Ainda há pouco, lendo um artigo de Eliane Brum senti uma dor insuportável. Ela contava de crianças e mulheres grávidas sendo torturadas na época da ditadura militar. Algo pungente, de dar agonia e fazer chorar, particularmente a quem, como eu, passou por tal experiência.
Eu não era terrorista. Apenas um pobre diabo que acabara de completar 18 anos e que participara de uma série de assaltos que culminou em um tiroteio em que um homem foi morto. Havia assimilado a cultura criminal no Juizado de Menores (antiga Fundação Casa) e já conhecia a tortura. A primeira vez que fui colocado no "pau de arara" tinha apenas 14 anos.
Lembro cada um dos torturadores e ainda sou capaz de sentir as dores daquela época. Eu não era inocente, muito pelo contrário, era totalmente culpado. Mas isso não dava direito a ninguém de fazer o que fizeram comigo. Primeiro fiquei nu e fui pendurado no pau de arara, entre duas escrivaninhas. Em seguida, enrolaram um fio na glande de meu pênis e enfiaram outro no meu anus. E lá veio o choque, diretamente da tomada na parede. Estava sendo eletrocutado. Era uma dor que parecia queimar por dentro. Saltava a cada vez que enfiavam o plug na tomada, fortemente manietado ao cano de ferro que passava por trás de meu joelho. Subia o cheiro de queimado e sabia que era eu quem estava queimando.
Eles queriam os parceiros que haviam fugido na hora do tiroteio; dois policiais haviam sido baleados. A dor era insuportável. Por sorte, não sabia onde eles pudessem estar. Eu os conhecera no Juizado de Menores; não havia endereços entre nós. Como eu nada dizia, começaram a bater na sola de meus pés com uma palmatória. A cada pancada, esmagavam e quando puxavam, metade do pé ia junto. Não tinha mais voz para gritar. Cansados, eles se revezavam. A dor excessiva havia insensibilizado e eu nada sentia. Retiraram do pau de arara. Fiquei ali jogado no chão, com os pés inchando e sem sentir as pernas. Meu pênis e o anus sangravam. Choveu pontapés e pauladas. Ainda amarrado, me jogaram em uma cela.
Dia seguinte vieram me buscar e eu ainda estava amarrado. Colocaram no pau de arara e novamente fios no anus e no pênis. E bateram, bateram, até que chegou o diretor do DEIC. Queria saber porque eles ainda não tinham a localização dos foragidos. Os tiras diziam que eu não sabia ou estava aguentando o máximo da dor que eram capazes de impingir. Indignado, chamando-os de incompetentes, o diretor quis demonstrar como se torturava. Com uma palmatória de ferro batia em cima das unhas dos pés e das mãos, quebrando dedos e unhas. O homem subia no alto e descia batendo com toda sua força em cima de meus pés e mãos. Depois batia de encontro às unhas para entrarem dentro da carne. Causava choque. A dor era tamanha que alucinava, eu gania como um cão. Um dos tiras disse ao diretor que eu não ia aguentar. Eu era pequeno e aparentava 14 ou 15 anos, quase um menino. Ele não se importava. Caso morresse era só colocar em um saco de estopa, crivar de balas e jogar no mato. Eu seria mais uma vítima do Esquadrão da Morte. E batia, batia, parecia enlouquecido. O tira contra argumentou; se eu morresse não saberiam de meus parceiros foragidos. O homem parou e os responsabilizou por arrancar as informações de mim. Eu estava a apenas 3 horas apanhando, era como se fosse a vida toda.
Dia seguinte, com as pontas do dedos estouradas, quebradas e sangrando; as unhas estilhaçadas e cravadas nos dedos, sangrando pelo anus, pênis, cara e todas as pontas de meu corpo, fui novamente arrastado para a sala de torturas. Começaram a bater e perceberam que eu já não sentia mais nada, estava mais morto que vivo. Então decidiram pelo afogamento. Encharcavam uma toalha e envolviam minha cara com ela. Eu respirava água e mesmo sem forças, afogava e me debatia involuntariamente. Perguntavam dos parceiros. Haviam quebrados meus dentes da frente a socos e pauladas, só sangrava. E novamente encharcavam a toalha e enrolavam minha cara com ela. A essa altura eu já implorava que me matassem de vez. No xadrez, o parceiros preso comigo, à noite, quando todos dormiam, menos eu que só gemia de dor, tentou se enforcar. Não pude socorrê-lo. Não conseguia sequer me mexer, mas gritei e outros acordaram e o retiraram da forca, ainda com vida. Dia seguinte me carregaram para um carro da polícia e me levaram para o mato. Pensei que fossem me matar e senti alívio. Pedi que me matassem logo. Mas eles me amarraram atrás do carro com cordas e saíram me arrastando pela estrada de terra, dando pauladas em meu corpo e cabeça. Tudo em mim sangrava e nem doía mais. Quando perceberam que eu não sabia mesmo onde estavam os parceiros, me largaram na cela. Dia seguinte veio o enfermeiro. O homem era frio. Arrancava as unhas cravadas nos dedos com uma brutalidade que doía na alma. Costurou meus dedos estourados, minha cabeça e outras partes de mim sem anestesia. Aplicava injeções de antibióticos com uma violência que deixavam feridas na pele. Meus pés estavam inchados, enormes. Meu pênis estava preto e inchado. Para defecar ou urinar eu sofria demais. Tinha que ser carregado pelos companheiros de cela para tudo. Mas eu era jovem e a recuperação foi se dando aos poucos.
Dez dias depois tudo começou novamente, agora com método, segundo os tiras e não "às queimas" como haviam feito no começo. Agora queriam que eu contasse os assaltos que pratiquei. Por três meses e meio me quebraram com todo tipo de tortura que conheciam. Ao fim, me mandaram para a prisão para ficar mais de 30 anos. Demorou mais de ano para novamente sentir meu sexo. Minhas unhas crescem encravadas até hoje; minha cabeça parece o mapa do inferno de tantos cortes; as hemorróidas ainda me torturam. Estou com o fígado, baço e intestino comprometidos de tanta pancada e tomo remédios para controlar a pressão arterial. Eles acabaram comigo. Estou vivo de teimoso.
São lembranças que quando sei de pessoas torturadas vêm à tona para novamente doer e me torturar.
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