m, maior onda já fotografada até então.
Barra-pesada
No tow-in, a dependência do outro às vezes significa sobrevivência. Dropar de alturas que chegam ou até passam dos 20 m de altura não é o esporte mais seguro que existe. Na verdade, a onda nem precisa estar tão grande assim para fazer um estrago – e Maya sabe muito bem disso. Há pouco menos de um ano, ela estava treinando com Eraldo na Barra da Tijuca (RJ) quando caiu ao tentar vencer um tubo. A prancha acertou o rosto de Maya debaixo d’água e quebrou seu nariz. “Na hora dei uma apagada, mas voltei. Ainda consegui subir e acenar para o Eraldo. Acho que ele viu que eu estava com sangue no rosto e veio rápido”, conta. “Tem gente que fala: ‘Pô, você treina em onda gigante e veio se machucar na Barra?’. Mas vai treinar na Barra com uma onda grande fechando, com a velocidade que nós alcançamos e simulando que estamos em Jaws. O tow-in é mais do que um esporte de dupla, porque o seu parceiro é responsável pela sua vida”, diz Maya. Eraldo reforça a ideia. “Você tem que estar disposto a ir buscar o cara a todo vapor, lá no meio da espuma branca, pra ele não morrer.”
A recompensa para tanto risco vem durante outras surf sessions. O inquieto trio foi brindado há pouco mais de um mês com a descoberta de um novo pico de surf quebrando altas ondas bem no quintal de casa. A Laje do Jaconé, no litoral de Saquarema (RJ), vinha sendo monitorada por Carlos Burle já há algum tempo. Quando o swell ideal entrou, foi hora de preparar os jets, juntar o grupo e explorar os tubos recém-descobertos. Quanto a relação entre esses três big riders ajuda na busca por novos picos? Burle responde: “É essencial. É como pegar três pessoas com vontade, juntar num liquidificador e bater. Não paramos de procurar novos lugares para explorar. Agora eu e o Eraldo estamos aproveitando esse sangue novo da Maya”.
Maya/por/
Burle: “Ela é um presente profissional. Sempre tive o sonho de passar meus conhecimentos para alguém e ela é uma esponja. Ela é muito mais instinto, vontade, perseverança, foco.” Eraldo: “É uma princesinha do surf. A Maya tem uma preocupação muito grande em evoluir, quer consertar todos os probleminhas. Tudo que eu faço é pra continuar surfando, e o sangue novo da Maya dá uma sobrevida pra gente.”
Burle/por/
Maya: “Foi quem realmente fez meu sonho no tow-in virar realidade. O Burle está à frente de qualquer patrocinador ou qualquer incentivo. Tê-lo na minha carreira, dentro e fora d’água, me dá força para evoluir. Eu pego a confiança dele.” Eraldo: “Ele é como se fosse meu irmão mais novo. Somos bem diferentes, mas a gente acaba se completando. Acho que só o fato de estarmos juntos já é um carma espiritual.”
Eraldo/por/
Maya: “O Eraldo é alguém que eu admiro muito. Foi ele que me salvou no meu pior acidente na água e foi a primeira pessoa a me levar para Jaws. Temos uma relação muito forte. É um segundo mestre.” Burle: “O Eraldo é um presente. Pra conviver com ele aprendi a entender nossas diferenças, a ter calma. Ele é mais momento, leva a vida mais devagar, no passo dele.”