Terra de cego
Jack O'Neill não se conformou em ser um vendedor de janelas e redesenhou sua trajetória para viver de e para o surf. Um viva para o pai do traje de neoprene
Se você já mergulhou no Caribe, trabalhou com garimpo em Mato Grosso, fez triatlo na França, dirige um táxi a gasolina no Embu ou surfa em Saquarema, agradeça a este senhor. O nome dele é Jack O'Neill, 87 anos e uma vida bem agitada.
O'Neill integrou a força aérea americana, foi pescador profissional e vendeu janelas, mas sempre esteve ligado ao mar. Era nas praias da Califórnia que ele passava suas horas livres, nadando, pescando e surfando. O problema era o frio. As águas do Pacífico na região da Califórnia, mesmo no auge do verão, são congelantes. Entrar no mar é uma experiência complexa. Permanecer nele é algo bem difícil e mergulhar, quase impossível sem a ajuda de algum material que afaste o risco da hipotermia, capaz de matar um homem em relativamente pouco tempo. Ainda às voltas com os jatos e sempre curioso e apaixonado por tecnologia e invenções, Jack chegou a um cientista que desenvolvia novos materiais para a aeronáutica. Ele lhe mostrou uma espécie de espuma de borracha que vinha estudando para estofar poltronas e pisos das aeronaves. Jack via, pela primeira vez, o precursor do neoprene, o material que mudaria sua vida.
Conseguiu algumas placas, colocou-as entre seu short e a pele e caiu na água para testar. Pela primeira vez na vida, após muitas experiências frustradas com pedaços de PVC e malhas de cashmere, pelo menos uma parte de seu corpo se mantinha relativamente quente depois de um bom tempo no mar. Em 1952, O'Neill conseguiu pela primeira vez desenvolver técnicas de costura e colagem que permitiram fazer algo parecido com um colete. Foi o primeiro passo para a invenção do que chamamos de roupa de borracha, um produto que revolucionou não só o surf, o mergulho, a natação em águas abertas e quase todos os esportes praticados na água, mas viabilizou trabalhos até então impossíveis, como mergulho em águas profundas nas plataformas de petróleo, construções submarinas pesadas, resgate de vítimas e objetos em meios líquidos e uma infinidade de outros processos.
O'Neill continuou surfando embrulhado em suas invenções até alguns anos atrás, já perto dos 80. De uma pequena lojinha de rua (a primeira do mundo a ostentar o nome "surf shop", criado por ele) nos anos 50, a invenção de Jack originou um império empresarial, hoje ramificado em dezenas de países e dirigido por um de seus quatro filhos, Pat. E o interesse pela inovação e a curiosidade natural não esmoreceram com os anos. Jack não só se encantou com a câmera de alta definição que usamos para fotografá-lo, como mandou recentemente ao presidente Obama um plano para reverter o triste quadro do óleo derramado no golfo, usando um complexo sistema de navios com cascos invertidos e bombas de sucção, que só um engenheiro naval seria capaz de detalhar. Vale dizer que o gosto pelo desenvolvimento tecnológico parece ter sido transmitido pelo código genético. A invenção de um dos principais acessórios utilizados pelos surfistas do mundo inteiro, o leash, corda elástica que une a prancha ao tornozelo do surfista, é obra do próprio Pat O'Neill. Ironicamente, foi testando a invenção do filho, em ondas pequenas em 71, que Jack perdeu seu olho esquerdo, num acidente que ele relata com bom humor e a sabedoria que alguns conseguem acumular depois de quase nove décadas de vida. Como ele mesmo explica rindo, "em terra de cego, quem tem um olho se vira bem...".
Jack - O que é isso ?
Paulo Lima - É uma câmera de vídeo HD [Flip]. Ela grava duas horas direto, custa US$ 200 e está revolucionando o mercado, até mesmo algumas equipes de TV têm usado. Você se interessa por esse tipo de coisa, passou a vida toda brincando com tecnologia, né?
Jack - Ah, sim! Mas gostaria de ter estudado mais matemática e física. Poderia entender mais o que está acontecendo.
Paulo - Estava lendo sobre você e gostaria de checar algumas informações. Uma delas diz que a primeira vez em que você teve contato com o neoprene foi quando trabalhava num avião DC-3. Já em outros sites, dizem que foi um cientista quem lhe apresentou o material. Qual é a história correta?Hehehe. Nós estávamos estudando alguma tecnologia de borracha. E eu estava conversando com alguém da aeronáutica quando pensei que seria incrível ter esse tal de neoprene para roupas de mergulho. Aí perguntei no que eles usavam aquele material. Ele disse que era no DC-3. Acho que naquela época, na sede da United Airlines, em San Francisco, eles provavelmente precisavam de algo com muita urgência. O neoprene não é um bom material para avião, é pesado e não é à prova de fogo. Foi daí que a história veio. Aí algum jornalista acrescentou tudo aquilo que você leu. Você sabe como jornalistas são, né?
Tem uma história boa sobre como você tentou entender o funcionamento do plástico para manter a temperatura do corpo... Eu estava testando diferentes maneiras de se manter aquecido. Foi uma época, no fim dos anos 40, em que havia um monte de lojas de suprimentos de guerra. E essas lojas tinham os descartes da indústria da guerra. Então fui a uma dessas lojas e descobri o que eles usavam para se manter aquecido na zona de combate. Era uma espécie de lençol de borracha por cima de uma coisa como uma lã... e funcionava muito bem. Mas eles nunca aperfeiçoaram o produto no sentido de fechá-lo depois que você entrava naquilo. Então na água era um problema.
Qual era a sua relação com as ondas nos anos 40? Você praticava body surf (o popular jacaré), é isso? Ah, sim, eu vivia no sul da Califórnia e comecei a surfar nessa época. E meus amigos estavam vivendo em West Hollywood. Eu pegava um pouco de ondas em Santa Mônica. Lembro de ter entrado firme nessa coisa de body surf. Isso ficou muito tempo grudado na minha cabeça, mas aí eu me mudei de volta pra San Francisco no fim dos anos 40 e voltei a surfar.
Quando você teve a sua primeira prancha? Eu não tive uma prancha de surf até mais ou menos os anos 50. Até essa época, eu ainda estava fazendo muito body surf.
Quando foi a última vez que surfou? Foi há alguns anos.
Você provavelmente faz parte de uma das primeiras gerações de surfistas daqui da Califórnia, certo? Não, não, havia gente surfando no Havaí já nos idos de 1800. E esses caras também foram os primeiros a surfar na Califórnia. Tinha também um irlandês que provavelmente fazia isso naquela época, mais para o sul.
Qual é a principal diferença no estilo de vida e no surf naquela época comparando com agora? Como você vê o boom de popularização do surf? Não foi um boom. Tudo foi devagar. Quando eu comecei nos anos 50, as pessoas chegavam a mim e perguntavam: "O que é uma prancha de surf? O que é uma roupa de borracha?". Simplesmente não estavam familiarizadas com aquilo.
Criatividade é um traço de seu trabalho que se manifesta de várias formas. A gente soube que você teve uma ideia para conter o vazamento de óleo no golfo e tentou falar com o presidente Obama sobre isso. Confere? Sim. O vazamento foi na costa de Louisiana, certo? Lá existem muitos navios obsoletos. Minha ideia era pegar alguns desses navios, levá-los até o local, virá-los de ponta-cabeça e deslizá-los até o vazamento. Encheríamos os navios com petróleo através de uma bomba de sucção e traríamos de volta à superfície. Cada navio subiria e baixaria várias vezes.
Eu soube que você tem um projeto para levar crianças para conhecer a vida no oceano... Ah, sim, tenho feito isso por uns 11, 12 anos. O que fazemos é pegar essas crianças, colocá-las no iate e mostrar a elas que o oceano está vivo e que temos que cuidar dele. Fazemos com que as crianças arrastem plâncton para examiná-lo num microscópio e colocamos isso num telão. Aquilo causa um impacto incrível. Tiramos uma foto de cada garoto no leme do navio. Ele vai para casa com essa foto dele dirigindo um navio gigante. Isso os deixa excitados e conscientes para salvar os oceanos.
Qual foi a coisa mais importante que você aprendeu com o oceano? Nossa, eu tirei tanto do oceano, aprendi tanto com ele. Meus filhos, os filhos deles e outras crianças também. Nós já levamos perto de 60 mil crianças nesse projeto.
Depois de todos esses anos trabalhando na O'Neill com grande sucesso, quais lições você tirou da vida como um homem de negócios? Penso que tive boas oportunidades, o timing foi perfeito. No norte da Califórnia, a temperatura do mar é muito baixa. Era um lugar natural para o desenvolvimento desse tipo de produto. E tivemos a exclusividade na manufatura das roupas de borracha por um bom tempo, isso nos deu tempo para nos aperfeiçoarmos. As pessoas riam das roupas no começo, mas agora usam no mundo todo.
Lendo seus perfis pela internet, vi que você perdeu o seu olho surfando, num acidente com a cordinha da prancha... Sim, foi logo aqui embaixo. Não era um dia de grandes ondas. Demorava muito tempo entre uma série e outra. Mas eu entrei e fui sugado. Tomei uma pancada no rosto e não percebi o que de fato havia acontecido. Pensei: "Meu Deus, vou ficar com um olho roxo". Ao procurar uma enfermeira, ela fez uma cara de espanto e disse: "Seu globo ocular girou 360 graus e ‘abriu'". Depois disso fiquei muito sensível à luz. Quando eu ia surfar, ficava fechando os olhos o tempo todo.
Qual é o seu conselho para alguém jovem que está começando um negócio? Você tem que fazer algo de que goste. Eu passava muito tempo numa prancha e, quando não estava em cima de uma, gastava muito tempo pensando em maneiras de melhorar aquela experiência.
Você já fez tantas coisas diferentes nesses 87 anos, esteve na aeronáutica, foi surfista, empreendedor... qual foi o momento mais importante da sua vida? Acho que os momentos que passei no mar. Posso me ferrar no centro da cidade. Mas no mar dá tudo certo, está tudo OK.