Tantos Mundos

Temos várias personalidades e espíritos diferentes dentro de nós. Somos 6,8 bilhões de mundos perambulantes. Daí tanta confusão

por Henrique Goldman em

Dentro de mim tem uma mulata muito gostosa, parecida com a Camila Pitanga. Ela é pobre, mas feliz porque a sua bunda é perfeita e seus peitinhos, divinos. Ela desfila na Mangueira, e no seu mundo não tem lugar pra dor nem tristeza. Pra ela não existe ontem nem amanhã, só um hoje eterno e ensolarado. Dentro de mim tem um velho judeu polonês que vive amargando um passado doloroso, o seu Moishe. Ele é um chato ranzinza que toma sopa de repolho resmungando às seis da tarde na frente da televisão. O seu Moishe dentro de mim tem medo de viver. Ele odeia Deus e a natureza. Não existem mais cores no seu mundo, só diferentes tonalidades de cinza e bege.

Dentro de mim tem um líder arrogante, um Bush, um Bin Laden, talvez até um Hitler ou um Stalin. O déspota é um milionário paranóico que tem tudo a perder. Tem sede de poder e fica na sombra, dentro de mim, comprando brigas, arrombando portas, estuprando virgens, torturando inocentes e espantando os amores.

Dentro de mim tem um Che Guevara, um Martin Luther King, um Mahatma Ghandi. Um herói sonhando com paz, justiça e um bem que transcende meu próprio ego. Dentro de mim, tem um francês metido a besta que aprecia bons vinhos e música clássica, que faz de conta que se importa com o mundo aplaudindo o Michael Moore, mas que, no fundo, dá mais importância a um suéter de caxemira do que ao genocídio que está rolando no Sudão.

Dentro de mim tem um menor abandonado que caminha descalço numa grande avenida de Manila, Cidade do México ou São Paulo. Ele, às vezes, me acorda de noite cheirando cola. Ele me chama de tio e pede um trocado. Mas eu não sei como nutri-lo ou dar consolo. Dentro de mim tem um filho ingrato e um outro grato que ajuda velhinhas a atravessar a rua pensando na minha mãe. Dentro de mim tem um pai ausente que chega bêbado em casa. E uma mãe pentelha que fica acordada de madrugada me esperando.

Às vezes, essa turma toda se encontra, dentro de mim. Às vezes, eles se perdem um do outro. Às vezes, eles brigam, às vezes eles se amam, dentro de mim. Às vezes, eu os chamo e eles não vêm. Às vezes, eles aparecem sem ser convidados. Às vezes, mando um embora, mas ele não vai. Às vezes, eu imploro pra que fiquem mais um pouco, mas eles somem.

E não é só gente dentro de mim, não. Dentro de mim tem uma esfirra fechada de carne. E uma outra aberta de queijo. Dentro de mim tem todas as praças de alimentação de todos os shoppings do mundo. E todos os cinemas, todos os filmes e livros, todas as palavras de todas as línguas, estacionamentos, cartórios, tabelionatos e prisões, maternidades e cemitérios, bibliotecas e bombas atômicas. Dentro de mim tem todos os canais de televisão e todos os sites da internet.

Dentro de mim tem todas as águas de todas as torneiras, rios e mares. E todas as montanhas. E todas as folhas de todas as árvores. E todos os bichos do céu, do mar e da terra. E todo o vazio também. E dentro de todo mundo existem esses mundos também. Somos 6,8 bilhões de mundos perambulantes. É por isso que rola tanta confusão. Mas, como diria o seu Geraldo, porteiro do prédio onde eu cresci, em São Paulo, é melhor não esquentar a cabeça senão a caspa vira pipoca.

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